Sentença do Tribunal Administrativo
Sentença do Tribunal Administrativo
RELATÓRIO
Os Demandantes João Sorridente e Manuel Sabichão promoveram ação de impugnação contra os
atos administrativos praticados pelos Demandados Ministério do Ambiente e Ministério da
Administração Interna, que ditaram a aceitação dos Cinco candidatos selecionados para as funções
de Guarda Florestal, e ainda contra o Aviso 3055/2019.
Os Demandantes João Sorridente e Manuel Sabichão promoveram ação de impugnação contra os
atos administrativos praticados pelos Demandados Ministério do Ambiente e Ministério da
Administração Interna, que ditaram a aceitação dos Cinco candidatos selecionados para as funções
de Guarda Florestal, e ainda contra o Aviso 3055/2019.
QUESTÕES A APRECIAR
- Validade dos requisitos de dentição constantes do Aviso 3055/2019
- Conformidade da prova de conhecimentos realizada em relação ao previsto no Aviso 3055/2019
- Competência para a abertura do procedimento administrativo do concurso extraordinário
- Violação de direitos procedimentais durante o procedimento administrativo do concurso extraordinário
- Imparcialidade dos atos praticados ao longo do procedimento por interferência do Assessor do Secretário de Estado do Ambiente
DOS FACTOS
- É necessária uma acrescida vigilância das florestas para prevenção de incêndios.
- O Secretário de Estado da Administração Interna e o Secretário de Estado do Ambiente abriram um concurso extraordinário para o ingresso de profissionais para preenchimento de cinco vagas na carreira de guarda florestal, nos termos do Aviso n.º 3055/2019 (constante do Diário da República, 2ª série, nº. 40, de 26 de Fevereiro de 2019).
- Os Demandantes, Manuel Sabichão e João Sorridente eram candidatos ao concurso extraordinário para o ingresso na carreira de guarda florestal.
- Ambos os Demandantes foram excluídos do concurso.
- O Demandante Manuel Sabichão foi excluído após obter uma classificação de zero valores na prova de conhecimentos que questionava os candidatos sobre uma divergência doutrinária entre a Escola de Lisboa e a Escola de Coimbra em matéria de Direito do Ambiente
- O Demandante João Sorridente foi excluído por ter sido considerado medicamente inapto, em virtude da falta dos 6 dentes da frente que perdeu recentemente, ao embater com a cabeça contra um navio baleeiro, no âmbito de uma ação da ONGA “Greenpeace”, em defesa da preservação das baleias.
- As cinco vagas foram preenchidas dadas as qualidades dos candidatos admitidos e a integral verificação, por estes, dos requisitos impostos para aceitação.
- Houve uma participação, nos atos de seleção e de graduação dos candidatos, de dois primos, um como Secretário de Estado do Ambiente e outro como seu Assessor - que se demitiram na sequência do familygate.
- O Secretário de Estado do Ambiente e o seu assessor demitiram-se na sequência do familygate.
DE DIREITO
- Questões relativas ao Aviso 3055/2019
- Classificação enquanto atuação administrativa
- Este Aviso deve ser classificado como um regulamento, atendendo ao seu conteúdo geral (tendo em conta que se aplica a todos os que se queiram candidatar ao concurso) e abstrato (pois se aplica a todos os procedimentos concursais para o ingresso na carreira e categoria de guardas-florestais). Também se verifica a sua eficácia externa pois este irá produzir efeitos em esfera jurídica diferente da esfera da pessoa coletiva Estado (neste caso os efeitos produzem-se na esfera jurídica dos candidatos a guarda florestal).
- Como regulamento que é, carecia de referência para a norma legal habilitante, respeitando o art. 136º/1 CPA (que se encontra satisfeita, fazendo a devida referência ao art. 30º e 33º da Lei Geral do Trabalho nas Funções Públicas) e de referência para os diplomas que se visava regulamentar, nos termos do art. 136º/2 CPA e 112º/7 CRP (que também se encontra satisfeita, nos pontos 1 e 2 do Aviso).
- Pode ainda referir-se o caráter executório e espontâneo do regulamento, por concretizar condições de aplicação prática dos referidos art. 30º e 33º da LTFP, sem que a própria Lei exija essas complementarização.
- Juridicidade do conteúdo do aviso
- Requisito da dentição
- Conformidade em relação ao princípio da Igualdade
- Concretiza-se o princípio da Igualdade nos artigos 266º/2 CRP e 6º CPA. Este princípio impõe que se trate de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente, na medida da sua diferença. Associadas a este princípio, encontramos duas vertentes: a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação.
- Uma medida é discriminatória quando se estabelece uma identidade ou uma diferenciação de tratamento para a qual, à luz do objetivo que com ela se visa prosseguir, não existe justificação material suficiente.
- Analisando os requisitos exigidos pelo aviso impõe-se uma análise do seu iter cognitivo.
- Em primeiro lugar, devemos através da interpretação analisar o fim visado pelo aviso (verificação da aptidão médica do candidato a guarda florestal);
- De seguida é necessário isolar os diferentes requisitos referidos pela norma como suscetíveis de verificação do fim e aferir se são objeto de tratamento idêntico ou diferenciado - ou se, não o sendo, deveriam ser (“perda de mais de 5 dentes, não substituídos por prótese; existência de menos de 20 dentes naturais (à exceção dos sisos); perda de dente cuja localização cause má aparência”).
- Por último, com os elementos já reunidos, há que determinar se, para a realização do fim é ou não razoável à luz dos valores dominantes do ordenamento proceder àquela identidade ou distinção de tratamento.
- Não se concebe que alguém seja excluído de um concurso para a profissão de guarda florestal por ter má aparência.
- O conceito de “má aparência” é um conceito indeterminado, que confere um poder discricionário à Administração Pública e que deverá ser concretizado através de preenchimentos valorativos, que requerem um esforço reconstrutivo e criativo face às exigências externas impostas pela ordem jurídica (princípio da juridicidade ou legalidade em sentido amplo, art. 3º/1 CPA).
- Tendo estes elementos em conta, não parece razoável afirmar que é determinante, para o exercício das funções de guarda florestal, a exigência da dentição completa ou quase-completa.
- Reformulando a questão: é preferível uma pessoa com a dentição completa a alguém que seja excluído por falta de dentes possuindo o conhecimento necessário para a profissão de guarda florestal?
- Afigura-se como irrazoável discriminar um candidato com as particulares aptidões e experiência a nível de projetos ambientais Demandante João Sorridente e que este não seja admitido para a carreira de guarda-florestal apenas pelo seu aspeto físico, especialmente quando tal se devera a um acidente de trabalho e não a uma falta de brio do próprio (o depoimento das testemunhas invocadas por este Demandante também permite compreender que para além do elemento físico, são muito importantes os fatores da competência e conhecimento técnico para esta profissão, que de resto reunia).
- Isso para além do facto de que a Administração Pública deve intervir de modo a corrigir desigualdades a nível económico, social e cultural e não a acentuá-las com base na condição física ou social - tenha-se em conta que a aquisição de uma prótese dentária (que o tornaria apto à profissão a que se candidatava à luz dos requisitos exigidos pelo aviso) não está ao dispor de todo o cidadão, mas isso não deve prejudicar o candidato que reúne outras características bem mais necessárias para aquelas funções.
- Esta distinção de tratamento é discriminatória e desconforme ao princípio da igualdade (em sentido contrário, ler voto de vencido do Juiz César Andrade).
- Conformidade em relação ao princípio da Proporcionalidade
- O princípio da Proporcionalidade tem a sua base jurídica nos artigos 266º/2 CRP e 7º CPA. Ligado à prossecução do interesse público pela Administração, este princípio deve atuar para que não se excedam os limites necessários à missão de atingir os fins visados. Quanto às três vertentes deste princípio, assumindo a terminologia de FREITAS DO AMARAL, faremos referência à adequação, à necessidade e ao equilíbrio.
- Atendendo aos três critérios não-cumulativos de exclusão do relativos à dentição do candidato (perda de 5 dentes não substituídos por prótese; dentição composta por menos do que 20 dentes naturais; perda de dente numa localização que cause má aparência), não se considerou que estes requisitos fossem aptos à satisfação do fim visado (averiguação da aptidão médica dos candidatos), porque a falta de dentes não implica uma menor qualidade do trabalho desenvolvido nesta profissão em específico. Por esse motivo está violado o princípio da proporcionalidade na vertente da adequação (também quanto a este ponto vota vencido o Juiz César Andrade).
- A falta de correspondência entre a prova de conhecimentos referida no Aviso e a prova efetivamente realizada pelos candidatos
- Quanto aos problemas suscitados pelo Demandante Manuel Sabichão em relação à prova de conhecimentos realizada pelos candidatos, a sua origem não está na desconformidade daquele instrumento normativo perante a ordem jurídica, mas sim na notória falta de correspondência daquela prova em relação às normas do próprio Aviso.
- Nos termos do art. 36º/1/a) da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, a prova de conhecimentos é um método obrigatório de seleção. O conteúdo, as questões que especificamente contam da prova são um elemento discricionário da Administração - balizado pelas exigências da juridicidade.
- Nos termos do n.º 11.1/a) do Aviso, a prova, que “visa avaliar conhecimentos e as competências técnicas necessárias ao exercício da função”, incidiria sobre “conteúdo programático” lecionados até ao 12º ano de escolaridade e “temas de cultura geral sobre a atualidade” - conceitos que deixam alguma discricionariedade à Administração quanto às questões que deverão constar da prova.
- No entanto consideramos manifesta a dissimetria entre a prova de conhecimentos referida pelo Aviso e a prova que exige conhecimentos relativos a divergências doutrinárias de Direito do Ambiente, que 1) não são de cultura geral; 2) não são, de todo, lecionados até ao 12º ano de escolaridade, sendo que mesmo aos alunos de ensino superior que ingressam no curso de Direito, são lecionados no último ano desse curso; 3) dificilmente contribuem para uma melhor performance enquanto guarda florestal.
- Houve um uso impróprio da discricionariedade atribuída à Administração, porque a prova de conhecimentos efetivamente realizada pelos candidatos era imediatamente desconforme ao Aviso, e por isso mediatamente violadora do princípio da juridicidade nos termos do art. 3º/1 CPA. A prova de conhecimentos era, por estes motivos inválida.
- Questões relativas ao procedimento administrativo do concurso extraordinário
- Competência dos Secretários de Estado para o ato de abertura do concurso
- O procedimento em questão parte de uma iniciativa oficiosa (artigo 53º CPA, 1ª parte), mais concretamente, do Secretário de Estado da Administração Interna e do Secretário de Estado do Ambiente. Porém, os Secretários de Estado não dispõem de competências próprias (artigo 10º/1 LOG), pelo que a competência para a prática de atos administrativos ter-lhes-ia de ser atribuída, pelo respetivo Ministro (art. 3º/6 e 3º/16 LOG), através de ato de delegação de poderes (nos termos do art. 8º/3 LOG e respeitando o regime dos art. 44º a 50º do CPA).
- Acontece que não foi demonstrada a existência dos atos de delegação necessários para que operasse a delegação de poderes referida no art. 8º/3 LOG.
- Seria lógico procurar uma norma de competência no Aviso 3055/2019 - aviso esse compatível com a noção do conceito regulamento patente no 135º do CPA, sendo composto por normas jurídicas gerais e abstratas, e visando produzir efeitos jurídicos externos.
- No entanto não seria aplicável a norma de competência referida pelo nº 2 do Aviso, que investe na GNR (por remissão para subalínea iii), da alínea a) do n.º 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 11-A/2018) o poder de realizar o procedimento do concurso ordinário de recrutamento de guardas florestais. O concurso em apreço revestia natureza extraordinária pelo que não se encontrava abrangido pela referida norma constante da Resolução do Conselho de Ministros. Nos termos do 36º/1 do CPA, a competência é conferida por lei ou regulamento. Não podemos presumir que houve uma delegação desta competência.
- Por estas razões o Tribunal dá razão aos Demandantes quando alegam que os referidos Secretários de Estado não têm competência para a abertura do concurso. O ato de abertura do concurso sofre de vício de competência, o que o torna anulável por aplicação do artigo 163º/1 CPA;
- Princípio da Imparcialidade
- Este princípio, expresso no artigo 9º CPA e no artigo 266º/2 CRP, tem duas vertentes, a negativa e a positiva. A positiva é referente ao dever de ponderar todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos equacionáveis para o efeito de certa decisão, antes da sua adoção. Não vemos problemas nesta vertente. Já a vertente negativa reporta-se à fase instrutória, no entanto deve estar presente ao longo de todo o processo. Detendo, ainda, um regime próprio que consta dos artigos 69º e seguintes do CPA.
- Nesta vertente distingue-se dois tipos de situações: impedimento e suspeição. Nos casos de impedimento é obrigatória por lei a substituição do órgão ou agente administrativo normalmente competente por outro, que tomará a decisão no seu lugar. Logo, a pessoa que se encontra legalmente na situação de impedida de participar na decisão de um determinado caso é substituída por outra pessoa, em relação à qual não se verifiquem motivos de impedimento e que possa, imparcialmente, pronunciar-se sobre o assunto.
- Já nas situações de suspeição, a substituição não é automaticamente obrigatória, a substituição é apenas possível, tendo de ser requerida pelo próprio órgão ou agente que pede escusa de participar naquele procedimento ou pelo particular que opõe uma suspeição àquele órgão ou agente e pede a sua substituição por outro.
- Eliminamos, desde já, a possibilidade de impedimento, uma vez que ao observar o artigo 69º CPA não encontramos nenhum dos casos mencionados previstos. Já quanto à suspeição, haverá em geral um motivo de suspeição quando se verifique “qualquer circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da isenção ou retidão da conduta do órgão ou agente administrativo” (menciona FREITAS DO AMARAL).
- Perante uma situação de suspeição, o art. 73º/1 CPA atribui ao órgão ou ao agente administrativo o dever jurídico de pedir escusa de intervenção naquele procedimento, e o número 2 do mesmo artigo 73º confere aos particulares interessados no procedimento o direito de opor suspeição ao órgão em questão. Quer num caso quer no outro, o órgão competente decidirá se há ou não fundamento para a suspeição: concluindo pela ausência de fundamento, o órgão ou agente em causa continua em funções e fica legitimado para intervir no procedimento; caso contrário é feita uma declaração de suspeição e segue-se a substituição do órgão ou agente por aquele que o deva substituir no exercício da competência (art. 75º CPA).
- Neste caso, considera-se como provada, através do testemunho do ex-secretário pessoal do Secretário de Estado do Ambiente, uma situação de suspeição pelo facto do Secretário de Estado e o respetivo primo (enquanto seu Assessor) decidirem, em conjunto, o resultado do concurso para ingressar na carreira de guarda florestal, aproximando em demasia aquela decisão de eventuais interesses privados do Assessor - situação de suspeição passível de enquadramento na redação exemplificativa do art. 73º/1 do CPA que gera por isso, em acréscimo ao vício de competência, um segundo fundamento para a anulabilidade do ato de abertura nos termos do art. 76.º, devido à ausência do pedido de escusa por parte do Secretário de Estado (em relação ao presente ponto ler o voto de vencido do Juiz César Andrade).
- Audiência prévia
- Esta é a fase do procedimento administrativo na qual é assegurado aos interessados num procedimento o direito de participarem na formação das decisões que lhes digam respeito. Inclui a notificação dos interessados antes de ser tomada a decisão final sobre o sentido provável desta, de modo a que estes possam “pronunciar-se sobre todas as questões com interesse para a decisão, em matéria de facto e de direito, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos” (art.121º/2 CPA), ao que se segue a ponderação, pelo instrutor, dos argumentos e razões apresentadas pelos interessados em defesa dos seus pontos de vista.
- Esta audiência prévia pode, em certos casos, ser dispensada (art.124º/1). Mais especificamente, alega o Demandado Ministério do Ambiente que estávamos perante um ato urgente (art. 124º/1/a) CPA), devido ao caráter expedito que devem revestir as diligências para proteção da floresta, e em especial o combate aos fogos florestais - invocando ainda o art. 191º/2 do Tratado de Lisboa.
- Porém, não obstante a importância de um procedimento atempado, veja-se que o próprio Aviso 3055/2019 impõe um período experimental de 180 dias (aproximadamente 6 meses), de avaliação do candidato a guarda-florestal.
- Tendo esse dado em conta e sabendo que o Aviso foi publicado no final do mês de fevereiro (26 de fevereiro de 2019), um candidato que fosse admitido ao período experimental apenas estaria completamente apto para exercer efetivamente a profissão no final de agosto, muito após o início da época de fogos.
- Se o próprio processo de integração do candidato a guarda florestal se estende por seis meses, terminando quase no final do Verão, como pode ser alegado que o direito à audiência prévia foi preterido por urgência do concurso em questão?
- Considera-se que não o pode e por essa razão não estamos perante uma exceção ao dever de audiência prévia (em relação a este ponto vota vencido o Juiz César Andrade).
- Logo, seria obrigatória a ocorrência de audiência prévia, sob pena de invalidade do ato administrativo: ou por nulidade, no entendimento de Vasco PEREIRA DA SILVA (que, à luz do artigo 267º/5 CRP alega um caráter jus-fundamental dos direitos procedimentais, invocando como consequência da sua violação o art. 161º/2/d) CPA); ou por anulabilidade, no entendimento de variada Jurisprudência e Doutrina, incluindo Diogo FREITAS DO AMARAL (que, consideram que salva a notória importância dos direitos procedimentais enquanto proteção dos particulares face à Administração, não estão em causa direitos fundamentais, no sentido em que não estamos perante a proteção direta da dignidade humana, razão pela qual o ato praticado em violação do direito de audiência prévia é apenas anulável, segundo a regra do art. 163º/1 CPA).
- Concordando com o fundamento desta segunda conceção, que aliás vem sendo perfilhada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, concluímos que este vício acarretaria a mera anulabilidade do ato praticado em desrespeito da audiência prévia que se impunha.
- Dever de fundamentação
- A fundamentação de um ato administrativo consiste na enunciação explícita das razões que levaram o seu autor a praticar esse ato ou a dotá-lo de certo conteúdo que se encontra regulado nos artigos 152º a 154º do CPA. Tem como objetivo essencial o esclarecimento sobre motivação do ato praticado, “permitindo a reconstituição do iter cognoscitivo que levou à adoção de um ato com determinado conteúdo”.
- No caso sub judice era aplicável o dever de fundamentação em relação à exclusão dos Demandantes, nos termos do art. 152º/1/a) CPA. A este esclarecimento das razões de facto e de Direito que ditaram o sentido decisório da Administração são exigidos certos requisitos: tem de ser expressa; deve ter um caráter sucinto; e não deve deixar por responder dúvidas que um “destinatário normal” colocado na posição do interessado em concreto (atentas as habilitações literárias e conhecimentos profissionais deste, bem como o tipo legal do ato e as circunstâncias que rodearam a sua prática) poderia razoavelmente suscitar acerca dos motivos que determinaram a decisão, como se referiu no Acórdão da 1º Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 24 de novembro de 1994. Exige-se que a fundamentação seja clara, coerente e completa, sob pena de falta relativa de dever de fundamentação nos termos do art. 153º/1 CPA (cujos efeitos são equiparados à total ausência de fundamentação [art. 153º/2]).
- Na nossa opinião, não há aqui fundamento para invocar falta relativa de dever de fundamentação, visto que o dever foi cumprido de forma clara, coerente e suficiente, o que se pode verificar ao compará-la com a fundamentação sobre a qual se pronuncia a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, no referido acórdão de 24 de novembro de 1994 - desse modo se consegue constatar o notório contraste entre a fundamentação apresentada neste caso e aquilo que, de facto, consubstancia uma fundamentação deficiente.
- Consequências das invalidades encontradas
- Em relação ao Aviso
- Os requisitos do Aviso foram considerados desconformes aos princípios da igualdade e proporcionalidade, o que resulta na anulabilidade do mesmo.
- Por essa razão, com fundamento no art. 144º/1 declaramos a anulação do regulamento.
- Em relação aos atos praticados durante o procedimento do concurso
- O procedimento administrativo desencadeado para abertura do concurso extraordinário enferma de anulabilidade por diferentes fundamentos: vício de competência na abertura do procedimento; violação de dever de audiência prévia dos interessados, e suspeição em relação aos atos praticados pelo Secretário de Estado com interferência do Assessor.
- Quanto à abertura do concurso, apesar da anulabilidade decorrente do vício de competência, não se produz o efeito anulatório. Tendo em conta a incidência anual e intensa dos fogos no nosso País (em especial nos últimos anos) pode-se concluir que neste caso concreto o ato anulável teria o mesmo conteúdo: a abertura de um concurso extraordinário para reforço do contingente de guardas florestais. Assim, aplicando a segunda parte do art. 163º/5/a) CPA, associado ao princípio do dito “aproveitamento do ato administrativo” e a teoria da “degradação das formalidades essenciais em não-essenciais”, considera-se que, neste caso concreto, o vício de competência relativo ao ato de iniciativa procedimental não acarreta os efeitos anulatórios que lhe são típicos.
- Diferentemente, quanto à violação do dever de audiência e à suspeição, não se consideram verificadas quaisquer exceções de efeito anulatório previstas no art. 163º/5 CPA. Em particular cumpre explicar de forma um pouco mais detida por que razões não se aplica a alínea c), referida em diversas alegações dos Demandados.
- Para a aplicação da alínea c) requere-se uma situação particularmente exigente: apesar do ato anulado ter uma natureza que prima facie seria predominantemente discricionária, dos princípios gerais do direito administrativo resulta que o sentido decisório adotado era, na verdade, o único sentido possível, isto é, a única solução devida - a pretensa discricionariedade encontrava-se por isso reduzida a zero. Não bastaria invocar a norma, e exigia-se assim a demonstração, por parte dos Demandados, de que houvera a referida redução da discricionariedade a zero - o que o Tribunal não considera que tenha sido demonstrado.
- Ainda quanto ao alegado afastamento do efeito anulatório, desta vez com fundamento na tutela de confiança do interessado que de boa-fé foi beneficiado pelos atos anuláveis (como também foi alegado), o meio apropriado para a tutela das expetativas dos particulares cuja confiança haja sido frustrada pela anulação do ato é a responsabilidade extracontratual do Estado - e não o afastamento das consequências da invalidade do ato.
- Sobre este ponto, refira-se que a confiança dos candidatos beneficiados pelo concurso é jurídicamente relevante: houve boa-fé subjetiva dos vícios dos atos; a atuação da Administração foi apta a causar crença plausível junto destes candidatos; estes agiram com base em tais crenças; e existem autores concretos a quem é imputável a criação desta confiança (desde já o Secretário de Estado e o seu Assessor).
- No entanto, resgatando a conclusão que adiantámos no ponto 4.2.3.2.1. , citamos a posição doutrinária de Mário ESTEVES DE OLIVEIRA, também perfilhada por Autores como Marcelo REBELO DE SOUSA, e com a qual concordamos: a atuação de boa fé de um dos intervenientes no procedimento não convalidará, não fará desaparecer o vício invalidante de que sofre o ato administrativo: um deferimento a que falta um requisito legalmente exigido, por a Administração ter sugerido ao particular, e este ter confiado nela, que não o consideraria na sua avaliação, é anulável;”
- Por estas razões, optamos por não afastar o efeito anulatório em relação ao vício do dever de audiência pública e ao vício de suspeição.
- Assim sendo, e nos termos do art. 163º/3 e observados os requisitos temporais e procedimentais do art. 165º, concluímos pela anulação com eficácia retroativa dos atos enfermados destes dois vícios.
- Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes deste Tribunal Administrativo em dar razão aos Demandantes, anulando o Aviso, bem como os atos praticados no âmbito do concurso extraordinário.
- Custas pelos Demandados.
Lisboa, 23 de maio de 2019. - Bruna Chaves - César Andrade (voto vencido, conforme declaração anexa) - Ellen Santos - Francisco Ribeiro - Juliana Oliveira - Rute Romão
Voto de vencido do Juiz César Andrade
Concordando com a maioria dos argumentos invocados na presente decisão, discordo das conclusões dos meus colegas Juízes quanto aos seguintes pontos:
- Na análise da conformidade dos requisitos da dentição (constante do Aviso 3055/2019) em relação ao princípio da proporcionalidade e da igualdade, chego a conclusões radicalmente diferentes das referidas supra.
- Foi colocada em causa a aptidão dos requisitos de dentição. Dou como provado, pelo testemunho do perito dentista, que a ausência de dentes pode acarretar várias consequências gravosas, de caráter psicológico mas principalmente de caráter físico que podem severamente impactar o desempenho das funções de guarda florestal, incluindo consequências diretas como eventuais dificuldades de comunicação mas também problemas cardíacos e problemas de postura. Considero por isso que os requisitos são adequados a atingir o fim de testar a aptidão médica (neste caso física) do candidato à profissão para a qual concorre.
- Acresce que numa carreira tão exigente a nível físico e psicológico e da qual depende o salvamento de bens materiais como casas ou terrenos, mas principalmente o salvamento de vidas humanas, a mínima falha de comunicação ou o mínimo atraso de um guarda florestal podem ditar a diferença entre um bom e um mau desempenho: maxime, entre um resgate heróico ou uma verdadeira tragédia.
- Pesando por isso o princípio da prossecução do fim público e a importância de direitos fundamentais como o direito à Vida ou o direito à integridade física dos particulares que poderão ser salvos pelos guardas florestais, não entendo haver aqui uma medida discriminatória quando se exigem determinados requisitos de dentição.
- Dos três requisitos de dentição exigidos pelo aviso, apenas um deles se afigura, a meu ver, como duvidosamente proporcional: o da ausência de dente em localização que cause má aparência. Isso porque a meu ver, para além do muito que haveria por dizer em relação os conceitos de “boa aparência” ou “má aparência” (que de resto não foram clarificados pelo perito a quem o Tribunal pediu critérios objetivos de aferição), não considero que a função de guarda florestal exija um requisito que tem função meramente estética - requisito que, de resto, não foi determinante para a exclusão do Demandante João Sorridente, a quem faltavam seis dentes não substituídos por prótese, tendo sido esse o motivo para a preterição deste candidato.
- Assim sendo, considero que o requisito de dentição que mais importava analisar neste caso era precisamente o da ausência de mais de seis dentes não substituídos por prótese, que afastou o referido Demandante - e pelos motivos que enunciei considero que esse requisito se encontra plenamente justificado de acordo com os níveis de juridicidade da nossa ordem jurídica.
- Ainda assim concluiria pela anulação do aviso apenas devido à desadequação do requisito relacionado com a “má aparência”.
- Quanto à suspeição invocada contra os atos praticados pelo Secretário de Estado do Ambiente por intervenção do Assessor, seu primo (ponto 3.2.6. , decidiria no sentido oposto. Não considero que tenha ficado provada a interferência de fins privados no procedimento administrativo em apreço.
- Quanto às situações tipificadas no art. 73º/1 parece clara a não subsunção às várias alíneas desse artigo.
- Quanto às situações eventualmente enquadráveis na enumeração exemplificativa desta norma, teria de ser mais exigentemente fundamentada a analogia entre as situações tipificadas e a situação que de facto ocorreu. Por que razão específica foi aplicado esse artigo: pela secretismo que envolveu as reuniões entre Secretário de Estado e Assessor? Pelo facto de serem primos, que configura parentesco no 4º grau da linha colateral, que tendo sido claramente deixado de fora nas situações tipificadas (que só abrangem o parentesco no 3º grau da linha colateral) não pode automaticamente incluído na enumeração exemplificativa do artigo?
- Por não dar como provado que tenha havido fundamento para suspeição, não recorreria à imparcialidade para anular os atos em questão.
- Por fim considero que o facto de ser de 180 dias a duração do período experimental referido no ponto 3.3.3 só vem reforçar a urgência do concurso: é tão urgente proteger a floresta, que se admite que os candidatos exerçam ainda que experimentalmente, as funções de guarda florestal da GNR, permitindo assim um reforço célere do contingente de defesa do património florestal português. Por essa razão de celeridade e urgência, que aliás leva a que o próprio concurso tenha natureza extraordinária, seria dispensável o dever de realizar audiência prévia, nos termos do art. 124º/1/a). Por essa razão o único vício do procedimento administrativo seria, a meu ver, o vício de competência - vício esse que pelas razões expostas na Decisão não acarretaria efeito anulatório do ato anulado.
Juiz César Andrade
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