O Ato Administrativo dos Nossos Dias
Na sequência do desenvolvimento dos conceitos de Procedimento e Relação Administrativa
Multilateral, surgiu uma crise das construções que colocavam o Ato
Administrativo no "centro de tudo". O Professor Vieira de Andrade coloca a este
propósito, a questão de saber se o conceito restrito de ato administrativo e,
em especial, o conceito de ato “regulador” proposto, e fortemente criticado
pelo Professor Vasco Pereira da Silva, pode resistir aos novos tempos do
direito administrativo, ou se representa um paradigma
hoje inevitavelmente perdido.
O
modelo do ato administrativo evoluiu tendo em conta a evolução dos modelos do
Estado. A partir do século XX, a função administrativa passou a estar
totalmente vinculada à lei, e ambas se sujeitaram aos direitos fundamentais. A
atividade administrativa, ainda que discricionária, passou a submeter-se aos
princípios gerais de direito, e os tribunais foram consolidados como instância
de controlo, assegurando a força vinculativa de sentenças no âmbito da proteção
judicial efetiva dos direitos dos particulares.
Neste
âmbito, cumpre mencionar, ainda que superficialmente, os vários modelos de
Estado, e as diferenças do conceito que os caracterizaram.
Para
começar, cabe fazer referência à Administração Agressiva, com o paradigma do
ato polícia, característica do Estado Liberal. Na esteira de Otto Mayer, o ato
administrativo era aquele que definia o direito aplicável aos particulares no
caso concreto – definição de direito de forma coativa e que podia ser imposta,
baseado na sentença jurisdicional. De forma semelhante, Maurice Hauriou comparava o ato
aos negócios jurídicos, e o que o caracterizava eram os privilégios
exorbitantes da Administração (decisório e executório). No fundo, tratava-se da
mesma noção mas expressa de forma diferente.
Em
Portugal, nota-se algum défice de construção dogmática e doutrinaria do
conceito de ato administrativo. Magalhães Colaço, um dos primeiros Autores que
começou por esclarecer o dito conceito, definiu quatro elementos que o
caracterizaram: declaração de vontade; no exercício de uma competência; para
prosseguir um fim legal de interesse público, cujo desvalor seria o vício do
desvio de poder; e a criação de uma situação jurídica subjetiva.
Neste
sentido, Marcello Caetano concretizou a noção de “ato administrativo definitivo
e executório” como figura central da construção
substantiva, procedimental e contenciosa (suscetível de recurso contencioso
imediato) do direito administrativo
português.
Não
seriam definitivos os atos que comportassem a definição de situações jurídicas
num caso concreto como os de execução, os atos preparatórios não prejudiciais,
internos, informações, atos opinativos, etc.
Na
dimensão procedimental defendia-se uma definitividade horizontal, em que não
entrariam os atos preparatórios, os de execução, os complementares, e os
confirmativos, uma vez que não punham termo a um incidente autónomo.
Já
na dimensão adjetiva ou contenciosa, era postulado um terceiro sentido de
definitividade, que correspondia à definitividade vertical, relativa à
resolução “final” do ato. Era nesta dimensão que surgia a vertente da
executoriedade, composta pela imperatividade (“força obrigatória e coerciva”) e
a eficácia, que postulava a aptidão atual e imediata dos efeitos jurídicos próprios.
Assim, estavam excluídos os atos definitivos suspensos ou sujeitos a aprovação
ou a visto.
Em
suma, este seria um ato que evidenciaria o “Poder administrativo”, dada a
dispensa de intervenção por parte de qualquer outra autoridade para definir posições jurídicas com força obrigatória e
eventualmente coerciva, enquanto delimitaria
o circulo de atos contenciosamente recorríveis para a garantia da legalidade e
dos interesses legítimos dos particulares. Seria um ato possuidor de tripla
definitividade: material (definia direito executado no caso concreto - decisão administrativa);
vertical (adotado pela autoridade suprema da Administração - máximo superior hierárquico);
e horizontal (importância da decisão final como última vontade da Administração
- ato que punha termo ao procedimento administrativo).
Apesar
de todos os esforços efetuados no sentido de levar “a bom porto” esta tese,
algumas críticas foram sendo insinuadas a propósito da mesma. Com efeito, o
Professor Rogério Soares foi um dos primeiros Autores a opor-se a esta
concessão, tanto ao nível da definitividade como da executoriedade.
Em
primeiro lugar, o Professor considera que o conceito de definitividade não
deveria incluir na mesma categoria realidades tão distintas: veja-se o conceito
de definitividade vertical, que nada tem que ver com a qualidade dos atos. A
este propósito note-se também que hoje em dia esta dimensão nem faria sentido,
pois o recurso hierárquico não é obrigatoriamente necessário, uma vez que o
particular pode impugnar a atuação e recorrer ao tribunal administrativo.
Da
mesma forma, reitera ser inadequada a inclusão das definições de
“definitividade horizontal” e “definitividade material”, visto que se tratam de
dimensões desnecessárias enquanto qualificações dos atos administrativos.
De
facto, na esteira do entendimento do Professor Vieira de Andrade, a primeira
dimensão seria inadequada devido à existência de atos destacáveis e
intermédios, que constituem decisões autonomizáveis, e a segunda dimensão seria
desnecessária por dever ser vista como elemento essencial do próprio conceito
de ato.
Concluindo,
o Professor Rogério Soares restringe o conceito à sua dimensão vertical, que
valeria apenas para instituir a impugnação administrativa prévia como um
pressuposto processual do recurso aos tribunais.
No
que respeita à executoriedade, o autor supramencionado considera que se trata
de um o conceito excessivamente amplo e incoerente. Isto porque, desde logo,
não devia abranger no mesmo núcleo a eficácia. Da mesma forma, não concorda com
utilização do termo executoriedade para designar também a obrigatoriedade e a
força executiva.
Na
sequência critica ao modelo tradicional, veja-se a posição do Professor Vasco
Pereira da Silva, que defende a rejeição do mesmo e a sua reconstrução à luz da
realidade atual. À luz do seu entendimento, a Administração apenas utiliza o
direito para a satisfação de necessidades coletivas e os efeitos jurídicos do
ato não correspondem a nenhuma definição do direito, o que o leva a considerar
que a Administração não tem de definir o direito, uma vez que esse será o papel
do juiz.
Da
mesma forma, deverá existir desconcentração da Administração e multiplicação de
pólos decisórios, conferindo a qualquer órgão dotado de competência o poder de praticar
atos administrativos.
Finalmente,
o Professor reforça a importância jurídica do procedimento e sublinha que não
há nenhuma noção executória no conceito de ato administrativo, havendo mesmo
casos em que a execução forçada está proibida por lei. Ex: sanções pecuniárias
e execução coativa por dívidas.
Realizada
uma breve apreciação à realidade inicial, cumpre fazer referência a dois outros
modelos de Estado: Estado Social – Administração Prestadora (lógica do ato
favorável, que atribui vantagens aos particulares); e Estado Pós-Social –
Administração Infraestrutural (nova transformação do ato no quadro das relações
multilaterais com eficácia múltipla).
Torna-se
assim necessário encontrar um conceito de ato administrativo capaz de
compreender todas estas realidades (atos polícia, administração prestadora e
administração infraestrutural).
Para
o Professor Vasco Pereira da Silva a noção ampla e aberta do CPA é adequada
para reproduzir esse conceito de ato administrativo nos dias de hoje – cabem os
atos de definição de direito (que hoje são uma minoria mas ainda existem atos
de polícia) e todos os atos prestadores e infraestruturais. Contudo, este
entendimento não é consensual e o referido artigo coloca algumas reticências na
doutrina, que serão abordadas infra.
Para
já, cabe referir que a Administração dos nossos dias, além de impor e de proibir, autoriza e concessiona, presta serviços,
mesmo nas áreas tradicionais, regula, orienta e controla atuações privadas de
interesse geral, entre muitas outras funções.
No
entanto, alguns traços do passado prevalecem nesta realidade. Tratam-se entre
outros, da determinação unilateral por parte da Administração da produção de
efeitos jurídicos em situações individuais e concretas, que conformem a esfera
jurídica dos particulares; da discricionariedade; e das decisões
administrativas obrigatórias e a titulo executivo, gozando a Administração,
ainda que excecionalmente, de um poder autónomo de execução coerciva dos seus
atos. Também neste âmbito, note-se que ainda hoje ocorre a estabilização de uma
decisão administrativa, ainda que ilegal, passado o prazo de impugnação. Ainda
assim, diz-nos o Professor Vieira de Andrade ser necessário não pelo
reconhecimento de um poder administrativo autoritário, mas pelas exigências de
segurança jurídica.
Note-se
que é o mesmo autor que sustenta a ideia de que a figura do ato administrativo
clássico “continua a ter um papel
determinante no cumprimento das tarefas administrativas, sendo, como ato
administrativo, perfeitamente compatível com os novos tempos de uma
administração democrática, participada, aberta e socialmente interventora, já
que a realização do interesse público e a proteção dos interesses dos
particulares têm de continuar a ser asseguradas em termos rápidos, eficazes e
seguros, que exigem a obrigatoriedade e a estabilidade fundada das decisões
administrativas que não sejam nulas”.
Ou
seja, na verdade, a conceção de ato administrativo autoritário não se torna incompatível
com a relação jurídica, que inclui
naturalmente o ato administrativo como um dos atos jurídicos mais importantes,
uma vez que regula a esfera jurídica dos particulares. Deste modo, a perspetiva
da relação jurídica não pretende substituir a figura do ato administrativo, mas
sim enquadra-lo e complementa-lo.
Este
entendimento leva o autor a refutar o argumento contra a conceção clássica que
se prende com a perda de protagonismo do ato administrativo em favor de outras
formas de atuação administrativa (contrato administrativo, regulamento, plano e
operações materiais, atuações informais e formas de direito privado). Isto porque,
como corrobora o Autor, a utilização das formas jurídicas de administração
supramencionadas aparece normalmente ligadas à produção de atos
administrativos.
Expostas
algumas posições relativas ao tema, será analisada em diante a querela existente
em torno do Artigo 148.º do CPA.
Como
já foi anunciado, defende-se por um lado uma noção restritiva de ato regulador,
e em sentido oposto noção ampla e aberta de ato administrativo. Porém, tem-se
vindo a considerar que os “traumas do passado” são afastados neste Artigo
mediante interpretação literal, uma vez que são positivadas as ideias de que o
legislador não obriga que os atos sejam de definição do direito, e este atos dizem
respeito a um indivíduo numa situação jurídica concreta/determinada. Retira-se
um elemento chave desta noção que se prende com a produção de efeitos jurídicos.
Apesar
da correta formulação do Artigo em apreço, existem ainda dois pontos em debate.
O primeiro diz respeito à expressão “decisão”. O Professor Freitas do Amaral
entendia que este termo implica a comparação do ato administrativo às decisões
judiciais, daí serem atos definidores de direito. Já o Professor Vasco Pereira
da Silva entende que esta expressão é ampla e neutra e não tem nenhuma dimensão
redutora.
O
Professor Freitas do Amaral era adepto de uma noção ampla do ato
administrativo, muito embora reduzida para efeitos contenciosos numa aceção de
apenas ato definitivo executório. Na edição mais recente mudou de opinião,
devido às mudanças no quadro da realidade administrativa portuguesa.
De
outro modo, a expressão “externos” também suscita variados problemas. O novo
CPA veio a introduzir a referência à sua aptidão para produzir efeitos externos
– como já defendia Rogério Soares – o que significa que os atos internos não
são mais atos administrativos.
Neste
aspeto, o Professor Vasco Pereira da Silva preferia a noção do CPA anterior
pois este conceito acaba por estar a meio caminho entre a posição dos
Professores Marcello Caetano/ Freitas do Amaral e Vasco Pereira da Silva.
Para
este último, a distinção não tem qualquer utilidade e não mudou absolutamente
nada na noção de ato administrativo, pois a produção de efeitos jurídicos é
forçosamente externa, já que diz respeito a uma realidade que produz efeitos
para fora. Isto é, o que de facto interessa é se os efeitos que se produzem
dentro da Administração extrapolam dela e aparecem no exterior.
No
mesmo sentido, Casesse considera a distinção completamente inútil pois todos os
atos internos são atos externos porque produzem efeitos jurídicos e têm efeitos
em relação a outros.
É
facto que nos dias de hoje, para exercermos um conjunto bastante alargado de
atividades, necessitamos de uma licença, uma autorização, ou atos permissivos
por parte da administração, o que evidencia a sua crescente presença nas nossas
vidas. Contudo, entre adotar uma posição negadora da administração autoritária como
sugere o Professor Vasco Pereira da Silva, ou defender a aplicação atual das
posições de Otto Mayer e Maurice Harriou, como preconiza o Professor Vieira de
Andrade, surge um difícil dilema.
Enfim,
talvez seja mais adequado e seguro adotar uma posição intermedia, como é a que
se encontra presente no atual CPA.
Bibliografia:
VIERA
DE ANDRADE, José Carlos; “Algumas Reflexões a Propósito da Sobrevivência do Conceito
de “Acto Administrativo” do Nosso Tempo”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares; Coimbra
Editora, 2001; pg. 1189-1220
PEREIRA
DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias; “Em busca do ato administrativo perdido”;
Almedina, 2003; pg. 149-206
FREITAS
DO AMARAL, Diogo; “Curso de direito administrativo”; Volume II; 3ª edição;
Almedina, 2016; pg. 191-195
AROSO
DE ALMEIDA, Mário; “Teoria Geral do direito administrativo”; 5ª edição;
Almedina, 2018; pg. 219-223
CAETANO,
Marcelo; “Manual de direito administrativo I”; 10ª edição; Almedina, 2008 pg.
441-442
SOARES,
Rogério; “Direito Administrativo”; Coimbra, 1978; pg.73 e ss.
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