Princípio da imparcialidade – Family gate


Princípio da imparcialidade – Family gate

Rodrigo Leitão Dias, nº58545

“A lei que vigora é uma lei que não é tão exigente quanto é hoje a opinião pública portuguesa. A lei já tem quase 20 anos e é uma lei em que, por exemplo, os primos não são apanhados por uma decisão no plano administrativo. Hoje, a sensação que tenho é a de que o escrutínio e o juízo da opinião pública são mais exigentes. Vale a pena rever a lei em conformidade.”

In https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/marcelo-diz-que-vale-a-pena-limitar-relacoes-familiares-no-governo

Princípio da imparcialidade

O princípio da imparcialidade merece consagração legal no artigo 9º do Código de Procedimento Administrativo (CPA). Assim, ser imparcial implica considerar “com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório”. Não havendo lugar ao favorecimento de uma das partes em causa por critérios que não sejam objetivamente atendíveis, importa desempenhar uma “posição fora e acima das partes”[1]. O mesmo resulta do número 1 do artigo 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que exalta a necessidade de uma administração totalmente imparcial.

É ainda feita referência no artigo 266º/2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) ao estabelecer como corolário o respeito pelos órgãos e agentes administrativos ao princípio da imparcialidade.

A doutrina tem vindo a desenvolver este princípio salientando duas vertentes. Assim, a vertente positiva do princípio da imparcialidade obriga os órgãos administrativos a apreciar todos os interesses que se sejam juridicamente revelantes no contexto em causa (tal como estabelece o art. 9º do CPA). Tal como salienta o Professor Freitas do Amaral há que “ponderar todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos, equacionáveis para o efeito de certa decisão, antes da sua adoção”. Por outro lado, como postulado da vertente negativa surge o dever de ponderar apenas os interesses que se mostrem pertinentes para o caso concreto, surge assim uma proibição de ponderar interesses “que à luz do fim legal a prosseguir, sejam irrelevantes para a decisão”[2]. Do mesmo modo, o Professor Vieira de Andrade contrapõe vertente subjetiva, a imparcialidade do agente decisor, à vertente objetiva que se prende com a imparcialidade da decisão.

Com isto, surge uma realidade dicotómica quanto à atuação da Administração Pública. Se por um lado temos que a Administração está vinculada ao princípio da imparcialidade também é verdade que, por outro lado, a Administração tem de ser parcial ao prosseguir o interesse público.

Regime jurídico

O regime jurídico aplicável a esta situação concreta encontra-se plasmado nos artigos 69º e seguintes do CPA.

No artigo 69º do CPA são enumerados os casos de impedimentos, sendo classificados como os mais graves. O elenco de alíneas do número 1 deste artigo é taxativo. Assim que alguma das situações constantes das alíneas deste artigo se verificar, o titular do órgão ou o agente administrativo fica impedido de intervir no procedimento administrativo. Quanto à interpretação da expressão “não pode intervir” o Professor Freitas do Amaral, contrariando uma visão com estrita correspondência na letra da lei, entende que apenas devem ser consideradas como proibidas as interferências que se manifestem sob a forma de decisão (ou num ato que influencie significativamente a decisão).

Tal como dispõe o artigo 70º/1 do CPA, sempre que se verifique uma situação de impedimento o titular de órgão ou o agente da Administração Pública deve comunicar o facto ao respetivo superior hierárquico, neste seguimento, após efetuada a comunicação o órgão deve suspender a sua atividade no procedimento. Qualquer interessado tem ainda a faculdade de pedir a declaração de impedimento.

Quando for declarado o impedimento o órgão/agente é imediatamente substituído no procedimento.

Por seu turno o artigo 73º/1 do CPA, refere-se às situações de escusa, posição em que o órgão devia pedir escusa de intervenção no procedimento, e de suspeição, os interessados no procedimento possuem o direito de levantar suspeição. Estas situações não precisam de um enquadramento taxativo em cada uma das alíneas, é um preceito meramente exemplificativo, ou seja, sempre que se constituam sérias dúvidas de eventual violação do princípio da imparcialidade poder-se-á ponderar a aplicação do artigo 73º/1. Não obstante, este artigo ainda tipifica algumas situações. Nestes casos, ao contrário do que acontece no impedimento, o titular envolvido não é automaticamente substituído será necessário a oposição de escusa ou de suspeição.

Assim, quanto ao caso paradigmático das relações de primos (quarto grau da linha colateral) cumpre analisar estes artigos. O art. 69º/1/b) apenas dispõe quanto ao impedimento nos casos em que tenha interesse o seu cônjuge, algum parente em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, como tal, esta situação não se enquadra nas alíneas deste artigo. Quanto aos casos de escusa ou suspeição a alínea a) do número 1 estende o âmbito até ao terceiro grau da linha colateral, continuando a não ser reconduzível. Tendo em conta a falta de taxatividade do artigo 73º/1 poder-se-á considerar reconduzível à disposição geral. De referir ainda a alínea d) do artigo 73º/1 no que toca à “grande intimidade”.

A consequência de violação de alguma destas disposições encontra-se no artigo do 76º e conduzem à anulação do ato ou contrato, para além do referido no número 2 do artigo que leva à consideração de uma falta grave para efeitos disciplinares.

Tratando-se de um ato administrativo, pelo disposto no artigo 163º/2, é anulável produzindo efeitos jurídicos, ao contrário do ato nulo que nunca os produz, ainda que estes possam vir a ser destruídos retroativamente. Com isto, torna-se imperativa a impugnação do ato para que os efeitos possam ser eliminados, da ordem jurídica. Será necessária uma intervenção ativa daquele que se sente prejudicado junto dos tribunais para que surta efeito. Esta condição está igualmente sujeita às alíneas do 163º/5, que podem levar a que o efeito anulatório não seja produzido.

O Professor Vasco Pereira da Silva coloca a questão de saber se todos os atos praticados por um titular de um órgão nomeado em violação do princípio da imparcialidade serão, por consequência, anuláveis. Parece que o caráter retroativo quanto aos efeitos do ato administrativo de nomeação nos permite afirmar que o órgão perderia a legitimidade para agir no desempenho das suas funções.

A consequência apenas seria diferente se se verificasse um caso de desvio de poder. Aqui ter-se-ia o ato como nulo (artigo 161º/2/e)). Este vício traduz-se na disparidade entre o fim que a norma legal visa prosseguir e o fim que o órgão administrativo efetivamente prossegue. O Professor Freitas do Amaral distingue o desvio de poder para fim público e para fim privado. No primeiro caso a dissonância entre o fim o legal e o real ocorre ainda que na sua origem esteja um interesse público. Por outro lado, se o órgão ao invés da prossecução do interesse público optar pelo interesse privado está constituído um caso de desvio de poder para interesse privado.

Âmbito de aplicação

Importa igualmente delimitar o âmbito de aplicação do princípio da imparcialidade. Se é certo que as entidades e órgãos que desenvolvem uma atividade exclusivamente administrativa estão sujeitos ao que está estipulado no CPA, há casos que podem oferecer dúvidas. Deste modo, urge tentar delimitar as suas fronteiras de aplicação.

Neste seguimento encontram-se submetidas a este postulado, “todas as autoridades ou entidades, públicas ou privadas que, [em decorrência da sua natureza funcional], de alguma forma exerçam a função administrativa ou pratiquem atos em matéria administrativa”[3]. O critério que permite segregar as realidades às quais se aplica o disposto no CPA relativamente a este assunto, reconduz-se ao espaço material de atuação das entidades.

O Professor Vasco Pereira da Silva reforça esta posição ao afirmar, no concreto caso do Governo, que os adjuntos, os assessores, os chefes de gabinete não exercem função estritamente cometidas à área da política. As suas funções estendem-se a um domínio administrativo, de acordo com as competências que lhes sejam delegadas. Neste sentido, todo e qualquer órgão que desempenha a função administrativa encontra-se submetida a este princípio.

O órgão complexo Governo, tal como se encontra estabelecido no artigo 182º da CRP, é “o órgão superior da Administração Pública”, desempenhando funções de índole política e administrativa. Esta dualidade não coloca em causa o respeito pela vertente administrativa. Assim, na medida em que possui competências administrativas (art. 199º da CRP) tem de se conformar com os princípios modeladores da atividade da Administração Pública.

Em termos práticos, a falta de imparcialidade na atuação administrativa torna-se de difícil prova, maioritariamente nos casos em que não se verifique nenhuma relação familiar. “A vinculação ao princípio da imparcialidade, impõe à administração um papel ativo na sua aplicação, obrigando-a a verificar a existência de eventuais conflitos de interesses”[4]. Como tal, o ónus probatório da imparcialidade recai sobre os órgãos da administração pública que por via do artigo 9º do CPA se obrigam a “[adotar] as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção”

Ainda que o domínio destas matérias comporte uma vertente política vincada será sempre relevante a sua análise jurídica.

Bibliografia

AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 4º edição, Almedina, 2018

ANDRADE, Carlos Vieira de, Lições de Direito Administrativo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017

SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado, Direito Administrativo Geral – Atividade Administrativa, Tomo III, 1ª edição, Dom Quixote, 2007

RIBEIRO, Maria Teresa de Melo O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, Almedina, 1996










[1] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 4º edição, Almedina, 2018
[2] Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral – Atividade Administrativa, Tomo III, 1ª edição, Dom Quixote, 2007
[3] Maria Teresa de Melo Ribeiro, O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, Almedina, 1996
[4] Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2ª edição, AAFDL, 2015

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