O direito de audiência dos interessados é um direito fundamental, constitucionalmente garantido?



O direito de audiência dos interessados é um direito fundamental, constitucionalmente garantido?



A audiência dos interessados consiste numa fase procedimental do procedimento administrativo comprendida entre a fase instrutória e a fase de decisão - tendo em conta a divisão do procedimento feita, entre outros, pelo Professor Diogo Freitas do Amaral -, sendo uma das fases mais importantes do procedimento. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa dá especial enfoque à audiência dos interessados, numa dupla faceta:  num plano subjetivo evita as “decisões surpresas” , como também permite aos particulares defenderem as suas posições e contestarem o projeto de decisão; num plano objetivo, permite auxiliar a administração a decidir melhor, conforme o bloco de legalidade.

Como sabemos, a a regra geral é a da exigência da audiência prévia na generalidade dos procedimentos, podendo apenas ser dispensada em casos excecionais previstos no artº 103º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), . Não nos restam dúvidas que um procedimento que careça desta fase é ilegal por vício de forma. A questão que se coloca é sobre a consequência jurídica destes procedimentos ilegais. Uma possível nulidade ou anulabilidade (desvalores jurídicos aplicados a atos administrativos ilegais assim como aos demais atos normativos) depende da qualificação, ou não, do direito de audiência prévia como um direito fundamental constitucionalmente garantido. A doutrina tem vindo, ao longo dos anos, debatendo esta classificação e o carácter fundamental deste direito, defendendo posições diferentes com sustentações igualmente diferentes.

O problema nuclear com que nos deparamos é com o tipo de interpretação que devemos fazer do conceito “conteúdo essencial de um direito fundamental” entendido enquanto vício do ato administrativo gerador de nulidade, previsto no Art 161 nº2 alínea d) do CPA, e se o direito de audiência dos interessados pode inserir-se na abrangência desse conceito e qualificar- se como tal. Se sim, a falta da mesma provocará a nulidade, se não, irá resultar numa mera anulabilidade segundo o artº 163º nº1 do CPA.

O Professor Diogo Freitas do Amaral considera que a consequência da ausência de audiência prévia, quando legalmente é exigida, é a anulabilidade, seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo  (STA) que considera anuláveis os procedimentos disciplinares por falta do arguido. Em suma, o referido Professor conclui que o direito de audiência prévia, sendo um direito de elevada importância no sistema de proteção dos interessados face à Administração Pública, não é um direito englobado na categoria dos direitos fundamentais, intimamente ligados á proteção da dignidade humana. O Professor Rui Machete defende que o direito á audiência dos interessados não é um direito fundamental mas uma fase que tende a melhorar a prossecução do interesse público

A jurisprudência dos tribunais superiores também têm ido ao encontro desta posição, posição ela também defendida pelo Professor Jorge Pação. Analisando o Acordão 0210/12 de 21.11.2012, do STA, referente a um recurso de um particular pela peterição da audiência dos interessados num procedimento administrativo, decidiu negar provimento ao recurso, justificando o sentido da sua decisão pelo facto de a falta de audição do interessado em procedimento administrativo não sancionatório, não implica nulidade, podendo apenas gerar mera anulabilidade da respectiva decisão. Além do mais, preterição do direito de audiência prévia no âmbito do processo de reclamação graciosa, ainda que seja um vício do  ato tributário, é gerador de mera anulabilidade, por não estar em causa a ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental, mas apenas ao princípio da legalidade tributária. Como podemos ver por este acordão, a jurisprudência não considera o direito a audiência dos interessados como um direito fundamental.
Contudo, parte da doutrina encara a audiência prévia como um direito fundamental e por isso defende como consequência jurídica da sua falta, quando exigida por lei, a nulidade do ato administrativo, desvalor mais grave aplicado aos atos administrativos. O Professor Vasco Pereira da Silva e o Professor Sérvulo Correia encabeçam esta posição doutrinária argumentando que:

 Por um lado, a Constituição de 1976 defende as posições jurídicas dos particulares perante a Administração,  e por isso todos os direitos subjetivos dos particulares têm igual valor aos direitos fundamentais consagrados na Constituição. Esta necessidade de, a nível constitucional, se garantir uma maior participação do particular nas decisões da administração, e por isso uma maior protecção dos seus direitos e intesses legalmente protegidos, nasce da necessidade premente de evitar a ocorrência dos traumas administrativos do contencioso francês e do português, por exemplo na época do Estado liberal, onde o particular era tratado como um mero súbdito perante uma Administração "toda poderosa e autoritária, onde predominavam a concentração e a hierarquização das estruturas da administração pública, em que havia uma clara despreocupação da administração em prestar serviços ou proteger os cidadãos. Concluíndo, no entender dos supra mencionados professores, o direito a audiência dos interessados é um direito fundamental., Para além da razão já referida, apresentram ainda um argumento ponderoso. Para eles, tendo em conta o princípio da não-tipicidade dos direitos fundamentais, o direito de audiência dos interessados plasmado no artigo 267º nº5 da Constituição da República Portuguesa “o processamento da atividade administrativa será objeto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito”, pode-se qualificar "direito, liberdade e garantia de natureza análoga". Ao atribuir a qualificação de direito fundamental ao direito de audiência dos interessados no procedimento, a decisão administrativa que não observe essa audiência deve ser nula segundo o artigo 133º nº2 alínea d) do CPA.

No entender da professora Ana Gouveia Martins, a audiência dos interessados é a concretização de um direito fundamental de participação dos interessados nas decisões administrativas, impondo ao legislador ordinário que aprove uma lei do procedimento administrativo que garanta a participação destes mesmos interessados, prevendo assim a fase da audiência dos interessados. Ora, seguindo a linha de racíocinio do regente desta cadeira de Direito Administrativo, esta professora concorda com a nulidade dos atos que não foram antecididos por audiência prévia.

A meu ver, defendo que  o direito da audiência dos interessados como um direito constitucionalmente consagrado, apesar de não concordar com  a sua inclusão numa categoria de direitos fundamentais análogos a liberdades e garantias. Considero o direito da audiência prévia como um direito fundamental, concordando, por isso, com a tese do professor Vasco Pereira da Silva, uma vez que a Constituição de República Portuguesa pretende garantir uma maior proteção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares face a decisões e atos da admistração.  Logo, sendo o príncipio da participação dos particulares na atividade decisória administrativa um direito fundamental com consagração constitucional, e sendo a audiência prévia a concretização de tal príncipio, apesar de não ter concretização constitucional, e olhando para a audiência dos interessados  também como uma garantia da segurança jurídica e da previsibilidade da decisão pela Administração, considero o direito a audiência dos interessados como  um direito fundamental,

Tal consideração ainda ganha mais relevo,  nos procedimentos administrativos de caráter sancionatório, como sejam os processos disciplinares e de contraordenação. Tendo o arguido o direito à defesa, e sendo esse direito constitucionalmente garantido, o interessado em causa, no caso em concreto, o arguido, exerce o seu direito de defesa na fase de audiência dos interessados, argumentando contra o projeto de decisão de condenação, proposto pelo instrutor do procedimento. Ora, sendo o direito de defesa um direito fundamental, então por analogia, o direito de audiência prévia também o é, não só nestes casos mas em todos os outros.

Tal consideração tem fundamento no comportamento histórico-jurídico do legislador, dado que o direito de audiência prévia como concretização do direito de defesa, nos casos de procedimentos para decidir processos disciplinares, sempre existiu ao longo do tempo, apesar de só depois da revisão constitucional  de 1991 ter sido  consagrada como figura genérica de todos os procedimentos.

Como já tive oportunidade de referir, discordo com a equiparação deste direito fundamental a uma liberdade e garantia constitucionalmente consagrada, uma vez que, como defende o Professor Diogo Freitas do Amaral, , as liberdades e garantias relacionam-se com a defesa da dignidade humana. Ora, tendo em conta que o direito à vida é uma liberdade e garantia, não podemos equiparar, a nível valorativo, a defesa do direito à vida e a defesa de audiência dos interessados, visto que a meu ver, estamos perante níveis jurídicos diferentes.

Com isto concluo que o direito de audiência dos interessados, sendo um direito fundamental, a sua ausência quando exigida por lei, provocará a nulidade do ato administrativo, por aplicação do art 161º nº2 alínea d) do CPA.

João Miguel Batista nº 58134




Bibliografia

Aulas práticas Direito Administrativo II

DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo, volume II”

MARCELO REBELO DE SOUSA, “Direito Administrativo Geral”

JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS Constiuição Portuguesa Anotada tomo III

VASCO PEREIRA DA SILVA, aulas teóricas 2017

VASCO PEREIRA DA SILVA, aulas teóricas 2018

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