PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ATO ADMINISTRATIVO (ART. 163.º/5 CPA)


PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ATO ADMINISTRATIVO NO ÂMBITO DO ARTIGO 163.º/5 CPA


O artigo 163.º CPA vem esclarecer como funciona o regime da anulabilidade nos atos administrativos inválidos. O n.º 1 prevê que tipo de atos podem ser anulados; o n.º 2 disciplina a produção de efeitos de um ato anulável e sua eficácia retroativa quando, de facto, anulado; o n.º 3 possibilita que a impugnação do ato seja tanto perante à própria Administração pública que atuou, quando ao tribunal administrativo competente para tal; o n.º 4 estabelece a necessidade da anulação acontecer dentro do prazo por lei fixado; e, por fim, o n.º 5 exclui o efeito anulatório de certos atos elencados nas alíneas. 

Pois bem, este post destina-se a esclarecer a relação entre um ato anulável e o princípio do aproveitamento dos atos administrativos, com base, precisamente, no n.º 5 do artigo 163.º CPA. 

A anulação de um ato administrativo destina-se a fazer cessar os efeitos deste ato por ter ferido a legalidade necessária ou por falta ou vício de elementos essenciais à existência do ato. E como é sabido, o regime da anulação é residual frente a nulidade, e só opera nos casos de violação dos princípios enumerados no artigo 3.º e seguintes do CPA e nos restantes presentes neste mesmo código, assim como para outras violações que a lei indique como sanção a anulabilidade. 

Entretanto, há princípios introduzidos nos novo CPA que sozinhos, ainda não se pode afirmar, que conseguem a anulação do ato, uma vez que ainda não se formou uma tradição jurisprudencial consolidada e dogmática desta capacidade para obter invalidação - v.g. princípio da boa-administração (art. 5.º) e princípio da razoabilidade (art. 8.º). A justificativa em que se baseia este facto é que um ato não pautado em critérios de eficiência, economicidade e celeridade não deverá ser anulado, mesmo que violando tais princípios, assim como se anulam atos ilegais por violação de outros princípios “juridicamente mais relevantes”, como o princípio da imparcialidade (art. 9.º), princípio da proporcionalidade (art. 7.º), princípio da igualdade (art. 6.º) e outros. Todavia, penso que seja também uma questão de tempo para que os tribunais administrativos e a própria doutrina desenvolvam e ressaltem melhor a relevância destes novos princípios consagrados em 2015, e que em quatro anos de positivação não levantaram muitas questões conflituosas. 

De forma a se perceber em que casos o efeito anulatório não deverá ser produzido, primeiro temos que perceber do que se trata os efeitos da anulação de um ato administrativo. 

O Professor Doutor Licínio Lopes Martins, escreve que a rasa clarificação do n.º 2 do artigo 163.º não basta para definirmos quais são esses efeitos anulatórios e como operam. Deverá, então, ser feita uma conjugação deste artigo como o artigo 165.º/2, o artigo 156.º/2 alínea c) e o artigo 168.º, todos do CPA. O 165.º/2 fornece o conceito necessário de anulação administrativa que se traduz num “ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”; todavia, sobre alguns atos os efeitos da anulação administrativa não se produzem, ou seja, há condicionalismos a verificar para aplicação do 165.º/2. Estes condicionalismos elencam-se no artigo 168.º, porém, segundo o mesmo Professor, deve o artigo ser objeto de uma interpretação restritiva no que se trata de atos favoráveis aos destinatários - atos que não têm necessariamente de esgotar-se na noção de atos constitutivos de direitos -, exigindo-se, pelo menos, que estes tenham contribuído para a causa da invalidade ou para o erro do agente ou, no mínimo, que conhecessem ou não devessem ignorar essa causa de invalidade ou erro do agente. Consoante a eficácia retroativa (ex tunc) da anulação, o artigo 156.º no n.º 1 diz que os atos administrativo que tem efeito retroativo são os que se limitam a interpretar atos  (alínea a)) ou os atos que a lei atribua tal eficácia (alínea b)). Fora esses casos o autor do ato pode atribuir a eficácia ex tunc quando seja devido a dar melhor cumprimento às decisões dos tribunais ou a uma anulação administrativa (alínea c) do n.º 2). Ou seja, o que o artigo 163.º/2 prevê é uma possibilidade de ser conferida eficácia retroativa, possibilidade essa que será utilizada se preenchido o pressuposto da alínea c) do 156.º/2.

Chegado ao cerne da questão, releva dizer que o princípio do aproveitamento dos atos administrativos serve como base para o afastamento da relevância anulatória dos atos administrativos presente nas alíneas do n.º 5 do artigo 163.º CPA. 
O princípio funda-se em basicamente três outros princípios: (1) princípio da economia dos atos públicos, uma que vez que decisões desnecessárias devem ser evitadas; (2) princípio da boa administração, requer uma atividade administrativa mais célere e eficiente; e (3) princípio do interesse público, que é sempre a ultima ratio de qualquer atuação administrativa. 

Artigo 163.º (Atos anuláveis e regime da anulabilidade)
5 — Não se produz o efeito anulatório quando:
a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

A doutrina escreve que o legislador decidiu consagrar uma obrigação legal de aplicação deste artigo quando estejam preenchidos os pressupostos de operatividade; solução diferente da que era visada no Anteprojecto de revisão do CPA - onde era pensado como uma faculdade. Este também fazia só referência ao juiz administrativo, excluindo a vinculação da norma à Administração, mas a letra acabou por não diferenciar nenhum dos destinatários, a considerar, por sua vez, ambos vinculados.

O Professor Luís Heleno Terrinha começa por criticar a construção do artigo 163.º/5 no seu proémio descrevendo-o como paradoxal - o ato administrativo anulável não-anulável. “O paradoxo, neste caso, reside em querer afastar o que se pressupõe, ou, mais rigorosamente, em afastar (algo) porque se pressupõe (esse algo)”. O que o Professor quer dizer é que só existe a possibilidade do ato anulatório não produzir seus efeitos porque existe a possibilidade dele os produzir, em primeiro plano. Mas isso não quer dizer que haja validade ou validação do ato, no entanto. O que o legislador parece ter feito é uma separação do “efeito anulatório” da “anulabilidade”, mesmo que aquele seja a decorrência mais nuclear desta; o legislador conserva formalmente a ilegalidade (anulabilidade), mas não materialmente (efeito decorrente da ilegalidade). Logo, o n.º 5 do artigo 163.º deve operar sobre os efeitos da intocada invalidade e não sobre a causa da ilegalidade (“ofensa aos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis”).
O artigo 163.º/5 enraiza uma espécie de pressuposto negativo da anulação jurisdicional: a decisão de anulação de um ato administrativo engloba uma forma que é tanto composta pela anulabilidade (identificação da invalidade do ato) como pela não-anulação do anulável (identificação da ausência de pressupostos de não produção do efeito anulatório nos termos do 163.º/5). Traduzindo: para que possa ocorrer uma anulação formal e material de um ato que viola princípios e outras normas jurídicas é preciso que haja a possibilidade de anulação inicial e ainda que não esteja verificada nenhuma das causas das alíneas do 163.º/5.

Alínea a), 1ª parte: não se produz o efeito anulatório quando conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculativo. Isso quer dizer que a lei determina o conteúdo que o ato tem que ter antes da Administração praticá-lo - ato vinculado

Alínea a), 2ª parte: aqui pressupõe-se uma margem de discricionariedade da Administração para decidir, diferente da 1ª parte. Entretanto, a discricionariedade é reduzida a zero quando apenas há uma solução legalmente possível, ou seja, apesar da discricionariedade de escolha ser fornecida à Administração, a apreciação das concretas circunstâncias do caso conduz à impossibilidade de equacionar alternativas decisórias, restando só uma única solução como possível. Em termos simplificados quer dizer que a Administração decidiu como decidiu por falta de alternativa mais acertada, o que conduz a que o interessado na impugnação e os vícios alegados sejam inoperantes.

DISTINÇÃO ENTRE VINCULAÇÃO E REDUÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE A ZERO: a redução de discricionariedade a zero, longe de ser um produto normativo pré-dado a aguardar cognição de um intérprete, é ela mesma o resultado de um processo e da confluência de uma miríade de vectores normativos, donde decorre a relevância, designadamente, da observância das vinculações legais procedimentais.

Alínea b): nesta alínea estão em causa as irregularidades do ato administrativo quando não se respeita às formas e formalidades necessárias ao ato, mas ainda sim o fim visado tenha sido alcançado. Recorre-se à ideia de que se o fim visado pela norma violada foi atingido por outra via, então o vício procedimental-formal cometido foi inócuo, ou seja, não foi nocivo a ponto de desviar o ato do seu objetivo. O problema inerente à aplicação desta alínea recai na consequente degradação e desvalorização de elementos do procedimento administrativo, que, por sua vez, têm vindo a ser exaltados pelo Direito Administrativo; e que poderia resultar numa consolidação de uma prática contrária ao que se prega atual e axiologicamente na Ciência administrativa.
Por exemplo podemos citar a emissão de um parecer obrigatório fora do prazo (92.º CPA).

Alínea c): podemos associar a disposição desta alínea ao que se costuma chamar no Direito Civil de relevância negativa da causa virtual, que significa uma imutabilidade do resultado final apesar de o autor do ato ter ou não seguido as diligências a que estava submetido, especificamente aqui uma atuação sem vícios. Trata-se de aproveitar atos praticados no exercício de um competência discricionária (sem haver redução). 
O Professor Luís Heleno Terrinha não vê como conseguir declarar que um trâmite procedimental que não foi observado, mas que devia ter sido, não teve - nem teria - influência no conteúdo do ato, precisamente quando se estava no âmbito da discricionariedade onde várias decisões são juridicamente possíveis. A discricionariedade fundamenta exatamente o contrário. 
A expressão “sem margem de dúvidas” utilizada pelo legislador de forma a dificultar o aproveitamento dos atos acaba por reforçar a crítica que se faz, uma vez que requer uma ideia de comprovação da ausência de dúvidas sobre a influência, o que é bastante mais complicado de ser evidenciar quando o sentido decisório a adotar não é juridicamente pré-determinado por lei. 
O problema inerente é a decorrente irrelevância do erro do agente quando se comprove que o resultado teria o mesmo conteúdo, o que poderia por em causa a diligência necessária que o autor teria na prática do ato, uma vez que poderia pensar pela negativa: se o conteúdo será o mesmo com ou sem este vício, por qual razão hei-de ser mais diligente quando posso ser menos?
Mas contra isso a doutrina tem sido muito rigorosa nos moldes que se permite aproveitar o ato anulável: além de não poder suscitar dúvidas razoáveis, ainda cabe à Administração o ónus de demonstrar clara e objetivamente que o vício foi e seria irrelevante para a decisão final. E fá-lo-á com base na documentação dos atos e das formalidades do procedimento. 
Do contrário exigido nas alíneas anteriores, esta requer um nexo causal que se tem que estabelecer entre a irrelevância do vício no conteúdo da decisão concreta para que possa afirmar a inobservância do efeito anulatório do ato administrativo à luz do n.º 5 do artigo 163.º CPA, como prevê Pedro Machete (juiz constitucional).
Esta alínea pode se enquadrar nos casos onde é violado o direito de audiência prévia que o particular-interessado tem e no juízo de prognose póstuma concluiria-se que mesmo se tivesse havido audiência o resultado material era idêntico. Há, porém, um limite à inoperância dos vícios: é um limite intransponível nos direitos de defesa e audiência do arguido, por se encontrarem abrangidos pelo regime dos direitos, liberdades e garantias. Portanto, se violado este direito fundamental (no entendimento de parte da doutrina) à audiência prévia a culminação em nulidade é assegurada pelo artigo 161.º/2 d). O artigo 163.º/5 não poderá aproveitar atos nulos.

Conclui-se que o artigo 163.º/5, no âmbito das alíneas a) e c) aplica-se a vícios formais, procedimentais ou materiais e só se encontra abrangido por vícios formais ou procedimentais na alínea b).
Finda-se por dizer que como não se trata de uma validação legal do ato não está excluída a possibilidade de indemnização, como escreve o Professor José Carlos Vieira de Andrade, se tiver havido a causação de danos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos de particulares, seja por danos não patrimoniais (para quem os admita em casos de violação de preceitos formais), seja por danos causados por diferenciação temporal (hipotética). 


BIBLIOGRAFIA

LOPES MARTINS, Licínio, “A invalidade do acto administrativo no novo Código do Procedimento Administrativo: as alterações mais relevantes”, em Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2ª Edição (2015).

HELENO TERRINHA, Luís, “Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto” em Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2ª Edição (2015).

ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições de Direito Administrativo (2017)

MACHETE, Pedro, Cadernos de Justiça Administrativa Braga, nº 101 (Setembro - Outubro), 2013


Lucca Maia Beliene, 57600, Subturma 17

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