O Regime da invalidade dos contratos públicos
O regime da invalidade dos contratos públicos
Analisado com base em “A restrição dos efeitos das sentenças de invalidade nos Tribunais Administrativos” - Sánchez, Pedro Fernández
O regime comum dos contratos públicos, no que diz respeito à invalidade, encontra-se presente nos arts. 283º a 285º CCP. Esse regime desdobra-se em 2 planos: o da invalidade consequente, que consta dos arts.283º, e o da invalidade própria e do regime da invalidade, que consta dos arts. 284º e 285º CCP.
O regime da invalidade consequente é aplicável a todos os contratos da Administração Pública, independentemente de revestirem ou não natureza de contratos administrativos, assim sendo, esse regime deve ser aplicado, ainda que por analogia, mesmo a contratos que não devam ser qualificados como contratos administrativos ou que não se integrem no âmbito de aplicação do CCP.
Invalidade consequente
O CCP nos art. 283º estabelece um regime específico para as invalidades contratuais como consequência da invalidade de atos procedimentais que deram origem ao contrato, designadamente ilegalidades cometidas no âmbito do procedimento pré-contratual, dando, desse modo, atenção às implicações sobre a validade dos contratos públicos que podem resultar de eventuais violações de regras de contratação pública e, em geral, das consequências que, para a validade de um contrato, podem resultar da invalidade de um ato administrativo em que tenha assentado a sua celebração: aquilo que, no art 283º CCP se qualifica como invalidade consequente do contrato.
O CCP, nesta matéria, parece manter-se fiel à lógica em que assentava o art 185º do antigo CPA, do qual resulta que “o contrato é nulo ou anulável, consoante seja nulo ou anulável o ato administrativo em que se fundou a sua celebração”. Porém, a nulidade do ato pré-contratual só releva se for declarada e, segundo o art. 101º do CPTA, tem-se entendido que o pedido de declaração de nulidade tem de ser deduzido no prazo de um mês, sob pena de preclusão.
Quanto à anulabilidade, o art. 283º/2 e 4 são determinados pelo propósito de limitar os casos de anulação por razões pré-contratuais, não só “quando se demonstre inequivocamente que o vício não implicaria uma modificação subjetiva no contrato celebrado nem uma alteração no seu conteúdo essencial”, mas também às situações em que “ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vício procedimental em causa, a anulação do contrato se revele desproporcionada ou contrária à boa fé” – art. 283º/4. De referir, que este regime de restrição do efeito anulatório previsto no nº4 não apresenta paralelo para o caso de contratos viciados por nulidades procedimentais – diferentemente da dualidade que o CPA apresenta no art 162º/3 e no 163º/5.
O 283º/4 CCP formula dois motivos justificativos para a não produção do efeito da sentença anulatória:
Por um lado, o facto de se permitir uma ponderação dos “interesses públicos e privados em presença e da gravidade do vício, de modo a aferir se a anulação do contrato seria ou não desproporcionada ou contrária à boa fé”. Esta ponderação obriga a que o Tribunal aprecie fatores como os atinentes ao tempo que já decorreu da execução do contrato, os danos que as possíveis suspensões da sua execução podem provocar para a coletividade beneficiada com as suas prestações ou para os demais interesses públicos que foram prosseguidos pela decisão de contratar, entre outras situações.
Por outro lado, o art 283º/4 formula outra causa habilitante para afastar o efeito anulatório, que assenta na remissão feita para o art. 283º/2 em que “se demonstrar inequivocamente que o vício não implicaria uma modificação subjetiva no contrato celebrado nem uma alteração do seu conteúdo essencial”, parecendo com isto que o Tribunal deveria confirmar se o contrato celebrado ainda seria o mesmo no caso de o procedimento que lhe deu origem não sofresse de qualquer vício. No entanto, a alteração legislativa de 2017 veio formular uma verdadeira inversão do ónus da prova em favor do aproveitamento do contrato administrativo. Na verdade, com o art 283º/2 CCP, o legislador passou a impor ao Tribunal que – como requisito prévio à própria verificação da anulabilidade – “se demonstre que o vício é causa adequada e suficiente da invalidade do contrato”, o que pode ocorrer “designadamente por implicar uma modificação subjetiva do contrato celebrado ou uma alteração do seu conteúdo essencial”. Numa lógica de aproveitamento dos contratos administrativos, parece aqui manifestar-se a preferência pela manutenção em vigor do contrato anulável, sendo precisamente ao interessado que pretende obter a sua anulação ou ao Tribunal que prolata a sentença inválida que incumbirá cumprir o ónus da prova de que o vício do ato procedimental se transmitiu ao contrato que dele emergiu. Esta demonstração de que o vício não produziria consequências graves sobre o contrato opera, não já como requisito para afastamento do efeito anulatório, mas verdadeiramente como requisito para a própria ocorrência de uma anulabilidade: o contrato não se considera sequer inválido (anulável) se não for cumprido o ónus de provar que a invalidade prévia constituiu causa adequada e suficiente de uma consequente invalidade do contrato.
Relativamente ao regime da nulidade dos contratos administrativos – 283º CCP -, retomando o que supra se havia referido, parece que o legislador impôs uma solução rígida, não admitindo a possibilidade de existir restrição do efeito anulatório de contratos administrativos nulos celebrados em consequência de atos procedimentais nulos. Ou seja, parece que o legislador cominou a total improdutividade ab initio de produção de efeitos jurídicos.
Porém, esta ideia afigura-se errada. Na verdade, o art 283º/1 estabelece que a nulidade de um contrato só existe “se a nulidade do ato procedimental em que tenha assentado a sua celebração tenha sido judicialmente declarada ou ainda possa sê-lo”. Ora, esta disposição remete o intérprete para os condicionamentos impostos pelo regime do contencioso administrativo pré-contratual previsto no 101º CPTA, que estabelece o prazo de um mês para a impugnação da nulidade de um contrato administrativo com fundamento em atos procedimentais nulos. Ou seja, qualquer dos atos de adjudicação abrangidos pelos arts 100º e ss CPTA torna-se inatacável, inimpugnável e irrevogável após o prazo de um mês desde a sua prática, independentemente de qual seja o seu vício. Na sequência disto, quando o legislador do CCP reservou o regime da nulidade consequente dos contratos só para os casos em que estes derivam de atos cuja nulidade já tenha sido judicialmente declarada ou ainda possa sê-lo, estava a presumir que, ao fim de um mês após a prática do ato de adjudicação que dá origem à celebração do contrato, tal nulidade nunca mais poderá ser judicialmente declarada e, em consequência, tão pouco o contrato que emerge desse ato anulo pode ser colocado em crise. Compreende-se agora a razão pela qual o legislador julgou desnecessário alargar o regime da restrição de efeitos de sentenças invalidantes de contratos nulos: é que o próprio condicionamento à declaração de nulidade dos atos procedimentais que precedem esses contratos já impede a própria propositura da ação judicial decorrido um mês após a prática desses atos.
Contudo, esta estratégia legislativa ameaça problemas: fazendo depender a própria existência de uma nulidade contratual da possibilidade de a nulidade do ato procedimental anterior ser ainda invocada em Tribunal, parece dar-se a entender que o ato pré-contratual nulo efetivamente se convalidou após o decurso do prazo de um mês a que se refere o art 101º CPTA, visto que, a partir de então, o contrato que dele nasce não apenas fica protegido dos efeitos de uma sentença judicial como simplesmente não é nulo. Ou seja, “para o legislador, o mero decurso do tempo assegura a eliminação da nulidade e a convalidação do contrato nulo, sem que o aplicador deva indagar sobre qualquer outro requisito”. Eis um problema da teoria das invalidades dos contratos administrativos.
Merece ainda ênfase o facto de, ao contemplar o resgate dos efeitos jurídicos de um contrato anulável, o legislador não impor já ao Tribunal a mesma obrigação de restrição do efeito anulatório da sentença invalidante que impõe no 163º/5 CPA. Na verdade, em matéria contratual, o legislador é inequívoco ao permitir uma ampla margem de apreciação judicial quanto à produção do efeito anulatório (“o efeito anulatório pode ser afastado por decisão judicial ou arbitral”.
Assim, cumpre ao Tribunal ponderar a gravidade das consequências de destruir o contrato ou de preservar os seus efeitos em prejuízo da reposição da legalidade vigente: trata-se “de uma ampla discricionariedade jurisdicional na valoração e hierarquização de todos os interesses conflituantes”.
Regime da invalidade própria do contrato
No que respeita à invalidade própria do contrato, o 284º e o 285º CCP são relevantes. Do art 284º/1 e 2 resulta que, independentemente do contrato que esteja em causa, ele sempre será nulo ou anulável se, em relação a ele, ocorrerem circunstâncias que determinariam a nulidade ou a anulabilidade de um ato administrativo: pense-se, p. e. no contrato celebrado por autoridade sem competência para o efeito ou com objeto legalmente proibido. Nesse sentido, parece dever ser, na verdade, interpretada a remissão implícita do art 284º/1 para o art 163º/1 CPA e a remissão explícita do mesmo artigo para o 161º/2 CPA.
Por conseguinte, os contratos administrativos podem ser, desde logo, nulos ou anuláveis por vícios próprios, sempre que, em relação a eles, se verifiquem circunstâncias que também determinam a nulidade ou a anulabilidade dos atos administrativos – 284º/1 e 2 CCP. Além disso, são também anuláveis, nos termos do CC, por falta ou vícios da vontade.
A reforma do CCP propôs o art 285º/4 CCP, que autoriza o Tribunal a determinar que, “ caso não seja possível a redução ou a conversão do contrato e o efeito anulatório se revele desproporcionado ou contrário à boa fé, pode este ser afastado por decisão judicial, ponderados os interesse público e privado em presença e a grávida do vício do contrato em causa”. Também aqui se consagra uma esfera mais alargada de ponderação das consequências dos efeitos anulatórios das sentenças aos tribunais administrativos.
Deve sublinhar-se que, no plano da atividade contratual da Administração, a potencialidade de restrição de efeitos anulatórios será ainda maior do que aquela que se verifica no julgamento da invalidade dos atos administrativos. É que, com a remissão que o 285º/1 estabelece para o regime de invalidades do CPA, o aplicador já obtém habilitação para se socorrer da tripla clausula mitigadora prevista no 163º/5 CPA – além da clausula prevista no 162º/3. Ou seja, no plano da anulabilidade, o art 285º/4 não vem substituir-se aquela tripla clausula, mas sim fazer acrescer a ela uma nova autorização para, no domínio contratual, se proceder à ponderação que o CPA nunca previu para os atos anuláveis.
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas, “Curso de Direito Administrativo", volume II, 2ª edição, Almedina, 2012
“Revista de Direito Administrativo #2”, (Maio- Agosto),2018
SÁNCHEZ, Pedro Fernández, “A restrição dos efeitos das sentenças de invalidade nos Tribunais Administrativos”
Diogo Martins Lopes
Nº 58684
Turma: B
Subturma: 17
Comentários
Postar um comentário