Qual o conceito central do Direito Administrativo?


O conceito de ato administrativo, tal como hoje o conhecemos, nem sempre foi assim, sendo que, ao longo dos anos, foram diversas as conceções de ato administrativo como forma de atuação da Administração Pública. A doutrina tende a concretizar o conceito de ato atendendo ao modelo de Estado adotado, distinguindo três grandes modelos de Estado diferentes que, por isso, vão trazer ideias muito distintas quanto ao conceito de ato administrativo.

Em primeiro lugar, temos o modelo de Estado-liberal, sendo neste período que surge em França a noção de ato administrativo. O conceito desta forma de atuação da Administração Pública surge do contencioso administrativo através da sua jurisprudência sendo depois aprimorado pela doutrina. É, aqui, possível observar que o ato administrativo desempenha uma “dupla função”: manifestação do poder administrativo (ato unilateral, cujos seus efeitos podem ser impostos coativamente); instrumento de garantia dos particulares.

É neste contexto que surgiu na doutrina a necessidade de se encontrar um conceito central que resumisse todas as características do Direito Administrativo, do qual resultou a ideia do ato centro do mesmo, sendo este uma atuação agressiva de um pode público. A administração atuava através de meios autoritários. Neste entendimento o ato era visto como uma atuação policial que expressava um poder exorbitante da Administração Pública.

Cumpre, agora, saber quais são as conceções doutrinais que levaram ao entendimento do ato como centro da dogmática administrativa, onde é possível, desde logo, confrontar as duas escolas francesas levaram ao surgimento desta ideia, a saber: “escola de serviço público”, que tinha como ideólogo Duguit, defende a construção de uma conceção de ato público adequado aos diversos poderes do Estado; “escola de poder público”, impulsionada por Hauriou, é claramente uma construção que realça a natureza autoritária de ato administrativo onde o mesmo é entendido como um poder administrativo que advém de uma manifestação de vontade com força jurídica e eficácia impositiva e coativa.

Porém, não é só em França que surgem conceções doutrinais sobre ato administrativo, autores alemães influenciados pela teorização francesa também decidem enquadrar a figura do ato administrativo no Direito Administrativo.

A conceção vinda da Alemanha, que se apresenta com mais dominante, é a de Otto Mayer, este equipara o ato administrativo à sentença judicial uma vez que o caracteriza como "manifestação da Administração autoritária que determina o direito aplicável ao súbdito no caso concreto".

Tanto a construção francesa de Hauriou, que tem por base uma manifestação de vontade, como a conceção alemã de Otto Mayer, virada para a definição de direito, são consideras as construções doutrinárias clássicas do ato administrativo e terão ao longo dos vários modelos de Estado pelos quais se vai passar, até à atualidade, uma importância peculiar pois será com base nelas que se irão desenvolver outras conceções “mais recentes” e adaptadas às realidades atuais de cada período.

De notar que o Professor Vasco Pereira da Silva destaca que em ambas a conceções "a noção de ato administrativo corresponde à lógica de funcionamento da Administração do Estado liberal pendia para uma noção autoritária", visível através da eficácia unilateral das decisões e da importância dada aos poderes de execução coativa dos atos da Administração
.
É possível concluir que a construção de ato avançada por estes autores, neste período, espelha a realidade da Administração agressiva do Estado-liberal em que, como salienta o Professor Vasco Pereira da Silva, o particular não era titular de direitos subjetivos.

Esta conceção de ato administrativo, como centro do Direito Administrativo, entra em crise com o Estado-social onde a administração passa de agressiva a prestadora de bens e serviços, o que vai levar a um entendimento diferente do ato, como forma de atuação da Administração Pública, que passa a ser uma das formas de atuação da Administração e não “a forma” de atuação, ainda que se mantenha a forma de atuação por excelência. Nesta fase, o que se procura é uma noção de ato mais flexível que resolva os novos problemas que surgem com este moderno conceito de Administração.

Aqui a relação entre a Administração e o particular é entendida como uma relação duradoura e continuada onde há uma cooperação, sendo também visível o reconhecimento de direitos subjetivos aos particulares perante o poder público.

É possível constatar que a função do ato passa agora por ajudar no cumprimento do interesse público, sendo um ato favorável aos particulares (que lhes constitui direitos e deveres). Surge assim o ato administrativo como favorável, por oposição à ideia plasmada no Estado-liberal onde o ato era autoritário e de imposição coativa que, maioritariamente, agredia a esfera jurídica dos particulares.

Neste novo modelo estadual abandonam-se os meios de imposição coativa e autoritários em detrimento de formas de ação mais pacíficas e que pressupõem uma relação entre a Administração e o particular.

Tendo em consideração o acima exposto é possível concluir que o conceito de ato administrativo trazido pela doutrina tradicional entra em crise surgindo a necessidade de novas configurações do ato. Surgem assim várias soluções que procuram trazer uma ideia de ato administrativo adaptado às realidades que se deparam com a administração prestadora.

Nas novas soluções avançadas podemos destacar três entendimentos diferentes, onde, contudo, todos reconhecem que a doutrina clássica se encontrava desadequada às realidades atuais. Sendo este um ponto em comum entre eles divergiram, no entanto, quanto à solução apresentada.

A primeira das correntes entende que é necessária uma reconstrução da realidade do ato, no entanto, considera que este deve continuar a ocupar um lugar privilegiado nas formas de atuação da Administração Pública, reconhecendo que o ato já não é uma manifestação de autoridade que, porém, merece que lhe seja reconhecida a devida importância tendo em consideração às suas características e particularidades. Desta corrente pode retirar-se o reconhecimento de outras formas de atuação da Administração Pública para além do ato, porém, o que há é uma “relativização” do ato em função das outras formas de atuação da Administração e não uma “subalternização” do ato em função dessas novas formas de atuação.

Esta conceção é maioritariamente defendida pela doutrina francesa, sendo que também é reconhecida como a conceção dominante em Portugal.

No seguimento das soluções apresentadas para nova conceção de ato administrativo, surge, igualmente, a ideia de que ao ato se deveria aplicar uma dualidade de regimes, isto é, consoante estivéssemos perante um ato no domínio da administração agressiva ou da administração prestadora. Para os defensores desta corrente, na esfera da administração agressiva, aplicar-se-ia a conceção apresentada pela doutrina tradicional, já na esfera da administração prestadora, era necessário proceder à criação de um novo sistema.

Da análise critica desta visão resulta que não é possível retirar da mesma uma solução concreta para o enquadramento do ato administrativo face às necessidades das realidade dos Estado-social. Com efeito, embora segundo os seus autores se apresente como a via mais correta estes, no entanto, não avançam com a criação de um novo sistema a aplicar no domínio da administração prestadora, logo, esta conceção apresenta-se como “incompleta”, sendo, consequentemente, necessária a posterior construção do novo sistema jurídico-administrativo que propõem tais autores.

Por fim, ainda na fase da Administração prestadora, surge uma posição que sustenta a descoberta de um novo conceito central para o Direito Administrativo que se irá dividir em duas correntes diferentes.

A primeira tem origem na doutrina alemã e sugere como novo centro do Direito Administrativo a relação jurídica, defendendo esta visão que a relação jurídica está presente em todas as formas de atuação, sendo, que esta relação permite integrar no seu ceio o procedimento administrativo.

A segunda, proveniente de Itália, sustenta que nova realidade central do Direito Administrativo deve ser o procedimento. Esta corrente sustenta a sua concretização na ideia de que o procedimento se encontra presente tanto na vertente autoritária como na vertente prestadora de atuação da administração permitindo compreender todas as formas de atuação administrativa. O ato é apenas o resultado do procedimento, sendo que este poderá dar origem a outros tipos de atuação, tais como regulamentos, contratos ou qualquer outras forma sob a qual a atuação da administração se manifesta.

Também, quanto a este ponto, cumpre salientar a posição do Professor Vasco Pereira da Silva sobre a ideia de conceito central, onde este defende que é necessário atender a diversos conceitos, sendo com base na junção desses conceitos que se construirá um conceito central para o Direito Administrativo. O Professor avança com a reconstrução do conceito de ato administrativo através da compatibilidade entre a relação jurídica e o procedimento que para si não se apresentam como realidades inconciliáveis.

Porém, também a ideia de ato proveniente do Estado-social entrou em crise devido às novas exigências de caráter político, económico e social.

Com o modelo de Estado pós-social surge a ideia de administração de infra-estuturas segundo a qual a administração atua através de atos genéricos mas, também, de forma individual. Neste período, as formas de atuação da Administração Pública, tal como eram até ai entendidas, quer no âmbito da administração agressiva, quer no âmbito da administração prestadora, já não se enquadram nas realidades que a administração apresenta. Tais realidades, como avança o Professor Vasco Pereira da Silva, são: a multilateralidade, o alargamento da proteção jurídica subjetiva e durabilidade das relações jurídicas; esbatimento da diferenciação entre formas de atuação genéricas e formas de atuação individuais.

Ora, também aqui é reconhecível que a conceção de ato administrativo está em crise, sendo necessário a sua adaptação às necessidades que esta nova forma de administração acarreta uma vez que apresenta uma complexificação das formas de atuação da Administração.

Tal com nas outras fases surge a necessidade de uma nova conceção jurídico-administrativa que enquadre o ato nas realidades sociais da atualidade. Assim, este deve ser entendido como um momento da relação jurídica entre o particular e a Administração, relação essa que é se prevê duradoura.

É também com a administração de infraestruturas que aparecem novas modalidades de ação administrativa às quais a doutrina atribui a designação de atuação administrativa informal. Esta nova forma de atuação vem tornar ainda mais saliente a desvalorização do ato administrativo na sua conceção clássica em detrimento das diversas formas de manifestação da vontade da Administração Pública. Com estas novas realidades, trazidas pelo Estado pós-social, é possível verificar que se age no sentido de se afastar o recurso a métodos impositivos da vontade por métodos de cooperação entre a Administração e todos participantes na relação em causa.

Surgem, por isso, posições doutrinária que irão no sentido de enquadrar o Direito Administrativo nesta nova realidade infraestrutural. É possível reconhecer duas orientações, uma de tipo objetivista e outra de tipo subjetivista.

A primeira não considera adequado defender como figuras centrais do Direito Administrativo as sugestões anteriormente apresentadas, isto é, o ato, a relação jurídica e o procedimento como conceitos centrais. Avançam com a ideia de Administração de intra-estruturas como conceito omni-compreensivo, que abrange toda a Administração Pública. No entendimento destes autores é defensável que neste conceito omni-compreensivo se insiram tanto realidades autoritárias como realidades prestadoras. Mais uma vez, o ato é visto como uma das várias formas de atuação da administração, deixado para trás a ideia de ato como “a forma” de atuação da Administração.

A segunda orientação coloca a sua visão nas relações que se estabelecem entre os sujeitos jurídicos. Como foi dito anteriormente, no período onde nos encontramos, as relações entre o particular e a administração passaram a ser multilaterais, produzindo também certos efeitos jurídicos na esfera jurídica de 3º (tais efeitos podem afeta-los positiva ou negativamente).

De notar que devido à multilateralidade que caracteriza as relações do Estado pós-social, em todas as perspetivas doutrinárias, tende a valorizar-se o procedimento, logo, é possível verificar uma importância cada vez mais próspera do papel do procedimento na administração dos dias de hoje.

É possível, por isso, verificar uma grande discrepância entre o entendimento inicial do Direito Administrativo que via o ato como centro e o entendimento atual no qual o ato é apenas uma das formas de atuação da Administração Pública, a qual se enquadra dentro do procedimento que está presente em todas a formas de atuação da Administração.

Bibliografia:

VASCO PEREIRA DA SILVA, «Em Busca do Acto Administrativo Perdido», Edições Almedina, 1998
Aulas teóricas Professor Vasco Pereira da Silva, ano letivo 2018/2019.

Carolina Nabais - nº58573 
2º ano - subturma 17 


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