Exercício Prático n.o 2: 
Na sequência de inspeção realizada por Abel, inspetor da ASAE, ao conhecido estabelecimento de fabrico e comércio de chocolates “Os Chocolatitos”, verificou-se que os chocolates de leite estavam a ser vendidos sem que do seu rótulo constasse referência ao teor de matéria seca total de cacau. 
Considerando que a inclusão da mencionada referência é uma exigência legal, impondo a lei a utilização da expressão «cacau:...% mínimo», o inspetor-geral da ASAE, depois de tramitado o devido procedimento administrativo, aplicou a coima máxima de €44.890 e as seguintes sanções acessórias: privação do direito de participar em feiras e mercados e privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, tendo em consideração a seguinte norma legal: 

« Artigo 24.o Contraordenações 
1 - As infrações ao disposto no presente decreto-lei constituem contraordenações, nos termos do presente artigo. 
2 - Constitui contraordenação punível com coima, cujo montante mínimo é de (euro) 100 e máximo é de (euro) 3740, no caso de o agente ser pessoa singular, e cujo montante mínimo é de (euro) 250 e máximo é de (euro) 44 890, caso o agente seja pessoa coletiva: 
a) O incumprimento das menções obrigatórias no rótulo dos produtos de cacau. 
b) (...) 
3- Consoante a gravidade da contraordenação e a culpa do agente, podem ser aplicadas, simultaneamente com a coima, as seguintes sanções acessórias: 
  1. a)  Perda de objetos pertencentes ao agente; 
  2. b)  Suspensão da comercialização do produto; 
  3. c)  Privação do direito de participar em feiras e mercados; 
  4. d)  Privação do direito de participar em arrematações ou concursos 
públicos.» 

O proprietário da loja, Bento, encontra-se profundamente indignado com a decisão administrativa, na medida em que, para além de a ter como excessiva, afirma ter confiado no Aviso n.o 3/2018, de 4 de janeiro, emitido pelo inspetor-geral da ASAE, no qual era definido um prazo de seis meses para a correção dos rótulos. 
A verdade é que Bento chegou a invocar o referido Aviso em audiência prévia, mas, na fundamentação da decisão, o inspetor-geral da ASAE afirma que o Aviso n.o 3/2018 tratou- se de um lapso de José, anterior titular do cargo de inspetor-geral da ASAE, na medida em que a lei é clara quanto às exigências em matéria de rotulagem na venda de chocolates de leite e, naturalmente, a lei é insuscetível de ser afastada por atos jurídicos praticados por órgãos da Administração Pública. 
Bento teve ainda conhecimento, através de Carlos, amigo de longa data de Bento e subinspetor-geral da ASAE, de uma troca de e-mails entre o inspetor-geral da ASAE e Abel. Num desses e-mails o inspetor-geral expressou-se da seguinte forma: «Atenção à situação d’Os Chocolatitos. O concurso para a venda de chocolate na feira de Natal do Parque Eduardo VII está aí à porta e a minha Daniela não pára de me chatear com o assunto». 
Bento afirma ainda ter lido recentemente no “Correio da Matina” que o Estado tem de respeitar o princípio da boa administração e os direitos dos cidadãos, mas, pelos vistos, em matéria de chocolates «o Estado pode fazer tudo!». 
Quid iuris





Abel, inspetor-geral da ASAE- agente administrativo em relações com o Estabelecimento de fabrico e comércio de chocolates “Os Chocolatitos”- empresa particular (privado); 
Análise da norma jurídica:
Norma que existe para punir com contraordenações os produtos que não se encontrem em perfeito estado de consumo segundo a lei (produtos fora de prazo, estragados, que tenham consequências prejudiciais à saúde das pessoas, etc). Uma das situações punível com contraordenações é a que está presente na alínea a) do artigo “ O incumprimento das menções obrigatórias no rótulo dos produtos de cacau”. No caso em análise aferimos que a questão prioritária presenteé a que está na alínea referida anteriormente, estando em falta a percentagem de cacau presente nos produtos de chocolate. As possíveis coimas aplicáveis determinam-se num mínimo de 250€ para as situações menos gravosas e um máximo de 44890€ para a situações mais gravosas, por se tratar de uma pessoa coletiva (estabeliciemnto de chocolates). É preciso ter em conta que este artigo trata de todas as situações de irregularidade de venda de produtos. Comparando com outros problemas, como o facto do produto se encontrar estragado ou fora de prazo (problemas que, de facto, podem afetar a saúde das pessoas) podemos aferir sem muitas dúvidas de q esta situação (de falta da percentagem de cacau no rótulo) não pode ser considerada tão gravosa como outras atrás exemplificadas. Importa, de facto, falar nesta questão, na medida em que a norma ao atribuir um montante máximo e um montante mínimo de coima, dá uma certa discricionariedade ao agente administrativo (inspetor-geral da ASAE), discricionariedadeesta de escolha, porque aqui a administração tem montantes mínimos e máximos balizadores, dos quais tem de se basear para atribuir um montante adequado à situação em concreto, ou seja, tem de escolher um dos valores entre os montantes mínimos e máximos. Para além disso, o nº 3 da norma em questão ainda acrescenta que para além da coima aplicada, podemainda ser aplicadas sanções acessórias, consoante a gravidade da coima. Este preceito legal ainda atribui uma maior discricionariedade, neste caso, de ação/decisão, discricionariedade essa que vai ser balizada consoante a decisão do agente administrativo ao atribuir o montante da coima do número 2 (ou seja, se for aplicada uma coima pequena, se calhar fará sentido não aplicar uma sanção acessória; se for atribuída uma coima de montante máximo, fará sentido aplicar sanções acessórias). Conseguimos identificar no preceito legal dois conceitos indeterminados, nomeadamente, “gravidade da contraordenação” e “a culpa do agente”. Estes conceitos indeterminados fornecem ao aplicador (neste caso, o agente administrativo) uma discricionariedade criativa. Tendo em conta este tipo de discricionariedade temos de apurar se se tratam de conceitos que podemos simplesmente recorrer aos meros processos de interpretação jurídica ou se teremos de olhar ao caso concreto, o que acarretará uma maior discricionariedade. Começaremos por analisar o primeiro conceito e prosseguiremos a análise para o segundo. “gravidade da contraordenação”, ou mais especificamente “gravidade”, é um conceito que pela mera interpretação não é possível um preenchimento mínimo do conceito, ou seja, estamos perante um conceito de preenchimento valorativo no plano subjetivo, daí haver de facto uma margem de livre apreciação, concedendo ao aplicador da norma uma discricionariedade criativa, sendo este um conceito tipológico. Quanto ao conceito de “culpa do agente”, é já uma situação diferente, na medida em que, através de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, conseguimos encontrar, em primeiro plano, no ordenamento jurídico administrativo, elementos legais que nos ajudam a preencher o conceito. Um desses diplomas é por exemplo a Lei 67/2007 que trata da responsabilidade civil do Estado e das demais Entidades Públicas, e que ao longo dos seus artigos expões variadas vezes o conceito de culpa em termos de direito administrativo. Outro diploma que, apesar de não se tratar de direito administrativo em específico, mas que nos pode ajudar no preenchimento do conceito é o artigo 487º do Código Civil. Ambos os preceitos legais nos permitem preencher o conceito como a imagem do homem médio ou do bom pai de família, atribuindo um critério minimamente objetivo de aplicação ao caso em concreto.  Deste modo, podemos concluir que, por mais que o conceito de culpa seja abrangente, existem estas normas legais no ordenamento que funcionam como limites de interpretação, através de um processo sistemático. Deste modo, o conceito não oferece verdadeira discricionariedade criativa, nem uma livre margem de apreciação (como intitula o Professor Marcelo Rebelo de Sousa), sendo, assim, um conceito classificatório. Importa também referir que esta discricionariedade vai ser controlada pelos princípios gerais de direito administrativo, mas neste caso, indiretamente, na medida em que a coima aplicada vai ser adequada consoante os princípios, e a possibilidade de aplicação das sanções acessórias vai ser aplicada consoante a gravidade da coima aplicada. Neste caso em concreto, o princípio que tem de ser aqui discutido é o princípio da proporcionalidade (presente no artigo 7º CPA e o artigo 266º/2 CRP), e consequentemente, a análise da validade das suas 3 vertentes, nomeadamente, adequação, necessidade (ou proibição do excesso) e proporcionalidade em sentido estrito (ou razoabilidade ou equilíbrio). Começando por analisar os critérios mais lógicos e teleológicos de aplicação, a vertente da adequação pode deixar algumas dúvidas. Segundo esta etapa, a medida adequada tem de ser causalmente adequada ao fim a atingir. O fim a atingir neste caso é que se alerte à empresa da falta desse componente no rótulo para que se ratifique a situação e que não se volte a repetir para a perfeição de venda do produto. Neste caso, a aplicação de uma coima tão elevada pode não ser considerada ajustável ao fim que se pretende atingir. Prosseguindo, e visto que estamos na dúvida se a primeira etapa se cumpre ou não, partiremos do pressuposto que esta vertente é aplicada, e analisaremos a segunda vertente, a da necessidade. Esta etapa basicamente pressupõe que, após um juízo comparativo das várias medidas de possível aplicabilidade, se aplique a medida que for menos lesiva para a esfera jurídica dos particulares em questão. Se na primeira etapa, estávamos na dúvida se a vertente se cumpria ou não, aqui não nos restam dúvidas de que esta vertente não se cumpre. Não se cumpre porque de facto, tendo em conta a situação, não se justificaria a aplicação da coima com o montante mais elevado, nem a aplicação das sanções acessórias aplicadas, mas sim um montante menos elevado, tomando a medida que menos prejudicaria o estabelecimento de chocolates. Quanto à aplicação do princípio da proporcionalidade no seu geral, quando uma das etapas (ou pressupostos, como há quem intitule)não se cumpre, o princípio encontra-se imediatamente violado, daí não haver a necessidade de análise da terceira e última vertente, a da proporcionalidade em sentido estrito. Independentemente da violação do princípio, importa referir que esta última vertente pressupõe um juízo axiológico e adaptado ao caso concreto dos custos implícitos e das vantagens obtidas em que, para a validação da etapa, é necessário que as vantagens sejam superiores aos custos. Estando o ato violado pelo princípio da proporcionalidade este ato é considerado inválidoConcluímos, assim, que o ato praticado pelo inspetor geral da ASAE viola o princípio referido anteriormente, na medida em que a situação em questão não poderá ser considerada suficientemente gravosa para a atribuição de uma coima tão alta e de um conjunto de medidas acessórias sancionatórias, que não parecem justificar o meio a atingir, nem se encontram adequadas a situação.

Quanto ao Aviso n.o 3/2018, de 4 de janeiro, mencionado por Bento, cabe-nos, primeiramente, proceder à sua análise quanto à questão da desaplicação de regulamentos administrativos pela função administrativa. Em primeiro lugar deve-se referir que a Administração Pública está sujeita e vinculada ao princípio da legalidade. Dado este facto, segundo a vertente da prevalência de lei, o inspetor-geral da ASAE tem o dever de cumprir com a norma e com o aviso emitido. Importa também referir que o aviso em questão não vai contra o espírito da norma explanada, apenas acrescenta um preceito legal, logo está de acordo com o princípio da legalidade. Assim, o inspetor não pode simplesmente derrogar a aplicação do aviso, na medida em que a Administração Pública não tem, em regra geral, o poder de fazer estes juízos, e por isso terá de aplicar a norma de nível inferior (regulamento/aviso);

Existem algumas exceções à regra geral, que vão variando consoante a doutrina (por exemplo, o professor Jorge Miranda entende que no caso de se tratar de uma norma q origine um crime, a Administração Pública poderá fazer esse juízo de afastamento de aplicação da norma; o professor Gomes Canotilho tem a opinião de que a exceção a este princípio é no caso da aplicabilidade da norma originar uma inconstitucionalidade manifesta; o professor Vieira de Andrade explicita que uma das possíveis exceções será a possibilidade a norma originar uma inconstitucionalidade material),mas neste caso, podemos concluir, sem qualquer dúvida, que a tese da excecionalidade de desaplicação de normas não se poderá aplicar. Neste caso nem teríamos de tomar considerações quanto a esta tese, na medida em que o próprio aviso foi emitido pelo próprio orgão administrativo em questão (inspetor geral da ASAE) e nesse caso, bastará afastar o regulamento da ordem jurídica, deixando de produzir efeitos. Para além disso, o facto do inspetor geral da ASAE afastar uma norma que estava em vigor está a frustrar as expetativas de Bento, havendo aqui uma clara violação do princípio da boa-fé, na vertente da tutela da confiança. O princípio da boa fé consta do artigo 266/2 CRP e artigo 10 CPA, e para ser violado na vertente da tutela da confiança legítima é necessária a verificação de 4 pressupostos: 
1)     existência de uma situação de confiança que tem de ser legítima: existência do aviso; (atuação administrativa);
2)     justificação para essa confiança (ou confiança legítima): o aviso é um regulamento administrativo (não é um ato administrativo porque é geral e abstrato- e não individual e concreta - artigo 148º CPA; os regulamentos administrativos têm uma vigência sucessiva, ao contrário dos atos administrativos, que se extinguem após a verificação dos seus efeitos); este regulamente teria de ter uma norma de competência habilitante para a legalidade do aviso;  
3)     investimento na confiança: omissão- confiou no aviso, e como tinha 6 meses de prazo para corrigir o rótulo não agiu de imediato;
4)     situação de confiança frustrada: quando se aplicou a contraordenação;

5)     imputação da situação de confiança: deve ser imputada ao inspetor geral da ASAE antigo;

Estando os pressupostos cumpridos, o princípio está violado. O ato é anulável (contraordenação revogada) pelo artigo 163º/1 CPA. Os tribunais administrativos têm sido muito resistentes na anulabilidade de atos administrativos pela violação do princípio da segurança jurídica. Especialmente neste caso, em que de facto a aplicação do ato está de acordo com a norma legal. Na verdade, os tribunais da administração pública têm decidido por atribuir responsabilidade civil da administração pública pela lesão da esfera jurídica dos particulares, que seria o mais certo de aplicar no caso em específico.

Outra questão que também deve ser abordada é se Carlos, subinspetor da ASAE poderia ter divulgado os emails a Bento. Numa primeira análise, sim, na medida em que todas as informações relevantes podem e devem ser divulgadas, segundo o  princípio da colaboração com os particulares (artigo 11º CPA) e o princípio da administração aberta (artigo 17º CPA).

De seguida, não nos restam dúvidas de que existe aqui um problema com a violação do princípio da imparcialidade por parte do orgão administrativo inspetor geral da ASAE, na sua vertente negativa: claramente no caso em questão o orgão está a tomar outros interesses que não os necessários à ponderação, interesses esses que advém da relação pessoal que tem com Daniela. O caso não nos permite saber que tipo relação é que existe entre Daniela e o inspetor, mas a expressão “a minha Daniela” dá-nos indícios que existe de facto uma relação entre ambos. Parece-nos viável a possibilidade de inserir a situação como uma causa de impedimento do artigo 69º/1/a). Em matéria de impedimentos é obrigatória por lei a substituição do orgão administrativo em questão (artigo 72º/1). No entanto, o caso não nos fornece dados suficientes para aferirmos com certeza a aplicação desta alínea, visto que não sabemos que tipo de relação existe, daí não podermos aplicar diretamente o artigo 69º/1porque tem uma enumeração taxativa. Passaremos, assim, para o grau mais abaixo de imparcialidade que definiu o legislador, a escusa ou suspeição, do artigo 73º/1, que tem uma enumeração exemplificativa, logo não será necessário inserir numa das alíneas. Apesar disso, poderíamos ainda considerar a alínea d) do mesmo artigo, por ter o conceito “grande intimidade”, que nos pode aproximar da expressão presente no caso. Não poderemos, na mesma, afirmar com certezas a aplicação deste conceito (que é muito discutido na doutrina), por isso aplicaremos diretamente o artigo 73º/1. A consequência jurídica é a presente no artigo 76º/4, sendo o ato anulável. Outra questão que deveremos abordar é a da relação que existe entre o principio da imparcialidade e o desvio de poder por interesse privado. Na verdade, todo o desvio de poder implica uma violação do principio da imparcialidade, mas nem toda a violação do principio da imparcialidade implica um desvio de poder por interesse privado. Desvio de poder por interesse privado corresponde à prática de um ato administrativo que determinou o fim de um interesse privado, sendo necessário a demonstração que o que levou o agente administrativo a agir foi a prossecução do interesse privada, e que esse motivo foi determinante. Este devia de poder gera a nulidade do ato, 161º/2/e). Neste caso, não poderíamos considerar a existência de um desvio de poder por interesse privado, porque não existem factos suficientes para apurarmos essa situação. 

Quanto ao último parágrafo do caso, concluímos que não faria sentido invocar o príncipio da boa administração. Este princípio determina que a Administração Pública se deve pautar por critérios excelentes de eficiência, economicidade e celeridade (artigo 5º CPA), e de facto, o caso não aponta para a violação de nenhum destes critérios. Para além disso, a doutrina tradicional entende que este princípio é objetivo, e que por essa razão, os particulares não têm o direito de invocá-la. Por outro lado a doutrina mais recente defende que ,como qualquer princípio do CPA, este pode ser invocado pelos particulares, claramente fundamentando com o que está explicito no artigo 5º do CPA (através dos critérios anteriormente referidos. 



Tomé Barcelos, 58440











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