O acto administrativo em sentido próprio e a impuganção contenciosa
O conceito de acto administrativo sofreu variadas e acentuadas alterações ao longo da história. Inicialmente, aquando da Revolução Francesa, o acto administrativo correspondia a qualquer acção da Administração Pública no exercício da sua função típica e que, por essa razão, estaria fora do alcance dos Tribunais. Como se sabe, durante o período das revoluções liberais, o princípio da separação de poderes era interpretado ao extremo, pelo que a figura da impugnação contenciosa do acto da administração não existia. Seriam [somente] os órgãos da própria administração os responsáveis pela apreciação da legalidade dos actos. Não havia distinção entre garantias administrativas e contenciosas, porque esta última não existia.
Mais tarde, passa a significar as actuações da Administração Pública que, por serem suscetíveis de lesar particulares, estariam submetidas ao controlo dos Tribunais administrativos. Esta noção de impugnabilidade dos actos lesivos de direitos e interesses dos particulares encontra, hoje, importante reconhecimento e constitui uma garantia constitucionalmente consagrada na letra do artigo 268.º/4.
Contudo, hoje, o acto administrativo comporta muito mais. Não é somente um vocábulo que designa e extrapola, de entre todas as actuações da Administração, aquelas que iriam de encontro à esfera dos particulares e que seriam, consequentemente, fiscalizáveis pelos Tribunais a pedido daqueles. Tem também, como escreve Freitas do Amaral, uma vertente substantiva e outra procedimental. Por um lado, tendo por base o princípio da legalidade e, em concreto, a precedência de lei, descortina-se a função concretizadora do acto, que “aplica e transpõe para a vida real” preceitos jurídicos gerais e abstratos – tanto concretiza a lei, como o regulamento ou outra fonte de Direito Administrativo. Neste sentido se afirma, com frequência, que o acto é o meio através do qual de efectivam disposições regulamentares.
Por outro, a tomada de decisão que o quotidiano impõe à Administração (para dar início, no decorrer, ou para terminar um procedimento) traduz-se, regra geral, num acto administrativo. Como se verá, é da maior relevância, para que o acto administrativo seja considerado como tal, o seu cariz decisório.
É a distinção entre aquilo que é o acto administrativo em sentido amplo e o acto administrativo em sentido próprio, restrito. Em sentido amplo, como refere Vieira de Andrade, desde cedo foi possível encontrar uma definição consensual no nosso ordenamento: era um acto administrativo um “acto jurídico, unilateral e concreto, subordinado a um regime de direito público”. A esta definição não há nada a apontar senão o seu teor demasiado genérico, mas a prática requer que a letra seja o mais funcionalmente operativa possível, e veio surgir na definição normativa constante do CPA que o acto administrativo é, também, “uma decisão proveniente de um órgão administrativo”. É esta faceta de decisão que permite discernir, de entre os demais actos jurídicos praticados no exercício de um poder administrativo que vise produzir efeitos [jurídicos] numa situação individual e concreta (que Rogério Soares qualifica como actos instrumentais), aqueles que serão os verdadeiros actos administrativos. Uns são actos da Administração, outros são actos administrativos. Os actos administrativos são actos da Administração, mas nem todos os actos da Administração são actos administrativos, à luz deste critério. Neste sentido, Veira de Andrade escreve que “o acto administrativo em sentido próprio é [...] um acto regulado por disposições de direito público, um acto jurídico decisório (manifestação de vontade ou de ciência), praticado no exercício de poderes de autoridade, relativo a uma situação individual e concreta – e, em princípio, com eficácia externa”.
Atendendo à teleologia da norma, Freitas do Amaral afirma que só faz sentido submeter aos regimes procedimental e substantivo do CPA – “cujo escopo fundamental é, a par de garantir a conveniente prossecução do interesse público, assegurar uma proteção adequada das posições jurídicas dos particulares” – actuações administrativas que, valendo por si próprias, criem efeitos ou atinjam a esfera destes. Isto é, que tenham eficácia externa. A eficácia externa concretiza-se através de uma decisão. Não estamos, por isso, perante um acto administrativo quando a Administração solicita um parecer ou um estudo prévio quanto a um rumo de acção, apesar de, em termos comuns, «solicitar» se tratar de um acto ou de uma acção. Já será um acto administrativo, por exemplo, o veredito que a Administração dará a um pedido de um cidadão, quer seja negativo quer seja positivo.
Em torno da noção de externalidade assenta, também, a faculdade de impugnação do acto. À luz do artigo 51º do CPTA “são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”. Como garantia contenciosa dos particulares face à Administração, só faria sentido que assim fosse. O particular pode, em Tribunal, intentar a impugnação do acto praticado pela Administração (e consequente anulação ou declaração de nulidade), com motivo juridicamente relevante, desde que o acto repercuta efeitos na sua esfera.
Para qualquer efeito prático, um acto administrativo é um acto jurídico unilateral, oriundo de uma entidade dotada de poder administrativo, que comporta uma decisão face a uma situação individual e concreta.
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Amaral, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo II, 2.ª Edição (2011)
Andrade, José Carlos Vieira de - Lições de Direito Administrativo, 5.ª Edição (2017)
Sousa, Marcelo Rebelo de - Direito Administrativo Geral III, 1.ª Edição (2007)
Ricardo Silva, 59130, ST17
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