Natureza jurídica do ato administrativo


       Antes de passar à questão em análise acerca de qual a natureza jurídica do ato administrativo, questão essa que é amplamente discutida na doutrina, cabe em primeiro lugar fazer uma breve referência ao que é o ato administrativo.

      O ato administrativo é uma das formas de atuação da Administração Pública, e segundo o professor Freitas do Amaral é um “ato jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.” 

        O professor Marcello Caetano entende que o ato administrativo é “a conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público, de que resulte a aplicação de normas jurídicas a um caso concreto.”

   A definição legal atual de ato administrativo consta do artigo 148º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), que diz que se consideram “atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.” Este artigo faz uma ressalva importante pois refere que só se aplicam as regras do CPA aos atos de eficácia externa, ou seja, atos que visem produzir efeitos jurídicos na esfera jurídica de uma pessoa diversa daquela que praticou esse mesmo ato. 

        Após um breve enquadramento do que é o ato administrativo podemos então passar à questão da natureza jurídica do mesmo que, como supra referido, é uma questão bastante discutida na doutrina destacando-se três posições.

       Uma primeira onde se inserem os autores que consideram que o ato administrativo tem o caráter de negócio jurídico; uma segunda, que defende que por ser um ato de aplicação do direito o ato administrativo possa ser analogicamente comparado a uma sentença judicial e, por último, uma terceira corrente de pensamento que defende que este é uma figura própria, suis generis, não se podendo proceder a analogias relativamente a outras figuras.

Ato administrativo com caráter de negócio jurídico 

     Relativamente a esta primeira corrente de opinião, esta é criticada pelo professor Freitas do Amaral, pois o professor defende que entre o negócio jurídico e o ato administrativo existem diferenças de fundo que não podem ser ignoradas. O professor refere algumas dessas diferenças, em primeiro lugar, o negócio jurídico é uma figura de direito privado, ao passo que o ato administrativo por sua vez corresponde a uma figura de direito público; em segundo lugar refere que o negócio jurídico está ao serviço de fins individuais e pelo contrário o ato administrativo está ao serviço de fins de interesse coletivo; por último enquanto que o negócio jurídico pode assentar sobre tudo o que a lei não permita, o ato administrativo só pode versar sobre aquilo que a lei permita. Por estas diferenças o professor a comparação destas figuras não é correta.

       Esta corrente é também criticada pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa. O professor aceita que possam existir semelhanças entre as duas figuras como o facto de serem ambas manifestações de vontade e factos criadores de direito. Contudo, defende que essas semelhanças não são suficientes para proceder à analogia entre as duas, destacando que existem também entre elas algumas diferenças que não podem ser ignoradas. Refere então que enquanto a lei é o limite do negócio jurídico, relativamente ao ato esta é o seu fundamento; o negócio jurídico pode prosseguir qualquer fim desde que não seja contrário à ordem pública, já o ato está vinculado a prosseguir o interesse público definido por lei. O professor conclui assim que estas diferenças não permitem que se possa considerar que o ato administrativo tenha caráter de negócio jurídico não negando contudo que estas são figuras que se influenciam mutuamente na sua construção jurídica, integrando ambas uma teoria do ato jurídico. 

     O professor João Caupers refere que esta teoria é mais plausível do que a que equipara o ato administrativo à sentença judicial, analisada de seguida, dizendo que o negócio jurídico se aproxima mais daquilo que é o ato administrativo do que a sentença judicial.

Ato administrativo e analogia com uma sentença judicial 

      O professor Freitas do Amaral critica também esta teoria visto que considera que  estas são também  figuras diferentes em inúmeros aspetos assinalando: o facto de a sentença prosseguir um fim de justiça e o ato administrativo um fimadministrativo; a sentença traduzir o exercício de um poder jurisdicional e o ato o exercício do poder executivo no desempenho da função administrativa; a sentença ter em vista a solução de um litígio, já o ato administrativo a prossecução do  interesse público; a sentença põe termo a uma incerteza de facto ou de direito, definindo com força de verdade legal a situação das partes em termos imodificáveis, o ato administrativo exerce competências conferidas à Administração para realizar tarefas de interesse geral, definido a situação dos interessados em termos que, em princípio, são livremente modificáveis no futuro, de acordo com as novas exigências do interesse público que porventura surgirem; a interpretação e aplicação do direito são, na sentença, um fim, ao passo que no ato administrativo são apenas um meio para alcançar outros fins. O professor conclui pela enumeração destas diferenças que a natureza jurídica do ato administrativo não pode ser, também, percebida através da analogia do mesmo à figura da sentença judicial.

          O professor João Caupers é também crítico desta corrente de pensamento, referindo que o ato administrativo ao contrário da sentença não visa resolver um litígio, embora por vezes possa fazê-lo. Além disso, o ato encara a aplicação do direito como um meio para prosseguir o interesse público e não como um fim e, acrescenta ainda que, este é ao contrário da sentença judicial modificável.

         O professor Marcelo Rebelo de Sousa não nega e refere a favor desta teoria que o ato administrativo e a sentença judicial se encontram hierarquicamente no mesmo patamar da pirâmide normativa, pelo facto de serem ambos atos da função executiva do direito, refere ainda que tal como a sentença o ato administrativo realiza o bloco de legalidade em situações individuais e concretas, são ambos atos de autoridade e ainda obedecem ambos a formalidades que desencadearão a sua emissão. Embora não negue estas semelhanças o professor entende que existem também diferenças que tornam impossível a equiparação destas duas figuras, que tornam impossível dizer-se que o ato administrativo possa ser comparado à sentença como forma de caracterizar a sua natureza jurídica. O professor enumera algumas dessas diferenças referindo que têm fins diferentes pois enquanto a sentença visa a restauração da paz  jurídica relativamente a certo litígio, o ato administrativo visa a prossecução do interesse público administrativo; além disso a sentença têm efeito de caso julgado já o ato administrativo pode ser revisto no futuro; os tribunais são independentes, a administração pública é interdependente e por último o professor refere o facto de os atos administrativos não estarem sujeitos ao controlo dos tribunais e poderem ser revistos ou mesmo destruídos por sentenças jurisdicionais. 

Ato administrativo como figura suis generis

            Esta é a corrente de pensamento perfilhada pelo professor Freitas do Amaral que ao concluir e apresentado razões para tal que o ato administrativo não possa ser equiparado quer ao negócio jurídico quer à sentença judicial este é por isso uma figura suis generis, com uma natureza própria, sendo um “ato unilateral de autoridade ao serviço de um fim da administração pública.”
            Conclui o professor que o regime jurídico do ato administrativo deve corresponder a esta natureza suis generisdo mesmo, contudo podem aplicar-se supletivamente a atos predominantemente discricionários as regras próprias do negócio jurídico e aos atos predominantemente vinculados as regras próprias da sentença.


O papel da vontade no ato administrativo

         Relacionado com esta problemática de qual a natureza do ato administrativo está a questão do papel da vontade humana no ato administrativo uma vez que os autores que defendem a primeira corrente apresentada têm tendência a valorizar a vontade do órgão da Administração que praticou o ato, pelo contrário os que defendem a segunda a minimizar o papel dessa mesma vontade.

            Esta discussão teórica, tem assim uma relevância prática no plano da interpretação do ato administrativo, no plano da integração de lacunas e no plano dos vícios da vontade. 

          Para os autores que perfilham a teoria de acordo com a qual o ato administrativo tem caráter de negócio jurídico a vontade psicológica real do autor é um elemento decisivo para a interpretação jurídica. No caso de existirem lacunas estas, de acordo com esta teoria, devem ser preenchidas tentando perceber-se qual queria a vontade hipotética do órgão que praticou o ato. Relativamente aos vícios da vontade que afetem o ato administrativo, segundo esta corrente, estes não geram a ilegalidade do ato mas sim a invalidade.

          Para os que sustentam que o ato administrativo pode ser analogicamente comparado à sentença judicial ao nível da interpretação do ato administrativo, o elemento decisivo para tal interpretação já não é a vontade real do autor do ato, mas sim a lei e o tipo de ato que esta manda aplicar. No caso de existirem lacunas a sua integração deverá ser realizada por dedução do dispositivo legal aplicável ao tipo de ato em causa. Quanto aos vícios da vontade que afetem o ato administrativo estes geram a ilegalidade desse mesmo ato.

            O professor Freitas do Amaral defende uma orientação intermédia, de acordo com a qual o papel da vontade tem de ser adequado à natureza suis generis, que o professor defende,do ato administrativo. Contudo, não nega que “aos problemas da vontade no ato discricionário, se poderão aplicar tendencialmente as regras próprias do negócio jurídico, do mesmo modo que aos problemas da vontade no ato vinculado se poderão aplicar tendencialmente as regras próprias da sentença.”

           Relativamente a esta temática do papel da vontade no ato administrativo o professor Marcelo Rebelo de Sousa entende que a relevância dessa mesma vontade não é a mesma em todos os atos administrativos. O professor refere que deve fazer-se distinção entre a vontade na emissão do ato, que releva em todos os atos administrativos, mesmo nos que sejam vinculados, e a vontade  na conformação dos pressupostos e elementos do ato que só releva se esses mesmo pressupostos e elementos estiverem abrangidos por uma margem de livre decisão, sendo irrelevante a falta ou vício da vontade relativos a aspetos que sejam vinculados. Para o professor a “falta e vícios da vontade, quando relevantes, geram a ilegalidade e a invalidade dos atos administrativos afetados.”

      Concluindo a natureza jurídica do ato administrativo é uma questão amplamente discutida, discussão essa que ao ser relacionada também com a discussão sobre qual o papel da vontade no ato administrativo irá ter relevância prática, nomeadamente ao nível da interpretação, da integração de lacunas no caso de existirem e da ocorrência de vícios da vontade no ato administrativo, sendo por isso de extrema importância. Na minha opinião a tese que melhor se afigura é a tese defendida pelo professor Freitas do Amaral que não procede a nenhuma analogia relativamente a outras figuras para caracterizar a natureza do ato administrativo atribuindo-lhe antes uma natureza própria, tendo o papel da vontade de ser adequado a essa natureza própria para resolver as questões acerca da interpretação, integração de lacunas e vícios da vontade e só supletivamente recorrer a regras utilizadas para outras figuras do direito, como o negócio jurídico e a sentença judicial.

Bibliografia
                  DIOGO AMARAL, Curso de Direito Administrativo Volume II. Almedina, 3ª edição, Lisboa, 2006.
JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª edição, Âncora, Lisboa, 2009.
MARCELO REBELO DE SOUSA / ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, D. Quixote, Lisboa - tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais, 3.ª edição, Dom Quixote, 2004.
MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo

Mariana Vaz, subturma 17, nº 58477

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