Procedimento Administrativo, as falhas procedimentais da Câmara de Loulé
Resumo
do Acórdão
A autora do pedido pretendia construir um
empreendimento turístico numa área ambiental protegida. Em 2002, segundo a
requerente, o projeto aprovado após discussão pública permitia tal construção
(não sendo apresentada documentação que comprove a alegação), mas a versão
final, de 2005, proibia-o. A autora impugna as normas em questão do projeto e defende
que não foram ouvidos os interessados uma segunda vez antes da elaboração do
projeto final, sendo esta segunda discussão necessária devido à alteração
substancial das normas relativas à construção do empreendimento, presentes no
primeiro documento (não se comprova a alteração, havendo argumentação
contraditória da requerente e provas documentais dos últimos dois projetos em
como não havia discrepância entre os mesmos neste tema). A autora defende ainda
que não há fundamentação legal das normas e que há responsabilidade civil por
parte da Câmara Municipal de Loulé por omissão e responsabilidade de duas
outras entidades por atos ilícitos.
A autora do processo requer, então, uma
indemnização pelos danos resultantes do exposto anteriormente, tal como a
impugnação das normas para que a construção do seu empreendimento seja
autorizada.
O STA veio, então, declarar que não há
omissão por parte da Câmara pois esta realizou estudos e formulou diplomas,
nomeando entidades e cumprindo o disposto e exigido nos parâmetros dos diplomas
legais a que estavam sujeitos – existindo, portanto, fundamentos legais, tanto
para a atuação da Câmara como para a formulação dos diplomas em questão. Após
os procedimentos normais e exigíveis, que foram cumpridos, a Câmara deu decisão
desfavorável, não tendo, por isso, nenhuma omissão nem tendo agido fora da lei.
Tinha competência para dar desfavor e, após a Câmara, novas entidades se deviam
pronunciar. Porém, tendo em conta o exposto, uma decisão desfavorável à
requerente seria o mais expectável, visto se tratar duma área protegida e os meios
necessários para que fosse possível construir não poderem ser praticados.
O STA defende ainda que não estavam
preenchidos os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil
extracontratual, tendo analisado com detalhe os pressupostos dano e ilicitude,
tal como o nexo de causalidade entre a causa e o dano. Concluiu que a ação do
Município de Loulé e das entidades não constituía nem dano nem causa adequada
ao dano de A.
Sobre o ponto mais relevante para a
presente dissertação, o ICN (Instituto de Conservação da Natureza) defendeu que
a versão do novo projeto não tinha alteração substancial em relação ao diploma
anterior, estando presentes conclusões normativas semelhantes às do projeto de
2002, sujeito a discussão pública. Pelo que, de acordo com tais informações,
não desmentidas pela autora, esta tinha conhecimento das normas e não pode
alegar que as novas disposições legais não fossem expectáveis.
Assim, STA declarou, por unanimidade,
desfavoravelmente à requerente, sendo esta responsável por todos os custos
emergentes – sustentou a sua decisão, neste último ponto, na falta de provas
documentais da parte da requerente, na sua argumentação incoerente e na
semelhança normativa comprovada entre os dois diplomas, não entendendo, assim,
que fosse necessária uma segunda audiência de interessados.
De acordo com o supramencionado, este
acórdão envolve a matéria referente ao procedimento administrativo, com
destaque para a audiência de interessados. Inerente à decisão e na formulação
da mesma, atenderam-se ainda a diversos princípios orientadores da decisão e atuação
administrativa. De tal modo, é necessário abordar, resumidamente, as matérias
em apreço, para que se possa analisar a sentença administrativa da maneira mais
informada e correta possível. (0610/06 de 28/02/18).
Matérias
de Abordagem Fundamental
Os objetivos
da regulamentação do procedimento administrativo, de acordo com o
art.267.º da CRP, são: disciplinar da melhor forma possível o desenvolvimento
da atividade administrativa (racionalização dos meios), esclarecer melhor a
vontade da Administração, de modo a que sejam tomadas decisões justas úteis e
oportunas, salvaguardar os direitos subjetivos e os interesses legítimos dos
particulares, evitar a burocratização e aproximar os serviços públicos das
populações e assegurar a participação dos cidadãos na formação das decisões que
lhes digam respeito.
A natureza jurídica do procedimento administrativo (se é um processo ou
não) é um ponto que acarreta divergência doutrinária:
·
Tese
processualista
– defendida por Profs. Marcello Caetano e Freitas do Amaral. Há diferenças entre
o procedimento e o processo judicial, mas ambos são vistos como espécies do
mesmo género.
·
Tese
anti-processualista
– defendida por Afonso Queiró. O procedimento não é visto como um processo.
Tudo
está em saber se é ou não possível reconduzir o procedimento administrativo e o
processo judicial a um género comum – o conceito jurídico de processo. Para o
Freitas a resposta é sim.
Alguns dos princípios fundamentais inerentes
ao procedimento administrativo são, por exemplo, o carácter escrito, a simplificação
do formalismo a par do princípio da desburocratização e eficiência
(simplificando a atuação e sendo maleável quanto a formalismos), o princípio da gratuitidade, da decisão (Administração tem de se
pronunciar sobre as matérias da sua competência – art.9º do CPA), do direito de informação dos particulares e
o princípio da colaboração da
Administração com os particulares a par do princípio da participação dos particulares na formação das decisões que
lhes dizem respeito - art.267.º,
n.º5 da CRP e art.8.ºdo CPA.
O Prof. Freitas do Amaral defende seis
fases:
- Fase
inicial/ “da iniciativa” para Marcelo
Rebelo de Sousa – art.74º a 85º do CPA. Dá-se início ao processo: se for por
iniciativa pública, tem de ser comunicado às pessoas que podem vir a ser afetas
e que sejam identificáveis (art.110º/1), se for por iniciativa particular
(art.102º-109º CPA) deve apresentar-se um requerimento escrito ou por correio
eletrónico (se requisitos legais não estiverem preenchidos, deve notificar-se
os particulares para que corrijam essas deficiências, pois algumas não o podem
ser oficiosamente).
- Fase
de instrução – destina-se a averiguar os factos que interessem à decisão
final e à recolha das provas que se mostrem necessárias (art.86.º a 99.º do CPA).
O principal meio de instrução é a prova documental podendo ser ouvido o
particular cujo requerimento tenha dado origem ao procedimento ou contra quem
este tenha sido instaurado. É de relevar que esta audiência é uma diligência
instrutória, diferente da audiência dos interessados.
- Fase
da audiência dos interessados – regulada nos art.100.º a 105.º do CPA, para
Marcelo Rebelo de Sousa está integrada na fase da instrução, consistindo na manifestação
dos princípios da participação e colaboração da Administração com os
particulares. É um dever constitucional, presente no art.2.º da CRP.
Para o prof. Diogo Freitas do Amaral consiste na fase em que é assegurado aos
interessados num procedimento o direito de participarem na formação das
decisões que lhes digam respeito (art.101.º do CPA).
Por outro lado, para o prof. Marcelo Rebelo de Sousa, a audiência
dos interessados é o momento por excelência da participação dos particulares no
procedimento administrativo, constituindo a concretização legislativa do
imperativo constitucional de participação dos interessados na formação das
decisões que lhes digam respeito (art.267º, 5 CRP).
Tem funções subjetivas (evitar
decisões surpresa e facultar aos particulares uma oportunidade para fazerem
valer as suas posições e argumentos no procedimento) e objetivas (auxiliar a
administração a decidir melhor, de modo mais consensual e em conformidade com o
bloco da legalidade). Visto que a instrução pode continuar depois da audiência
de interessados (104º CPA) então é seguro dizer que a audiência é parte
integrante da instrução, e não posterior a esta. E, na verdade, ocorre sempre
que a administração projeta decisões suscetíveis de afetar os interessados,
inclusive durante a instrução ou mesmo fase da iniciativa.
A administração pode ouvir os
particulares e estes podem pronunciar-se sobre qualquer questão relevante
relacionada com o procedimento, sendo a administração obrigada a ouvir os
interessados sobre “o sentido provável da decisão”, sob pena de a audiência se
ter por não realizada. Os interessados podem pronunciar-se ou não, mas a
possibilidade de o fazerem tem de lhes ser dada.
Existem causas de não realização
legítima da audiência dos interessados consagradas no art.103º CPA: em caso de
urgência (103º, 1, a), quando seja razoavelmente de prever que a diligência
possa comprometer a execução ou utilidade da decisão (103º, 1, b)), quando o
número de interessados a ouvir seja de tal modo elevado que a audiência se
torne impraticável (devendo fazer-se consulta pública, sendo assim - 103º/1 c)), se os interessados se tiverem
já pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão, sobre
as provas produzidas e, necessariamente, sobre o sentido provável da decisão e
se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável
aos interessados. A audiência dos interessados é um instituto concretizador de
um princípio constitucional, logo só pode ser dispensada caso a decisão final
projetada seja inteiramente favorável aos destinatários. De qualquer dos modos,
as circunstâncias que servem de base à não realização da audiência têm de ser
fundamentadas mediante a demonstração da sua verificação em concreto, não
bastando a mera invocação da disposição legal que as prevê.
A audiência pode ser escrita ou oral,
não havendo critério de opção legal e competindo ao instrutor decidir. Quando
obrigatória ou não dispensada em concreto, a audiência dos interessados
constitui uma formalidade essencial cuja preterição acarreta vício de forma e
invalidade do ato administrativo que consubstancie a decisão final.
Se se verifique no decurso ou em
consequência da audiência que há aspetos que carecem de melhor apuramento, o
órgão instrutor pode determinar a realização de diligências instrutórias
complementares ou podem os interessados requerê-las na oposição que apresentem
em sede de audiências (art.101º, 3 CPA). Se na sequência dos dados colhidos na
audiência, a administração alterar o sentido provável da decisão, tem de voltar
a ouvir os interessados sobre este, aplicando-se o mesmo no caso de decorrer um
longo período durante o qual foram realizadas novas diligências instrutórias.
Assim, a audiência dos interessados
consiste num direito de defesa do interessado, onde este tem de ter
oportunidade de contrariar os argumentos da Administração Pública.
- Fase da preparação da decisão – 105º do CPA. Administração
pondera adequadamente o quadro traçado na fase inicial. Os funcionários
competentes apresentarão as suas informações burocráticas, os órgãos
consultivos elaborarão os seus pareceres e o procedimento é então levado ao
órgão singular competente para o despacho ou é inscrito na agenda da próxima
reunião do órgão colegial competente para a deliberação.
Consta essencialmente da elaboração de
um relatório final do instrutor, que resumirá os factos dados como provados e
proporá a pena que entender justa, ou o arquivamento dos autos. Muitos autores
não autonomizam esta fase.
- Fase
complementar
– são praticados certos atos e formalidades posteriores à decisão final do
procedimento (registos, arquivamento de documentos, sujeição a controlo ou
aprovação tutelar, publicação em DR…).
- Fase
da decisão
– cabe ao órgão competente para decidir (art.106.º do CPA).
Comentário Final
Em suma, considerando o conjunto de
informações supramencionadas, a atuação unânime do Supremo Tribunal
Administrativo (STA) no processo em análise parece seguir os preceitos e
ditames da lei, mais concretamente, do CPA.
Do ponto de vista dos princípios, na sua
atuação, o STA seguiu o Princípio da Legalidade, fundamentando a sua atuação e
a das entidades envolvidas com os preceitos legais base necessários, o Princípio
da Transparência, fundamentando e expondo a argumentação, as suas decisões e
interpretações na letra da lei de forma clara e explícita, respeitou o
Princípio da Decisão (art.9º do CPA), emanando a decisão final que lhe competia
e o Princípio da colaboração da Administração com os Particulares a par do Princípio
da Participação dos Particulares na formação das decisões que lhes dizem Respeito
- art.267.º, n.º5 da CRP e art.8.ºdo
CPA. Estes últimos parecem-me ser os mais relevantes visto que a fase da
audiência dos interessados é a fase em que mais se manifestam (Foi dada a
hipótese de se pronunciar aos interessados, tendo sempre em consideração as
suas sugestões). Embora a requerente se tenha manifestado a favor do
incumprimento das medidas necessárias por parte da Administração nesta fase do
procedimento, tendo em conta que as suas bases documentais eram incompletas e a
sua argumentação contraditória, a par do carácter de fácil julgamento do
terreno (enquanto zona protegida, seria difícil ter acesso a uma autorização de
construção) e legítima atuação dos restantes envolvidos, a decisão do STA
apresenta-se não só como possível, mas como provável que fosse no sentido
desfavorável à requerente – não foram violados quaisquer preceitos legais, não
se considerando, com as provas apresentadas e com a existência prévia duma
audiência válida e aberta que esclareceu todos os particulares que intervieram,
– inclusive a autora do processo - que existisse uma diferença substancial
suficiente entre os projetos que justificasse uma segunda audiência de
interessados.
Assim, na minha opinião, o STA realizou
uma avaliação, reuniu informação e apresentou um raciocínio lógico, claro e
explícito, entendendo que as alterações entre um projeto e outro, não sendo
significativas, pelo menos no ponto destacado pela requerente, resultariam numa
causa de dispensa de nova audiência de interessados. O procedimento
administrativo foi seguido corretamente, encontrando-se preenchidos os
requisitos dos referentes artigos do CPA, e dispensando-se nova audiência. O
único ponto em que se poderia criticar seria, de facto, no longo período
decorrente entre o primeiro projeto (2002) e o projeto final (2005), ou seja,
de três anos. Contudo, ainda assim, visto que não existe qualquer
incompatibilidade entre os dois documentos, verificando-se, pelo contrário, uma
semelhança tal que seria expectável à requerente prever o sentido das normas
futuras, “o sentido provável da decisão”,
pode considerar-se ultrapassável esse parâmetro
Para terminar, é relevante referir que
neste acórdão, em vários momentos, o STA se refere à falta de provas
documentais da requerente ou à sua argumentação contraditória – inquiri-me,
consequentemente, sobre o modo de decisão dos tribunais portugueses no geral:
seria exigível que, num contexto de negligência ou simples omissão na apresentação
de provas base, o tribunal requeresse ao autor do processo que os apresentasse,
para efeitos de justiça da decisão? De imediato se conclui que não, por óbvios
motivos de eficiência. De tal modo, está a requerente totalmente dependente da
sua atuação particular? Sim, está. O tribunal decidirá com base, meramente, nas
provas que o particular apresentar, presumindo-se que, tudo o que tinha ao seu
dispor, foi utilizado a seu favor. Presume-se que, na defesa do seu próprio
interesse, o particular tenha apresentado tudo o que pôde para se sustentar.
Caso não tenha apresentado, então presume-se a inexistência de prova ou
incapacidade de se provar as alegações. Tal, é obstáculo inultrapassável pelo
tribunal e consiste num conhecimento de que o particular dispõe previamente,
tendo consciência da possível insuficiência da sua defesa.
Bibliografia
- Rebelo de Sousa, Marcelo e Salgado de
Matos, André. 2006. Direito
Administrativo Geral: Tomo III. Lisboa, D. Quixote
- Freitas do Amaral, Diogo. Curso de Direito Administrativo: Volume II
- Pereira da Silva, Vasco. O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise
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