O Princípio da Igualdade: Proibição de Discriminação e Obrigação de Diferenciação
O
princípio da igualdade surge-nos como um dos “elementos estruturantes do
constitucionalismo moderno”, tal como proposto por Diogo Freitas do Amaral.
Este elemento, pela relevância que assume no panorama do ordenamento jurídico
português (bem como nos restantes ordenamentos que perfilhem os mesmos “traços
jurídicos”), encontra-se consagrado ao longo do texto constitucional a respeito
dos mais variados assuntos. Primeiramente, num âmbito mais geral, o Artigo 13º,
verte o seguinte:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou
condição social.”
Já
o Artigo 266º nº2, que se insere no Título IX, respeitante à atuação da
Administração Pública, reitera:
“Os órgãos e agentes administrativos
estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas
funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da
justiça, da imparcialidade e da boa fé.”
É
facto que os princípios se organizam numa rede, tendo que existir um equilíbrio
na sua aplicação conjunta. Isto, de modo a que a aplicação de um não implique o
desrespeito face a outro – desrespeito este, que poderia vir a comprometer uma
atuação adequada e conforme à lei da Administração Pública. Por este motivo,
surgiu a necessidade de consagrar, no Código de Procedimento Administrativo,
aquela que parece ser uma disposição que integra partes dos dois Artigos
supramencionados. O Artigo 6º do CPA estabelece, nesse sentido, o modo como
deve a Administração atuar perante os particulares:
“Nas suas relações com os
particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da
igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer
direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de ascendência, sexo,
raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação
sexual.”
Assim
sendo, tendo sido feita uma contextualização das previsões legais respeitantes
ao princípio da igualdade, cumpre apreciar aquela que consideramos ser a
questão de maior controvérsia no que concerne à utilização e aplicação deste
princípio. Para tal, abordaremos a origem histórica do mesmo, que se prende
intimamente com as questões de tratamento desigual e discriminatório. De
seguida, abordaremos a duas direções em que se reparte o princípio da igualdade
atualmente.
I
– Origem Histórica:
Maquiavel,
tido como o criador da ciência política moderna, disse: “Dê o poder ao homem, e
descobrirá quem ele realmente é”. Cremos que esta ilustre afirmação representa
de forma fidedigna aquela que foi a conceção política até ao século XVIII. Os
círculos políticos com poderio significativo impunham, contra a vontade do
povo, e muitas vezes de forma coerciva, aquela que consideravam ser a melhor
maneira de alcançar um determinado objetivo. O que é facto é que esse objetivo,
na maioria dos casos, se orientava única e exclusivamente pelo que de positivo
adviria para esses círculos; ou seja, a opinião dos oprimidos era completamente
irrelevante. Denis Diderot, nascido no século XVIII, exprimiu a sua opinião
relativamente a este assunto: “O consentimento dos homens reunidos em sociedade
é o fundamento do poder. Aquele que só se estabelece pela força, só pela força
pode subsistir.”
No
fundo, queremos dar a entender, com as afirmações supra, que a vontade de libertação de uma visão feudal de poder,
desde muito cedo que aquecia. O ponto de ebulição, e, por conseguinte, de
quebra com essa conceção, deu-se, nem a propósito, no século XVIII. A Virginia
Bill of Rights (1776) e a Constituição de Massachusetts (1780), foram a pedra
angular que direcionou a atuação dos órgãos políticos num sentido de respeito
pelos Direitos Fundamentais. Esta viragem, pautou-se não só pelo respeito,
entre Homens, pelos direitos de cada um, mas também pela correspondente atuação
da Administração Pública nesse sentido. Em França, do outro lado do oceano
Atlântico, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) veio
materializar, para a Europa, a quebra que havia ocorrido em alguns estados dos
EUA. Como nos diz Jorge Miranda, esta declaração é “a fonte das Constituições
liberais portuguesas”. Não temos dúvida que, para além das portuguesas, tenha
também sido uma influência em muitas outras Constituições do mundo ocidental.
Posto
isto, considerando como feita a breve contextualização histórica da evolução
deste princípio (embora cientes de que se trata de um tema bastante mais
profundo do que aparenta ser através desta simples análise), partiremos para a
distinção entre as duas vertentes do princípio da igualdade.
II
- Proibição de Discriminação e Obrigação de Diferenciação
“Men are born and remain free and
equal in rights. Social distinctions can
be founded only on the common good” – Artigo
1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
“A
igualdade entre situações é uma igualdade não fática, mas de qualificação
jurídica”. É assim que Marcelo Rebelo de Sousa nos transmite a ideia de que a
igualdade não pode ser avaliada quanto à aparência das situações jurídicas.
Deve, por outro lado, ser analisada consoante a substância das situações, ou
seja, através de uma ponderação substancial destas. Esta ponderação deve ter em
conta apenas os traços que a lei e a Constituição impõem, não podendo o intérprete
recorrer arbitrariamente a qualquer critério que lhe seja útil para invocar a
existência de uma igualdade/desigualdade substancial entre situações.
a)
Proibição de Discriminação:
A
discriminação, na atuação da Administração Pública, é proibida pelo princípio
da igualdade. Importa, portanto, tentar esclarecer em que medida pode ser uma
atuação da Administração contrária a este princípio. Diogo Freitas do Amaral considera que existe discriminação quando existe uma
atuação criadora de uma diferenciação no tratamento, sem que haja justificação
material suficiente para essa distinção. Isto, claro está, terá que ser
apreciado tendo em conta a finalidade que essa atuação pretende alcançar. Marcelo
Rebelo de Sousa, por seu turno, vem complementar esta definição de Diogo Freitas
do Amaral, com as seguintes considerações. A proibição de discriminação, para
este autor, abarca duas sub-vertentes distintas.
Por
um lado, temos a sub-vertente negativa da proibição de não discriminação. Esta
pauta-se por dois deveres distintos que a Administração Pública deverá cumprir.
Primeiramente, deverá abster-se de qualquer comportamento que introduza
desigualdades em situações que devem ser vistas como iguais. Neste sentido,
poderemos encontrar uma panóplia de situações que servem de exemplo prático. O
racismo, exemplifica claramente este tipo de atuação. É manifestamente
contrária ao que se encontra consagrado no Artigo 6º do CPA e no Artigo 13º nº2
da CRP. Mais ainda, não é razoável criar uma diferenciação com base na etnia de
um sujeito, dado que em nenhuma situação se poderá considerar que isso
configure uma justificação material suficiente. Qualquer atuação da
Administração que imponha uma desigualdade com base na raça de um indivíduo é,
para além de eticamente censurável, uma violação do “dever de não agir”. Em
segundo lugar, e também inserto na vertente negativa da proibição de
discriminação, Marcelo Rebelo de Sousa propõe a proibição de introduzir igualdades
no que deve ser desigual; ou seja, a Administração Pública deverá optar por não
agir se tiver que criar igualdade onde ela não exista. Neste sentido, importa
ter em mente que o princípio da igualdade não pode ser, de maneira alguma,
confundido com o princípio da prevalência de lei. A perspetiva de que a lei
deve ser aplicada cegamente, ou seja, sem ter em conta quem são os
destinatários da atuação administrativa, é uma ideia ultrapassada. A
generalidade da lei, ideia que brota da perspetiva anteriormente mencionada,
não pode ser tida como um sinónimo de igualdade. Tratar, cegamente, de forma
igual todos os cidadãos, levaria a que os indivíduos, em última análise, fossem
despidos da sua personalidade e dos traços que os distinguem dos seus “iguais”.
A título exemplificativo, consideramos a abertura de concursos com critérios
especiais de admissão para cargos na Administração Pública, uma situação em que
a Administração tem o dever de não criar uma igualdade onde ela não poderá
nunca existir. Criar critérios que se baseiam na altura e índice de massa
muscular de um sujeito poderá, à primeira vista, ser entendido como uma
discriminação infundada. No entanto, se tivermos em mente que esse critério se
destina a selecionar indivíduos para ocuparem um lugar no Corpo de Intervenção
da Polícia de Segurança Pública, parece-nos razoável admitir que existe,
efetivamente, uma justificação. Admitir, em concurso, um homem/mulher com 140
centímetros e uma massa muscular diminuta seria, para quem claramente está mais
apto a integrar o CIPSP, uma situação injusta. A atuação carece, por isso, de
uma apreciação feita com base no seu próprio contexto, quando se almeje
averiguar a existência/inexistência de uma justificação material suficiente.
A
sub-vertente positiva da proibição de discriminação (dever de agir) compreende,
à semelhança da anterior, dois outros tipos de atuação. Em primeiro lugar,
considere-se o dever de tratar igualmente o que é igual. Esta é, quando
interpretamos a expressão “princípio da igualdade”, a conceção que mais
facilmente adotamos. Homens e mulheres são ambos Homens. São seres que devem
ser colocados num plano de igualdade. Assim, deve haver uma atuação da
Administração no sentido de assegurar que esta igualdade prevalece. Agir no
sentido de criar uma desigualdade fundada no sexo seria manifestamente violar o
dever de não agir. Podemos, desta forma, afirmar que a violação do dever de
tratar igualmente o que é igual é também uma violação do dever de não criar
desigualdade onde apenas existe igualdade. Para além deste dever, que diz
respeito à atuação da Administração diretamente perante os particulares,
importa ter em conta que existe um dever da Administração de impedir que um
terceiro crie desigualdade onde existe igualdade. Isto significa que a Administração
deverá assegurar, através da sua atuação, que os direitos e deveres de um
particular não são injustificadamente comprometidos por outrem. A atuação nesse
sentido deverá, portanto, evitar ao máximo criar situações que proporcionem a
atuação de terceiros no sentido de criar desigualdade implausível. Não se trata
de uma preocupação com a sua atuação direta, mas sim com os efeitos que as suas
atuações podem ter nos comportamentos adotados por outro sujeito. Correndo o
risco de aparentar tratar-se de uma repetição, considere-se uma hipótese em que
é aberto um concurso para carreiras na Guarda Nacional Republicana. A
Administração, se não procurar excluir candidatos que manifestamente creiam em
ideologias xenófobas ou racistas, estará inadvertidamente a criar a
possibilidade de um guarda tratar desigualmente um indivíduo pela cor da sua
pele.
Para
complementar a exposição referente à proibição de discriminação, temos por
indicado mencionar o processo (proposto por Diogo Freitas do Amaral) que nos
permite averiguar se estamos, ou não, perante uma situação de discriminação:
· Interpretação da medida administrativa, com vista à
identificação do fim que visa prosseguir;
· Isolamento das categorias que, para a prossecução do
fim, devem, ou não, ser objeto de tratamento igual ou desigual;
· Avaliação, à luz dos valores dominantes do
ordenamento, da razoabilidade da diferenciação ou da identidade;
· RESULTADO: se for razoável, não se pode considerar
como violado o princípio da igualdade; se não aparenta ser razoável, existe uma
violação do princípio da igualdade.
b)
Obrigação de Diferenciação
A
obrigação de diferenciação assemelha-se, na sua generalidade, à vertente do
dever de não agir no sentido de criar igualdades onde elas não existem, que anteriormente
mencionámos. Reitere-se, a igualdade não é, nem pode ser, absoluta e cega. As
situações que juridicamente sejam idênticas (segundo um critério de apreciação
substancial), devem ser olhadas e tratadas de forma a proteger e garantir essa
igualdade. A diferenciação distingue-se da discriminação pelo facto de a
primeira permitir uma atuação negativa (dever de não agir). A diferenciação,
por seu turno, não compreende a passividade como manifestação. Para que haja
diferenciação, afigura-se indispensável uma atuação positiva. Por isto, Marcelo
Rebelo de Sousa exclui a sub-vertente negativa no que diz respeito à obrigação
de diferenciação. Assim sendo, resta-nos apreciar a sub-vertente positiva: o
dever de agir no sentido de garantir a diferenciação quando ela exista e seja
necessária.
A
primeira manifestação da obrigação de diferenciação assume-se com o tratamento
desigual do que é desigual. Mais uma vez, importa mencionar que o dever de
agir, neste âmbito, se prende intimamente com o dever de não agir de modo a
criar igualdade onde existe desigualdade. Imaginemos, para que se torne mais
claro, a seguinte situação: numa fila de atendimento, situada no interior de um
edifício de uma Câmara Municipal, é comum encontrar sinalização que permite o
atendimento prioritário de grávidas. Pela sua condição física, as mulheres
grávidas merecem ser atendidas em primeiro lugar. Consideramos, portanto, que
existe uma justificação material suficiente para que se dê prioridade a certos
indivíduos. Uma outra manifestação da obrigação de diferenciação consiste no
dever de tratar desigualmente aquilo que deveria ser igual, mas ainda não o é. Diogo
Freitas do Amaral apresenta, a respeito dessa manifestação, os sujeitos que
pertencem às minorias que, atualmente, nas democracias ocidentais, têm sido
alvo de proteção jurídica. Marcelo Rebelo de Sousa considera, tal como Diogo
Freitas do Amaral, que estas são discriminações positivas. Neste caso, o
tratamento desigual pretende criar uma aproximação das realidades que são
desiguais, mas deveriam ser iguais. No fundo, consiste na ideia de não ignorar
aquela que é a realidade. Saber que existe uma desigualdade e tentar corrigi-la
através da mera imposição de igualdade não se afigura razoável. Para que se
atinja o objetivo de igualdade ideal, é necessário que se atravesse um processo
de gradual igualização, que para além de demorado, carece de uma atenção
específica e dedicada às necessidades que os sujeitos desiguais têm. Por fim, à
semelhança do que verificámos acontecer com a proibição de discriminação,
existe uma preocupação da Administração no sentido de assegurar que os seus
próprios comportamentos não têm um efeito indesejável nas atuações de
terceiros. No fundo, trata-se de um dever de agir no sentido de impedir que um
sujeito trate igualmente o que deve ser desigual. Coloque-se a seguinte
situação hipotética: a Administração celebra um contrato com uma determinada
empresa, de modo a garantir a prestação de uma gama de serviços. Se a
Administração não procurar salvaguardar o tratamento desigual do que é
desigual, poderá estar a abrir portas a uma atuação contrária ao princípio da
igualdade.
III
– Conclusão
Tendo
em conta tudo o que foi mencionado, concluímos, embora não se afigure uma
novidade, que o princípio da igualdade é uma das bases que devem ser
respeitadas pela Administração (quando atua positiva e negativamente). O
respeito pelo dito princípio assegura a harmonia social, na medida em que
prossegue os valores fundamentais consagrados pela CRP e pelo CPA. No entanto,
a igualdade não pode ser aplicada, como reitera Gomes Canotilho, enquanto mera
“refração do princípio da legalidade”. Isto significa que deve ser feita uma
ponderação substancial da situação jurídica, e que a invocação da igualdade se
deve desprender de um ponto de vista absoluto e cego. Quer se manifeste através
de uma atuação ou de uma abstenção de atuação, o princípio da igualdade deve
ser sempre ponderado pela Administração, sob pena de comprometer o respeito pelos
restantes princípios que pautam a sua atuação.
IV
– Bibliografia
CANOTILHO,
José Gomes; Constituição dirigente e vinculação do legislador; 2002 2ª Edição;
pg. 281
FREITAS
DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo – Volume II; 2016 3ª Edição;
pg. 108-111
MIRANDA,
Jorge; Manual de Direito Constitucional – Tomo IV: Direitos Fundamentais; 2012
5ª Edição; pg. 228
REBELO
DE SOUSA, Marcelo; Lições de Direito Administrativo – Volume I; 1994 2ª Edição;
pg. 147-151
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