Revogação e Anulação no novo CPA – Coimbra VS. Lisboa
I
– Atos Secundários
Os
atos administrativos podem ser divididos em dois grandes grupos: atos primários
e atos secundários. Diogo Freitas do Amaral, em Curso de Direito Administrativo, define as duas categorias de uma
forma que consideramos ser simples e de fácil compreensão. Primeiramente, no
que toca aos atos primários, são atos que versam sobre uma determinada situação
jurídica, inovando sobre determinada matéria que a essa situação diz respeito.
Portanto, são atos que têm como objetivo abordar algo nunca antes abordado. Os atos
secundários, por seu turno, e como a própria nomenclatura deixa transparecer,
são atos que incidem sobre um ato que foi anteriormente praticado pela
Administração. Dada a sua natureza, e tendo em conta o facto de dependerem da
existência de um ato anterior, regulam indiretamente a situação jurídica que
foi criada pelo ato primário. A doutrina apelida-os, comummente, de “atos sobre
atos”.
II
– Regime Jurídico da Revogação e Anulação dos Atos Administrativos
O
regime atual, que consta da Secção IV do CPA, compreende duas figuras: a
revogação e a anulação. Importa, para que se compreenda efetivamente a razão
por detrás das duas, ter em conta a divergência entre a Escola de Lisboa e a
Escola de Coimbra. No fundo, a divergência assenta numa “questão de nomes”.
O
Ponto 11 do sumário da Revisão (de 2015) ao CPA, declara: “A revogação do ato administrativo, dada a sua importância prática, foi
objeto de toda uma secção, onde se procurou consagrar soluções hoje pacíficas
na doutrina e jurisprudência portuguesas”.
A revogação e a anulação
dos atos administrativos, atualmente, correspondem a um regime jurídico que, embora
se baseie na realidade anterior à atual, tem alguns elementos inovatórios e
bem-vindos no quadro jurídico português (na opinião de Vasco Pereira da Silva).
A alteração que se introduziu no novo CPA foi resultado de uma tentativa de
pacificação da divergência tratada infra.
Não poderemos arguir que tenha sido fruto de uma divergência doutrinária
profundamente controvérsia e que, por sê-lo requeria uma mudança urgente e
substancial. A pacificação que se tentou alcançar foi, simultaneamente, uma
tentativa de consolidação do CPA no que diz respeito às matérias que neste
trabalho trataremos.
Para que mais eficazmente
se compreenda a questão da distinção entre as duas nomenclaturas, e para que se
perceba qual o seu fundamento e consequências, torna-se necessário abordar a questão
da divergência de que temos falado.
A Escola de Lisboa, desde
muito cedo, considerou que qualquer ato que tivesse por objeto a cessação dos
efeitos de um ato anterior (portanto, um ato secundário) seria um ato de
revogação. Marcello Caetano, ilustre administrativista da escola lisboeta,
define a revogação como um “ato
administrativo que tem por objeto destruir ou fazer cessar os efeitos de outro
ato administrativo anterior praticado pelo mesmo órgão ou por um seu delegado
ou subalterno”. Os atos secundários de revogação poderiam, para o autor e
sua escola, ser classificados consoante visassem destruir os efeitos do ato
anterior (situação em que nos confrontamos com uma intenção de fazer “esquecer”
todos os efeitos jurídicos produzidos até à revogação) ou cessar os seus
efeitos (neste caso, o ato primário ainda vigora até ao momento da revogação e
os efeitos até então gerados mantêm-se intangíveis). No que concerne a este
aspeto temporal, a doutrina lisboeta advogava a diferenciação entre revogações
anulatórias e ab-rogatórias. As primeiras incidiriam sobre um ato
administrativo ainda inválido que, pela sua natureza e relevância, merecia ser
“reparado”. Esta reparação levaria à criação de novos efeitos jurídicos, mas
salvaguardaria todos os efeitos que o ato revogado (ou seja, o ato tido como
inválido) até então tivesse produzido no ordenamento jurídico. Assim sendo,
chegamos à conclusão de que as revogações anulatórias, efetuadas por meio de
ato secundário, visam a reparação da invalidade do ato primário. Por outro
lado, a escola olissiponense propunha uma secunda vertente: a da revogação
ab-rogatória. Esta, ao contrário da anulatória, almejava a cessação dos efeitos
produzidos pelo ato primário, simultaneamente destruindo todos os que até então
tivessem tido lugar. É, por isso, uma revogação com efeitos retroativos. A
revogação ab-rogatória baseava-se no mérito inerente ao ato primário. A decisão
de revogação do ato administrativo incide, nestes casos, sobre a adequação do
ato ao fim que visa prosseguir (e que aparentemente não prosseguiu – ou fê-lo
deficientemente). Não se baseia, esta última, no aspeto da validade/invalidade
do ato primário. Citando Marcello Caetano, “a
noção de revogação exposta acima é mais restrita do que a da aceção vulgar que
confunde revogação com toda e qualquer cessação de vigência de um ato, mas é
mais ampla do que a proposta pelos autores para quem só há revogação quando o
ato revogado seja válido, distinguindo-a da anulação”. É através desta
afirmação, na sua segunda parte, que podemos encontrar a existência de uma
divergência entre a escola de Lisboa (que considera poder haver revogação, quer
o ato seja válido ou inválido) e a escola de Coimbra (para a qual a revogação
incide unicamente sobre atos que se afigurem válidos). A terminologia lisboeta
unificava o regime jurídico dos dois atos secundários e atribuía-lhes uma
designação comum. No entanto, mais a Norte, em Portugal, nem todos pareciam
concordar. Desta forma, veja-se a posição de Coimbra sobre este assunto.
José
Vieira de Andrade, administrativista conimbricense, dedica parte da sua obra (Lições de Direito Administrativo) à
questão que assenta na diferenciação entre revogação e anulação. Para este
autor, a revogação tem um fundamento distinto do da anulação: a primeira
assenta numa ideia de inconveniência
atual do ato administrativo (questões de mérito para a escola de Lisboa),
ao passo que a segunda se faz apoiar na ilegalidade do ato primário. Revogar um
ato administrativo, para Coimbra, implica a cessação dos efeitos jurídicos de
um ato primário com mérito questionável; trata-se, portanto, de um ato
secundário com efeito ex nunc – com
efeitos futuros e não retroativos. A revogação visa unicamente a sanação da inconveniência atual, de modo a que
futuramente haja uma melhor atuação administrativa. Por outro lado, a anulação
do ato primário acarreta, para além de impedir a produção de efeitos futuros, a
extinção retroativa de todos os efeitos gerados desde a prática do ato anulado.
Assim sendo, concluímos que a anulação produz efeitos ex tunc. Em defesa da sua posição, José Vieira de Andrade considera
que a alteração de 2015 ao CPA introduziu uma melhoria no que diz respeito ao
tratamento diferenciado de ambos os institutos jurídicos. Faz ainda questão de
mencionar, que o tratamento conjunto das duas figuras levava, muitas vezes, a
que as soluções propostas para determinados casos fossem erróneas ou
inadequadas.
Vasco
Pereira da Silva enaltece as diferenças existentes entre cada uma das figuras
jurídicas (revogação e anulação). Ambos os atos secundários que aqui tratámos
são atos de conteúdo negativo – não visam a criação de novas regras jurídicas,
mas sim o efeito negativo de cessação de efeitos do ato primário. No entender
do Professor, a mudança de opinião por parte da Administração, traduz-se na
revogação por motivos de mérito. Isto leva a que o ato de revogação só possa
produzir efeitos futuros, aplicando uma solução mais adequada e meritosa no
futuro. Já o afastar de um ato anterior (primário), com fundamento na sua
ilegalidade, configura uma “reparação”. Se houve motivo para reparação,
naturalmente, todos os efeitos até então produzidos serão olhados como
manifestamente inadequados, pelo que se justifica a sua “anulação”. Estas
diferenças, embora para alguns possam parecer irrelevantes, são, na opinião de
Vasco Pereira da Silva, suficientes para que se tenha justificado a decisão de
alterar o regime previsto no CPA de 1991.
Diogo
Freitas do Amaral vem, sucintamente, resumir as alterações que frutam da
revisão ao CPA de 2015. No fundo, o Código passa a tratar, em paralelo, as duas
figuras que foram abordadas supra. A
própria secção onde se inserem a revogação e a anulação é epigrafada “Da
revogação e da anulação do ato administrativo”, o que, por si só, propõe o
tratamento diferenciado entre os dois institutos jurídicos. O Artigo 165 nº1
toca na matéria da cessação dos efeitos de um ato primário, por razões de
mérito, através do ato secundário da revogação. Por outro lado, o número 2 do
mesmo Artigo vem determinar a extinção dos efeitos de um ato primário (com
fundamento na invalidade deste), por via da anulação administrativa. Os Artigos
167º e 168º tratam, respetivamente, dos condicionalismos impostos à revogação e
à anulação. O Artigo 169º e os seus sucedâneos, por seu turno, estabelecem um
regime comum a ambas as figuras no que se prende com a iniciativa, competência,
forma e efeitos destes atos secundários.
III
- Conclusão
Após
esta muito breve análise, chegamos a inúmeras conclusões. Primeiramente,
importa mencionar que a divergência doutrinária entre Coimbra e Lisboa que
antecede a revisão de 2015 teve, efetivamente, peso nas alterações levadas a
cabo. Não queremos dar a entender, de modo algum, que as alterações foram unicamente
motivadas pela divergência. No entanto, é certo que esta trouxe um apaziguar da
discussão que durante muito tempo se manteve viva. Simultaneamente introduziu alterações
que, atualmente, se têm como positivas e necessárias para a maioria dos administrativistas.
Quer
tratemos de revogação ou de anulação, o que importa reter é que ambos permitem
à Administração uma atuação conforme aos princípios gerais do Direito Administrativo;
claro está, neste caso, através da sanação de possíveis vícios originadores de ilegalidade
e de falta de mérito. Ambos os
institutos jurídicos possibilitam uma constante melhoria dos atos administrativos,
que por sua vez trabalham no sentido de aumentar a completude do ordenamento
jurídico nas mais diversas matérias. Cremos que a solução atualmente adotada
pelo CPA é a mais completa e adequada; isto, tendo em vista as diversas situações
que requerem, igualmente, as mais diversas respostas.
IV
– Bibliografia
FREITAS
DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo – Volume II; 2016 3ª Edição; Capítulo
VI
CAETANO,
Marcello; Manual de Direito Administrativo Vol. II, 1982, pg. 531-533
ANDRADE,
José Carlos Vieira de; Lições de Direito Administrativo, 5ª Edição, pg. 233-235
Aulas
Teóricas Transcritas do Professor Dr. Vasco Pereira da Silva – 2018/2019
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