As garantias administrativas dos particulares: em especial - a queixa do Provedor de Justiça


As garantias administrativas dos particulares: em especial – a queixa do Provedor de Justiça  


Conceito e tipos:

Antes de mais, importa referir que, dentro da categoria dos procedimentos administrativos decisórios, existem os chamados procedimentos de controlo, que visam a produção de decisões de apreciação de condutas administrativas anteriores, positivas ou omissivas (por isso, estes procedimentos são por vezes designados como procedimentos decisórios de segundo grau). Quando incidem sobre atos administrativos anteriores, os procedimentos de controlo culminam normalmente com a emissão de atos administrativos secundários; quando visam a apreciação de omissões, culminam, normalmente com uma primeira decisão sobre a matéria em causa (Sousa & Matos, 2007). Nos termos gerais, estes procedimentos podem ser de iniciativa oficiosa ou de iniciativa particular. Vamo-nos focar, no presente trabalho, apenas na iniciativa particular.

Tendo em conta o art. 52º/1 da CRP, os particulares têm o direito à apresentação, individual ou coletiva, perante quaisquer autoridades, de petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral. Tanto para o Professor Marcelo Rebelo de Sousa como para o Professor Salgado Matos, 2007, Essa garantia ultrapassa em muito, mas abrange integralmente, a atribuição aos particulares do direito de solicitar a órgãos da Administração Pública a apreciação de atos ou omissões administrativos.

Em conformidade, o artigo 158º/1 CPA determina que a revogação, a substituição, a modificação e a declaração de nulidade ou inexistência dos atos administrativos podem ser solicitadas pelos particulares à Administração Pública, mediante a instauração de procedimentos de controlo. Tendo em conta a superação legal do modelo de tratamento da generalidade das omissões administrativas como atos tácitos, esta disposição, bem como outras do regime legal dos procedimentos de controlo, têm de ser aplicadas atualisticamente no sentido de permitirem a utilização dos procedimentos de controlo para se obter a emissão de atos administrativos que tenham sido omitidos, nas situações anteriormente consideradas como de ato tácito (Sousa & Matos, 2007).

Na perspetiva do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, 1999, As garantias dos administrados constituem direitos subjetivos que visam proteger um bem consistente na prevenção ou sanção da violação de direitos e de interesses legalmente protegidos desses administrados, provocada por ação ou omissão da Administração Pública. As garantias dos particulares podem ser integradas, a par das garantias da legalidade objetiva, no género garantias incidentes sobre a atividade da Administração Pública ou, noutros termos, sobre o exercício da função administrativa do Estado-coletividade. É importante referir que esta definição abarca as garantias preventivas e as reparadoras, conforme o traço fundamental do seu objeto primeiro é evitar ou sancionar atos de administração lesivos de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Importa referir que a classificação entre garantias peritórias e impugnatórias, que iremos abordar mais adiante, não se sobrepõem por inteiro à que distingue entre garantias preventivas e reparadoras, já que os critérios diferenciadores, pelo que pode haver garantias repressivas peritórias, como o direito de queixa.

As garantias de que se ocupa a parte geral do Direito Administrativo, sob a denominação de “garantias dos particulares”, podem ser definidas, pelo Professor Freitas do Amaral, 2016, como os meios criados pela ordem jurídica com a finalidade de evitar ou sancionar as violações do direito objetivo, as ofensas dos direitos subjetivos ou dos interesses legítimos dos particulares, ou o demérito da ação administrativa, por parte da Administração Pública.
Para o Professor João Caupers, 1996, as garantias são meios jurídicos de defesa dos particulares contra a Administração Pública.

Encruzam-se aqui três classificações de garantias:

  • Preventivas ou reparadoras;
  • De direito objetivo ou dos particulares;
  • De legalidade ou de mérito.


As garantias são preventivas ou reparadoras, conforme se destinam a evitar violações por parte da Administração Pública ou a repará-las, eliminando atos ilegais, aplicando sanções ou impondo indemnizações ou outras condutas que sejam devidas.

São do direito objetivo ou dos particulares, consoante tenham por objetivo primordial defender o ordenamento objetivo contra atos ilegais da Administração, ou defender os direitos subjetivos ou os interesses legítimos dos particulares contra as atuações da Administração Pública que os violem ou prejudiquem.

São de legalidade ou de mérito, conforme visem prevenir ou reparar ofensas ao bloco de legalidade em vigor ou aos critérios e regras de boa administração que hajam de ser adotados.

No entanto, as garantias dos particulares, por sua vez, desdobram-se em garantias politicas, administrativas (ou graciosas[1]para o professor Joao Caupers1999) e contenciosas, consoante os órgãos a quem seja confiada a efetivação das garantias seja um órgão político do Estado, da Administração ou um tribunal.
Concluindo,  as garantias administrativas são as garantias que se efetivam através da atuação e decisão de órgãos da Administração pública, aproveitando as próprias estruturas administrativas e os controlos de mérito e de legalidade nelas utilizados. Para o Professor Marcelo Rebelo de Sousa as garantias administrativas são aquelas que se efetivam de modo a suscitar o desempenho da função administrativa do Estado-coletividade.

A ideia fundamental é a institucionalização, dentro da própria Administração, de mecanismos de controlo da sua atividade, os quais são criados por lei para assegurar o respeito da legalidade e a observância do dever de boa administração, mas que é possível e vantajoso por a funcionar também para assegurar o respeito pelos direitos subjetivos ou os interesses legítimos dos particulares.

A ideia central é: existindo certos controlos criados por lei para defesa da legalidade e da boa administração, a lei permite colocar esses controlos simultaneamente ao serviço do respeito pelos direitos ou interesses legítimos dos particulares.

Tanto para o Professor Freitas do Amaral, como para o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, estas são bastante mais importantes e eficazes na proteção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares do que as garantias políticas. Primeiro, porque os órgãos administrativos atuam por via de regra desprovidos de motivações políticas, apenas devendo obediência à lei e respeito aos direitos subjetivos ou interesses legítimos dos particulares. Depois, porque ao atuar assim, a Administração Pública não provoca grandes repercussões nacionais. Ainda assim, estas garantias não são inteiramente satisfatórias: por um lado porque os órgãos por vezes também se movem por motivações políticas; por outro, porque muitas vezes os órgãos da Administração Pública se guiam mais por critérios de eficiência na prossecução do interesse público do que pelo desejo rigoroso e escrupuloso de respeitar a legalidade e os direitos subjetivos ou os interesses legítimos dos particulares.

Espécies:
Importa distinguir entre aquelas que funcionam como garantias da legalidade e as que funcionam como garantias de mérito, para o Professor Freitas do Amaral e para o Professor Marcelo Rebelo de Sousa. No entanto, para o Professor João Caupers, também existem garantias mistas; por outro lado, temos de diferenciar entre as garantias de tipo petitório e as de tipo impugnatório. As primeiras são as que têm por base um pedido, que não pressupõem a prática de um ato administrativo e as segundas as que têm por base uma impugnação, ou seja, visam questionar um ato administrativo já questionado.
     Para além destas garantias referidas, temos ainda o direito de queixa ao Provedor de Justiça, na qual nos iremos focar.

A queixa do Provedor de Justiça:

O provedor de justiça tem origem no ombudsman sueco, um magistrado escolhido pelo parlamento para ouvir as razões de queixa do povo contra o poder. A figura generalizou-se na europa, graças ao empenho do Conselho da Europa, tendo surgido, entre outros, o parliament commissionary (Reino Unido), o médiateur (França), o diffensore civico (Itália) e o defensor del Pueblo (Espanha).

Já em Portugal, a instituição começou a ser falada no congresso democrático de Aveiro (1970) e no Congresso dos Advogados (1972). O Provedor de Justiça, contudo, somente veio a ser criado após 25 de Abril de 1974, através do decreto-lei nº 212/75.

Para além disto, também no Tratado da União Europeia (art. 138º - E) se prevê a figura do Provedor de Justiça europeu, a designar pelo Parlamento Europeu, com poderes para receber queixas apresentadas por qualquer cidadão da União ou qualquer pessoa singular ou coletiva com residência ou sede estatuária num estado membro.

Esta figura tem merecido uma atenção especial dos setores sociais variados, que se sugere a criação de um Provedor para a Comunicação Social, substituindo a Alta Autoridade para a Comunicação Social, com competência para a matéria de comunicação social pública. Esta ideia não teria, porém, acolhimento algum na revisão constitucional de 1997.

A ideia fundamental desta figura é: existem garantias administrativas através das quais os particulares apelam para as próprias autoridades administrativas, no sentido de ver satisfeitas as suas reclamações ou recursos, mas as autoridades administrativas, por vezes mais interessadas na “sua” visão de legalidade ou do interesse público do que no respeito dos direitos ou interesses legítimos dos particulares, em muitos casos não lhes dão razão; há também garantias contenciosas, através das quais os particulares podem ir a tribunal obter a anulação de decisões ilegais da Administração, ou obter a reparação dos prejuízos que a Administração lhes tenha causado. No entanto existem situações que não estão contempladas e, nas quais não existe, através dos meios clássicos de garantia, uma defesa suficiente dos particulares porque não se pode recorrer aos tribunais e, podendo apenas recorrer-se às autoridades administrativas, estas muitas vezes não atendem a reclamações e recursos dos particulares.

É portanto necessário conceber uma alta autoridade, independente, que, com espírito de justiça, estude, nos casos concretos que lhe sejam apresentados pelos particulares, as queixas que eles tiverem para lhe formular. Vem previsto no art. 23º CRP e, também, no estatuto do Provedor de Justiça, que consta da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, alterada pela Lei nº 30/96, de 14 de Agosto.

O Provedor de Justiça pode ocupar-se de quaisquer questões que sejam levadas perante ele relativamente às atividades dos poderes públicos, por ação ou omissão, podendo ele ocupar-se tanto de questões de legalidade como de mérito, embora seja sobretudo na zona do mérito que a sua atividade se pode revelar mais útil, embora na prática portuguesa o Provedor funcione sobretudo como órgão de controlo da legalidade administrativa, de caráter gratuito e mais rápido que os tribunais administrativos.

O Provedor de Justiça não tem poder decisório, apenas tem poderes persuasórios: estuda cada caso concreto e, se entender que o particular tem razão na sua queixa, dirige recomendações às autoridades competentes; mas o Provedor só pode formular recomendações jurídicas “necessárias para prevenir ou reparar injustiças”, além de, no uso da teoria dos poderes implícitos, poder dialogar com as autoridades administrativas postas em causa e, até certo ponto, pressioná-las para que cumpram a lei ou corrijam os seus erros ou omissões.

Tratando-se de uma autoridade independente e inamovível, de uma alta autoridade, colocada nos mais elevados escalões da hierarquia do Estado, eleita pelo Parlamento e em voto secreto, essa alta autoridade goza de um prestígio e de uma independência que fazem com que, na grande maioria das vezes, a Administração acabe por aceitar e seguir as suas recomendações.

Há, no entanto, casos em que as recomendações não são seguidas; nessa hipótese, o Provedor tem o direito quer de dar conta desses casos traves de notas oficiosas ou de conferências de imprensa, denunciando as autoridades administrativas que se recusam a seguir as suas recomendações, quer ainda de tornar pública a existência desses casos através do seu relatório anual, que é objeto de publicação e enviado para a AR, perante quem o Provedor responde (Amaral, 2016).

Podemos, concluir que, assim, a figura do Provedor de justiça possui:

      - Um âmbito subjetivo de atuação:

  •     Os poderes públicos à art. 23º/1 CRP; a Administração Pública (sentido orgânico), o setor empresarial do Estado e ainda as entidades de natureza jurídico-privada que exerção poderes especiais de domínio suscetíveis de contender com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (art. 2º da lei 9/91).

     - Um âmbito material de atuação --> ações ou omissões (art. 23º/1 CRP).

     - Uma característica essencial da intervenção --> a falta de poder decisório – o provedor de justiça não pode revogar nem modificar atos administrativos (art. 23º/1 CRP; 22º/1 da lei 9/91; a “arma” da persuasão).

     - Instrumentos de atuação --> as inspeções, as recomendações, o relatório anual e o recurso aos meios de comunicação social (art. 21º/1; 20º/1/a; 38º e 23º da lei nº 9/91).

     - Princípios de atuação --> o informalismo (art. 28º/1 da lei nº 9/91 – e o contraditório – art. 34º da lei nº 9/91.)

A natureza jurídica do Provedor de Justiça é a de órgão da administração central do Estado, com caráter de órgão independente.


Bibliografia
Caupers, J. (1996) Direito Administrativo I. Lisboa: Editorial Notícias.
Sousa, M. R. (1999) Lições de Direito Administrativo I. Lisboa: Lex.
Sousa, M. R. & Matos, A. S. (2007) Direito Administrativo Geral – tomo III. Lisboa: D. Quixote.
Amaral, D. F. (2016) Curso de Direito Administrativo II. Lisboa: Edições Almedina. 


Trabalho realizado por: Carolina Vieira, 59120


[1] Na perspetiva do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, 1999, esta denominação já não faz qualquer sentido, à luz do Direito português vigente, na medida em que esta qualificação é “meramente histórica” já que “inculcaria que não se trata de verdadeiros direitos subjetivos”.

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