Casos de afastamento do efeito anulatório do Art. 163º/5


O regime da anulabilidade – em especial os casos de afastamento do efeito anulatório do art. 163º/5

            O regime regra em matéria de invalidade dos atos administrativos é o regime da anulabilidade – art 163º/1. Segundo este, o ato é suscetível de ser anulado, o que fará com que o mesmo produza efeitos ainda que a título precário, na medida em que esses efeitos podem ser destruídos desde o início se o ato vier realmente a ser anulado. Para ocorrer a anulação, tem de ser praticado outro ato administrativo ou uma sentença de anulação, o que significa que o ato será eliminado e os seus efeitos destruídos. 
            Cabe acrescentar que o art 163º/5 CPA introduziu um regime inovatório, nos termos do qual o efeito anulatório não se produz: quando o conteúdo do ato anulável não podia ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permitir identificar apenas uma solução como legalmente possível; quando o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via; quando se comprove, sem margem para dúvidas, que, sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo. 
            A sustentar estas normas está o critério da racionalidade, que tem como objetivo aproveitar os procedimentos: sempre que se possa afirmar, sem margem para dúvidas, que a anulação será seguida de um novo ato com o mesmo conteúdo, não se justifica anular o ato para praticar outro igual, fazendo sentido preservar aquele, ainda que ele padeça de alguma ilegalidade, que, dependendo dos casos, tanto poderá ser de forma ou de procedimento.
            Quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no 163º/5, está, por lei, afastada a possibilidade de sancionar o ato com anulação. Note-se que o preceito em análise exclui, pura e simplesmente, a possibilidade da anulação nos casos nela previstos e, por outro lado, tanto vincula o juiz no âmbito de qualquer processo que contra o ato seja intentado, como vincula também, em primeira linha, a própria Administração, no que diz respeito ao exercício do seu poder de anulação administrativa.
            Mário Aroso de Almeidaconsidera que as previsões do art. 163º/5 são entre si complementares:
a)    A previsão do art 163º/5, a)tem em consideração o tipo de situações a que a jurisprudência recorre (sobretudo em casos de vício no procedimento por falta de audiência dos interessados) ao denominado aproveitamento do ato administrativo anulável: são situações de vinculação, em que, mesmo que a ilegalidade cometida não tivesse ocorrido, o conteúdo do ato não poderia ser diferente daquele que foi, pelo que a sua eventual anulação teria necessariamente de conduzir à prática de um novo ato com o mesmo conteúdo. De referir ainda que a Administração Pública está vinculada à prática daquele ato, não dispondo de poder de escolha, restando-lhe apenas praticá-lo com aquele conteúdo – redução a discricionariedade zero. 

b)    A previsão do art 163º/5, b)tem em vista o tipo de situações a que a jurisprudência denomina de degradação de formalidades essenciais em não essenciais: situações que dizem respeito a violações de regras de forma e de procedimento. Como a observância destas regras não é um fim em si mesmo, pode ser possível afirmar que, não obstante a sua inobservância, foi assegurado o objetivo pretendido pela lei ao impô-las, não se justificando a anulação do ato praticado. Nestas situações, sendo esta uma diferença em relação à aliena precedente, não se exige que o ato seja vinculado, exige-se apenas que os valores protegidos pela norma procedimental ou formal violada tenham sido assegurados por outra via, de modo a poder afirmar-se que a ilegalidade cometida não teve qualquer efeito sobre a substância da decisão, pelo que não se justifica que tenha relevância invalidante em relação a ela.

c)    As situações presentes no art 163º/5, c)abrangem as situações que a jurisprudência denomina como aproveitamento do ato administrativo anulável. Outra parte da doutrina designa este tipo de situações como o aproveitamento de atos administrativos discricionários. A diferença consiste em que enquanto a al. a) tem em vista os casos em que o “conteúdo do ato não possa ser outro”, sendo que mesmo que o ato fosse anulado, seria de novo praticado com o mesmo conteúdo, a al. c) tem em vista casos em que “mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo”. Nesta última, exige-se para que a anulabilidade do ato seja afastada, que “se comprove, sem margem para dúvidas”, que o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo, mesmo que a ilegalidade não tivesse ocorrido.
Deste modo, segundo Mário Aroso de Almeida, o que a aplicação do art 163º/5 c) tem principalmente em vista são as situações em que, tendo um ato discricionário sido praticado, com um determinado conteúdo, com fundamento em vários pressupostos e/ou motivos, algum ou alguns dos quais viciados, seja possível concluir, sem margem para dúvidas, que o autor do ato o teria praticado, nos mesmos termos, se só tivesse considerado os pressupostos e/ou motivos válidos.
      O art 163º/5 CPA não engloba a possibilidade de existir interesse na anulação dos efeitos produzidos por ato anulável que envolva a imposição de deveres, encargos, ónus ou sujeições, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos e interesses legalmente protegidos. Outro ponto importante prende-se com o facto de não ter sido concretizado o afastamento do efeito anulatório como uma faculdade reservada aos tribunais, parecendo que a norma impede os juízes administrativos de atender aos “interesses que se manifestam na situação concreta da vida perante si”, quando essa questão possa ser suscitada. Ainda que a solução possa parecer contraditória com aquela que o CPA anteriormente estabelecera para os arts. 164º/5 e 173º/3, no domínio da convalidação dos atos administrativos anuláveis, ao analisar criteriosamente, estes preceitos pressuporão situações que carecem de convalidação pelo facto de não estarem enquadradas nas hipóteses acauteladas no art.º. 163º/5. 
Quando estejam em causa atos que apliquem sanções ou imponham restrições a direitos fundamentais, considera-se que o juiz administrativo deve ser admitido, aplicando analogicamente o art 173º/3, limitando o alcance do regime aqui em análise, anulando os efeitos lesivos produzidos pelo ato durante o período decorrido até ao momento em que, segundo o disposto no art 163º/5, seja determinado o afastamento do efeito anulatório. 
      Ainda na opinião do autor supramencionado, a introdução no art 163º/5 da previsão das causas de afastamento do efeito anulatório foi positiva. De facto, não é razoável anular um ato administrativo materialmente correto, quando se sabe de antemão que a anulação a mais não conduziria do que à prática de outro ato com o mesmo conteúdo.  É, então, positivo que se tenha procedido a esta consagração normativa com relevo significativo na prática jurisprudencial, favorecendo também a transparência e a previsibilidade na aplicação do Direito.
Importa ainda mencionar que, inerente à consagração das soluções previstas no art 163º/5 não visa desvalorizar as normas procedimentais e de forma.
      Na verdade, nos dias de hoje é impossível negar a função primordial que compete ao procedimento de garantia de correção material das decisões, como resulta do regime do CPA. Nesta ótica, não podemos deixar de anular todo o ato administrativo que padeça de ilegalidades procedimentais que possam, de algum modo, pôr em causa a correção material do seu conteúdo.
      Importa frisar que, nem a a) nem a b) do art 163º/5 se referem à violação de normas formais ou de procedimentos sendo, inversamente, formuladas de modo a garantir que o afastamento do efeito anulatório tanto pode ter por objeto atos que padeçam de vícios de procedimento ou de forma, como atos que enfermem de vícios quanto aos pressupostos ou de conteúdo. Porque a questão não se prende com saber se o ato está ferido de um vício de forma ou de fundo, mas sim em saber se, mesmo na ausência da ilegalidade cometida, se o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.Isto é, aplicar o princípio do aproveitamento do ato administrativo não assenta exclusivamente na dicotomia vinculação-discricionariedade, em termos de sempre ser de excluir no domínio dos atos praticados no exercício de um poder discricionário. Em sentido inverso, devemos antes centrar-nos no erro (nomeadamente nos seus pressupostos) já que é esse o tipo de vício em causa, uma vez que existem erros respeitantes a atos praticados no uso de um poder discricionário cuja anulação o juiz pode privar-se de determinar por invocação do referido princípio. Ainda neste  domínio, pode o tribunal rejeitar a relevância anulatória ao erro, sem risco de se substituir a Administração Pública quando, pelo conteúdo do ato e pela incidência da sindicação, possa afirmar convictamente que a falsa representação dos factos ou do direito aplicável não pôs em causa o conteúdo da decisão administrativa porque não afetou as reflexões ou as opções no âmbito desse espaço discricionário. 
       Salienta-se que, mesmo não se produzindo o efeito anulatório, nos casos mencionados no art 163º/5, não deixa por isso de se verificar uma ilegalidade, o que, na nossa ótica, continua a ser causa plausível de invalidade do ato. Assim sendo, o regime do art 163º/5 não tem o alcance de confirmar o ato inválido, somente possibilita tornar a sua invalidade inoperante, permitindo que ele se mantenha na ordem jurídica e continue a produzir efeitos. Não se trata assim de um afastamento da invalidade do ato mas sim da respetiva sanção que lhe corresponde. Nessa medida, a aplicação do art 163º/5 não deve obstar a que, quando se tenham sido ofendidos direitos ou interesses legalmente protegidos, o ato seja categorizado como um ato ilícito, de modo a possibilitar a constituição em responsabilidade civil extracontratual da entidade pública em causa.
Note-se que da conjuntura de um ato administrativo anulado vir a ser renovado não reveste, por si só, um fator de afastamento do dever de a Administração Pública indemnizar o contestador que obteve a anulação, uma vez que, se a impugnação tiver como base a invocação da violação de uma norma de proteção dos seus direitos ou interesses, haverá nesse sentido, um motivo indemnizável de um interesse legalmente protegido.
            Com base no autor, este pensamento tende a  valer para a hipótese de se legitimar que o ato violou uma norma de proteção e que só não se justifica anulá-lo para evitar a necessidade de a Administração o renovar em seguida. Com efeito, também neste caso, importa reconhecer que a Administração, ao transgredir a norma de proteção, cometeu uma ofensa indemnizável do interesse legalmente protegido do interessado, que, por esse motivo, deve ser reconhecido como um facto ilícito. Como exemplo deste facto temos o direito de audiência dos interessados. Uma vez preterido este direito, à abertura à constituição de um dano a de natureza não patrimonial, que deve ser indemnizado em montante a fixar segundo um critério de equidade. 

Bibliografia: 
AMARAL, Diogo Freitas, “Curso de Direito Administrativo", volume II, 2ª edição, Almedina, 2012
“Revista de Direito Administrativo #2”, (Maio- Agosto),2018
ALMEIDA, Mário Aroso, “Teoria Geral do Direito Administrativo”, 5ª edição, Almedina, 2018


Diogo Martins Lopes
Nº 58684 
Turma: B 
Subturma: 17
            

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