As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares
As Relações Jurídicas Administrativas
Multipolares
Sara Isabel
Frutuoso Marques de Lemos
58193
Sumário: I. Definição
de relação jurídica administrativa; II. Surgimento do
conceito de relação jurídica multipolar; III. Controvérsia em
torno da conceção a adotar; IV. Relações
multipolares na doutrina e jurisprudência portuguesas; V. Conclusão; VI.
Bibliografia.
I.
Definição de Relação Jurídica Administrativa
Estruturalmente, a relação jurídica
administrativa não se distingue da relação jurídica de direito privado. Não
obstante, aquilo que caracteriza uma relação jurídico-administrativa é
precisamente o seu fim, isto é, o facto de visar a prossecução do interesse
público. Conforme afirma Dinamene Freitas, quando estamos perante uma relação
jurídica administrativa, trata-se de uma relação no plano dos factos, não tendo
de ser necessariamente uma relação da vida social. Nestas relações jurídicas,
salvo nos casos em que a lei determina o contrário, é necessário que existam,
pelo menos, dois sujeitos. Historicamente, a figura da relação jurídica
administrativa multipolar está relacionada com o ato administrativo de duplo
efeito ou que produz efeitos reflexos sobre terceiros. Todavia, uma relação
jurídica administrativa multipolar também pode ser resultado de um contrato ou
de normas legais, bem como de regulamentos.
II.
Surgimento do conceito de relação jurídica
administrativa
O conceito de relação jurídica
tem vindo a modificar-se, uma vez que o surgimento de novos direitos subjetivos
públicos implicou uma reformulação daquele conceito, ampliando o número de
sujeitos privados, que anteriormente eram considerados terceiros face à
Administração.
Segundo
o Professor Vasco Pereira da Silva, é no contexto do Estado pós-social que
surge a multipolaridade provocada pelas atuações administrativas. O Professor
Diogo Freitas do Amaral, por sua vez, entende que o ato administrativo com
eficácia em relação a terceiros não surge com o Estado pós-social, afirmando
que desde há muito que esta realidade existe. O Professor Rui Machete
aproxima-se da posição do Professor anteriormente referido, entendendo que a
evolução desta multipolaridade se verifica “no último quartel do século
passado”. Paralelamente a esta designação de relação jurídica como multipolar,
a doutrina também designa estas relações como multilaterais, poligonais ou
triangulares, ainda que se discuta qual a denominação mais correta. A
existência destas relações deve-se, portanto, ao facto de a Administração, no
âmbito da sua atuação administrativa, envolver múltiplos destinatários. A ideia
de relação jurídica multipolar surge no Direito alemão e tem a sua origem na
doutrina, tendo, pois, como principal objetivo, dar resposta aos novos
fenómenos jurídico-administrativos.
Tal como afirma o Professor Vasco Pereira da
Silva, até as decisões individuais podem ter uma “dimensão social” [1], o que significa que “o
ato administrativo deixa de ser apenas uma forma de atuação relativa a um
concreto particular” [2].
Como tal, as relações multipolares são precisamente aquelas em que, para além
do destinatário de uma medida administrativa, estão também abrangidos outros
sujeitos que são chamados de “terceiros”. Todavia, para que estejamos perante
uma relação administrativa multipolar, não basta que haja mais do que dois
sujeitos, é necessário também que esses sujeitos não estejam agrupados
“enquanto titulares conjuntos de apenas duas posições jurídicas subjetivas contrapostas”
[3]. Como tal,
cabe-nos compreender que o ato administrativo produz também efeitos
relativamente a outros sujeitos, a “terceiros”. Cria-se uma relação
administrativa multilateral que deixa de envolver apenas a Administração e o
destinatário do ato, pelo que os chamados terceiros vão passar a “fazer parte
da relação jurídica administrativa”. A questão que se coloca relativamente a
esta ideia de que o ato administrativo também produz efeitos relativamente a
terceiros suscita um problema, o de saber como proteger jurisdicionalmente
estes particulares.
De acordo com o Professor Vasco Pereira da
Silva, a Administração prospetiva caracteriza-se precisamente pelo facto de o
ato administrativo passar a ter eficácia em relação a terceiros. Na sua obra Em Busca do Ato Administrativo Perdido,
o Professor exemplifica, entre outros, um ato administrativo que tem eficácia
perante terceiros, que é o caso da autorização administrativa.
A noção de relação administrativa multipolar
ainda não se demonstra consolidada na doutrina e na jurisprudência portuguesas.
A difícil aceitação desta nomenclatura deve-se ao facto de o contencioso
administrativo, em Portugal, conforme afirma Dinamene Freitas, prescindir do
conceito de relação jurídica, baseando-se, por outro lado, na ideia de
interesses legalmente protegidos. Esta noção de interesses legalmente protegidos
permite a tutela de todas as posições subjetivas dos indivíduos que pudessem
sair lesados com as atuações/omissões administrativas. Como tal, não se
demonstra urgente a necessidade de acolher esta noção de relação jurídica
multipolar no nosso ordenamento jurídico. Podemos, neste sentido, dizer que
existe um interesse legalmente protegido quando a norma cuja lesão é invocada
prossegue o interesse público, mas também interesses individuais.
A ideia
de interesse legalmente protegido implica a delimitação dos indivíduos que se
inserem nesse círculo de sujeitos que pertencem a uma relação jurídica
administrativa multipolar. Ora, de acordo com Dinamene Freitas, o critério que
deve ser utilizado para delimitar este círculo é o da lesão ou afetação qualificada.
De acordo com o autor, através deste critério conseguimos determinar quais são
os indivíduos que podem ser qualificados como terceiros-parte e quais os
restantes indivíduos. O autor afirma, contudo, que quando fala em “lesão” deve
entender-se que o direito subjetivo do particular, neste caso, existe
anteriormente à àquela, ou seja, não se trata apenas de um direito reativo que
só surge após a lesão. Esta qualificação de “terceiros” é criticada pelo
Professor Vasco Pereira da Silva e também por Dinamene Freitas, uma vez que, se
também integram esta relação administrativa multipolar e podem fazer-se valer
do seu direito subjetivo face à Administração Pública, não devem ser chamados
terceiros, não sendo verdadeiros estranhos à relação jurídica. Importa, pois,
compreender a quem se refere o CPA quando fala em “interessados”, que é o caso,
por exemplo, do artigo 100º do diploma. Conforme afirma Dinamene Freitas, não
podemos entender que “interessados” abrange apenas os destinatários da atuação
administrativa, mas também não podemos aceitar que o CPA se refira a todos os
sujeitos que possam ver-se afetados por aquela atuação. Como tal, entende-se
que quando o CPA determina que os “interessados”, devem, por exemplo,
participar na audiência prévia, se deve retirar daí que se refere
simultaneamente aos destinatários e a terceiros que não são, contudo,
totalmente estranhos naquela relação jurídica, conforme referi supra. O
problema é, de facto, a delimitação de quem são estes terceiros e quais as
condições que se devem verificar para os considerarmos inseridos na relação
multipolar e, por conseguinte, para poderem ser chamados a ser parte do
procedimento que vai conduzir à tomada de decisão. São chamados “terceiros”
exatamente pelo facto de aquela decisão da Administração não os visar
diretamente. Cabe-nos, então, compreender quais são os direitos de que o
terceiro pode ser titular quando a atuação administrativa tem efeitos reflexos.
Desde logo, o terceiro pode ter um direito a prestações negativas, ou seja,
direito a que a Administração não faça determinada coisa. Por outro lado, pode
ainda acontecer que do direito do terceiro resulte que a Administração deve
atuar de determinada forma. Compreendemos, assim, a necessidade de distinguir,
conforme afirma Dinamene Freitas, os “terceiros juridicamente indiferentes
daqueles terceiros que devam considerar-se diretamente afetados, na sua esfera
jurídica”, por forma a podermos delimitar o âmbito da relação jurídica
multilateral.
III.
Controvérsia em torno da conceção a adotar
É unânime na doutrina a necessidade de alargar
a proteção das situações jurídicas dos particulares tanto ao nível do
procedimento quanto ao nível do processo. No entanto, a doutrina divide-se
quanto à forma de resolver esta problemática. A divisão da doutrina nesta
matéria é em função da adoção de uma conceção objetivista ou de uma conceção
subjetivista. A orientação subjetivista, que é aquela que predomina no direito
alemão, determina que deve ser ampliado o conceito de direito subjetivo com
base na noção de direitos fundamentais. Aquilo que explica a dificuldade dos
sistemas francês e italiano em adotar esta conceção subjetivista resulta,
conforme afirma Rui Machete, do facto de nestes ordenamentos a força jurídica
dos direitos fundamentais e o seu caráter direto não terem sido
constitucionalmente consagrados. A conceção objetivista, aceite maioritariamente
na doutrina italiana, é aquela que entende que a solução para o problema da
proteção de terceiros neste âmbito das relações administrativas multipolares é
permitir a possibilidade daqueles terceiros poderem intervir no procedimento e
no processo administrativos, por forma a defenderem os seus interesses difusos.
O Professor Vasco Pereira da Silva entende que a melhor solução para o direito
português é a adoção de uma conceção subjetivista, por forma a valorizar a
proteção jurídica subjetiva.
A conceção subjetivista assenta nas ligações
que se estabelecem entre os diversos sujeitos jurídicos. Como tal, pelo facto
de ter como base a noção de direitos fundamentais, esta conceção implica ter em
conta os interesses de todos os particulares envolvidos. Os direitos fundamentais
consagrados na nossa Constituição no seu artigo 18º resultaram da adoção de um
modelo germânico em detrimento do modelo francês, facto que permitiu a adoção
desta conceção. No entanto, conforme afirma o Professor Vasco Pereira da Silva,
a jurisprudência e a doutrina têm vindo a entender que o terceiro só poderá
fazer valer o seu direito subjetivo perante a Administração Pública se se
tratar de uma “lesão grave e insuportável” dos seus direitos fundamentais. O
Professor concorda com esta visão, uma vez que, tratando-se de um caso
diferente daquele que se verifica quando a atuação administrativa se dirige
apenas a um particular, não podemos entendê-lo exatamente no mesmo sentido que
este último. Deste modo, os terceiros só poderão fazer valer o seu direito
subjetivo perante a Administração se se verificar a tal “lesão grave e
insuportável”, conforme referi supra. Assim sendo, nos casos em que existem
terceiros que também foram lesados pela atuação administrativa, o que o
Tribunal deverá fazer é avaliar os seus direitos fundamentais e verificar se
houve uma violação daqueles. Esta parte da doutrina entende os direitos
fundamentais como “garantias de procedimento”. Como tal, todos aqueles que
possam ver os seus direitos lesados, podem intervir no procedimento.
Para além das conceções supramencionadas,
importa referir que a doutrina alemã aponta ainda para uma outra solução, a da
teoria da norma de proteção. Com base nesta teoria, será “possível descobrir o
direito subjetivo público criado pela norma ordinária, ou resultante do dever
de concretização dos direitos subjetivos fundamentais por parte da
Administração”.
De acordo com o Professor Paes Marques, não
deve haver uma “duplicidade estatutária” que resulte na análise de, por um
lado, a relação entre a Administração e o destinatário da sua atuação e, por
outro lado, a Administração e os outros sujeitos que também viram os seus
direitos subjetivos afetados pela atuação administrativa. O que o Professor
entende é, pois, que os chamados “terceiros” devem ser postos no mesmo plano
que o destinatário da atuação administrativa, ou seja, num “plano de igualdade”
[4].
Uma das questões mais controversas no que diz
respeito às relações jurídicas administrativas multipolares assenta na ideia de
que, com surgimento destas relações, estaríamos a conferir ao juiz um elevado
grau de discricionariedade, uma vez que este poderia decidir por motivos, por
exemplo, de sensibilidade, dar um papel no processo aos “terceiros” que fossem
prejudicados pela atuação administrativa.
É importante referir que esta proteção da
posição jurídica detida pelo não destinatário do ato administrativo, não
constitui, conforme afirma o Professor Francisco Paes Marques, um “dever
constitucional de proteção de terceiros” [5], uma vez que isso significaria desconsiderar o instituto da
reserva de lei, segundo o qual se exige que a atuação da Administração tenha
fundamento numa norma jurídica, tendo, portanto, uma mera proteção reflexa.
Importa, por outro lado, entender também que esta proteção de “terceiros” não
constitui um “título imediato de agressão da esfera da liberdade de outros
particulares”.
No domínio das relações multipolares é
importante também atender à separação que a doutrina faz entre margem de livre
apreciação e discricionariedade.
IV.
Relações multipolares na doutrina e
jurisprudência portuguesas
Os primeiros casos em que a doutrina e a
jurisprudência se manifestaram acerca da necessidade de superar a conceção
única e exclusivamente bilateral do ato administrativo foi no âmbito do Direito
Urbanístico. Isto aconteceu uma vez que, aquando de uma autorização para
construção, estão também diretamente envolvidos os direitos e os interesses
legalmente protegidos dos vizinhos. Mais tarde, muitas mais situações desta
natureza surgiram, designadamente no âmbito dos direitos ambientais. Surgiu,
portanto, este conceito de relação jurídica administrativa multipolar que veio
dar resposta aos casos em que o ato administrativo de caráter meramente
bilateral ou com eficácia em relação a terceiros não dava reposta aos casos em
que havia conflitos entre os particulares que, conforme afirma o Professor
Vieira de Andrade, também releva no plano administrativo. Ao considerarmos os
interesses destes “terceiros” estamos a alargar o conceito de direito subjetivo
público.
No que diz respeito à regulação destes casos,
o procedimento administrativo português demonstra-se efetivamente, insuficiente
para dar resposta a esta problemática, nomeadamente em comparação ao direito
alemão, uma vez que este contém normas específicas relativas à regulação
multipolar do procedimento administrativo. Neste sentido, ao passo que a ordem
jurídica alemã admite, amplamente, a participação de terceiros e a consideração
dos seus interesses, distinguindo claramente o destinatário do ato e o
“destinatário do ato administrativo-terceiro afetado”, o nosso CPA diminui a
importância desta dicotomia. A falta de regulação das relações multipolares no
nosso CPA implica que esta problemática seja resolvida atendendo aos princípios
gerais da atividade administrativa.
O Professor Francisco Paes Marques entende
ainda que, uma vez que não deve ser feita a distinção entre destinatário e
terceiro do ato administrativo, afirma que , em relação à notificação do ato
administrativo, quando se trata de um ato multipolar, que essa notificação deve
ser feita a todos aqueles que são afetados, uma vez que se trata de um ato
administrativo que lhes impõem deveres, sujeições ou sanções, conforme
determina o CPA.
Em suma, o ato administrativo multipolar
caracteriza-se por constituir direitos e deveres para vários sujeitos privados
que estão envolvidos na relação jurídica multipolar, pelo que todos eles
deverão poder participar no procedimento bem como ver os seus direitos e
interesses legalmente protegidos ser tidos em conta quando se trate de um ato
que os possa colocar em causa. Devemos atender sempre, no que diz respeito as
relações jurídicas multipolares, aos princípios da prossecução do interesse
público e da proteção dos direitos e interesses do cidadão, ao princípio da
proporcionalidade e ainda ao princípio do Estado de Direito Democrático.
V.
Conclusão
Demonstra-se, assim, inconcebível a ideia
segundo a qual a intervenção no procedimento administrativo se limita àqueles
que são considerados os interessados obrigatórios naquele. Como tal, e uma vez
que a participação procedimental tem uma grande importância no domínio da
multipolaridade administrativa, é “jurídico-constitucionalmente inadmissível” que
qualquer interessado não possa participar na tramitação da decisão que será
tomada pela Administração.
Através desta análise das relações jurídicas
multipolares, é possível afirmar a imperativa necessidade de rejeitar a ideia
segundo a qual há uma distinção entre o destinatário e o terceiro do ato
administrativo no âmbito subjetivo do procedimento. Não obstante, como é
evidente, a meu ver, ao passo que os
interessados obrigatórios do procedimento administrativo estão na sua
totalidade habilitados a participar no procedimento, não se verifica a
abrangência da totalidade dos “terceiros”, isto é, não é todo o “terceiro” que
poderá participar no procedimento do ato administrativo, mas sim aquele que
tenha interesses legalmente protegidos aos quais se deve atender.
É relevante ainda referir que os atos
administrativos multipolares e, por conseguinte, as relações jurídicas
multipolares que daí advêm não constituem uma exceção à individualidade do ato
administrativo. Como sabemos, os atos administrativos são individuais e
concretos e, no que diz respeito aos atos administrativos multipolares, estas
características continuam a verificar-se, pelo que os destinatários do ato têm
sempre de ser determináveis.
VI.
Bibliografia
MARQUES, Francisco Paes, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares,
2009;
SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina,
FREITAS, Dinamene Geraldes Faria de, As Relações Administrativas Multilaterais:
reflexos da figura no novo regime do contencioso administrativo, Lisboa,
2003;
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo III
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 6ª edição, 2016.

[1] –
SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Ato Administrativo
Perdido, Almedina, p.131
[2] –
SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Ato Administrativo
Perdido, Almedina, p.131
[3] - FREITAS, Dinamene Geraldes Faria de, As Relações Administrativas Multilaterais:
reflexos da figura no novo regime do contencioso administrativo, Lisboa,
2003, p.13;
[4] - MARQUES, Francisco Paes, As Relações Jurídicas Administrativas
Multipolares, 2009, p.16;
[5] - MARQUES, Francisco Paes, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares,
2009, p.433;
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