Art 163 nº5 do CPA “O Aproveitamento do ato administrativo anulável”
Art 163 nº5 do CPA “O Aproveitamento do ato administrativo anulável”
Até à publicação do novo Código
do Procedimento Administrativo (doravante designado apenas por CPA). o
príncipio do aproveitamento do ato administrativo não tinha consagração legal, visto
que nenhuma norma expressa o consagrava de
forma genérica. No entanto, a jurisprudência do Supremo do Tribunal
Administrativo tinha vindo a sufragar, de forma sustentada, a aplicabilidade desse
príncipio.
Importa referir que este
príncipio já tem sido implementado noutros ordenamentos jurídicos. Por exemplo,
no direito francês, direito administrativo que, como sabemos, tem influenciado
muito o legislador português, tanto positivamente, como na transposição dos
seus vícios e traumas de infância - como
afirma o Professor Vasco Pereira da Silva -, este princípio tem sido consagrado
e desenvolvido pela doutrina e jurisprudência. Tal aprofundamento aconteceu,
sobretudo, no contexto do estudo dos vícios de forma do procedimento
administrativo, nomeadamente na distinção entre formalidades substanciais e não
substanciais. Neste sentido, no Direito francês, a violação de uma formalidade,
constitui, em regra, causa para a
interposição de um “recours pour excès du pouvoir”, permitindo ao juiz
administrativo anular o ato. Contudo, tal violação não produzirá efeitos
anulatórios se formalidades desrespeitadas não tiverem influência no conteúdo
da decisão, sendo como tal enquadradas como formalidades não substanciais.
Também no Direito Italiano este
príncipio adquiriu consagração legal, através da Lei nº241 de 7 de Agosto de
1990, nomeadamente através do seu art
21. O nº1 desta norma comina com a
anulabilidade os atos administrativos praticados em violação de lei, em vício
de excesso de poder ou por incompetência. Porém, o nº2 do art 21 desse diploma,
que concretiza efetivamente o príncipio do aproveitamento do ato
administrativo, introduz a ideia de ineficácia do efeito anulatório nos caos de
violação de normas procedimentais ou formais, exigindo-se que se trate de um aco
administrativo vinculado e não um ato administrativo com margem de
discricionariedade.
Voltando ao enquadramento
jurídico nacional, será interessante começar por questionar se o facto de não
se anular atos administrativos que padeçam de vícios que justifiquem essa
anulação (por aplicação dos nºs 1 e 5 do art 163 do CPA, o legislador não estará, simultaneamente, a concretizar alguns
príncipios administrativos de relevânciae a violar outros príncipios da atuação
administrativa, igualmente importantes, destacando-se o princípio da legalidade
na vertente negativa. Além do mais, esta posição poderá potencializar “um risco
de ter efeitos contrapedagógicos relativamente ao cumprimentos de normas legais
pela administração” como retiramos dos comentários ao novo código do
procedimento administrativo do Professor Mário Aroso de Almeida.
A nosso ver, a resposta a estas
questões é negativa, por vários motivos.
Em primeiro lugar, este regime
consiste somente numa concretização legal de uma prática jurisprudencial
alargada e consolidada no sistema português que remonta a um período muito
anterior a 2015, tornando-se num verdadeiro “costume jurisprudencial”. Vário
acordãos de tribunais administrativos vão nesse sentindo, destracando-se,
apenas, o Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo (STA), de 07/02/2002, Proc. n.º 046611. Concluímos, portanto,
que a consagração legal ocorreu apenas em 2015, mas desde 2002 a jurisprudência
do STA já apontava para esse este princípio.
Em segundo lugar, o nº 5 do art
163 do CPA desdobra-se em três alíneas, que não são nada mais do que os casos
específicos e os pressupostos concretos para a aplicação deste regime de
inficácia dos efeitos anulatórios de atos administrativos anuláveis. Quer isto
dizer que, sendo só permitida a aplicação do regime do art do CPA em determinados casos taxativamente previstos,
(correspondendo a certos critérios), está-se a limitar uma aplicação
generalizada deste regime, provocando um efeito patológico e nocivo no direito
administrativo português, semelhante aos já conhecidos “traumas de infância” do
contecioso Françês (utilizando a terminologia do Professor Vasco Pereira da
Silva), de uma administração poderosa, completamente desvinculada a blocos de
legalidade ou a príncipios constitucionais de atuação administrativa.
É de salientar, a título de
exemplo, os casos em que o regime do nº5 do artº 163 do CPA é aplicável. Por
exemplo na sua alínea a), prevê-se o aproveitamento do ato, ao não o cominar
com a anulabilidade apesar deste ser inválido, quando o conteúdo do ato não
possa ser outro, nos casos de conteúdo devido, legalmente vinculado, ou de
descricionariedade zero, e quando a apreciação do caso em concreto permita
identificar uma única solução como legalmente possível. Estão aqui
estabelecidos vários critérios a prencher para a aplicação deste príncipio do
aproveitamentto do ato, não permitindo uma aplicação arbitral aos atos
administrativos considerados anuláveis.
Além desta norma, o art 163 nº5
alínea b) do CPA só desvaloriza os atos administrativos anuláveis por falta de
exigências formais de procedimento, quando o fim visado pela exigência
procedimental for alcançado por outras vias, ou seja, temos aqui uma clara
restrição de aplicação deste príncipio a situações bastante concretas. A
desvalorização do vício de procedimento, ou de forma, só é realizada se o fim
que ela visava prencher for alcançado, o que salvaguarda a lesão de direitos ou
interesses legalmente protegidos pelo preceito formal ou procedimental.
Concluímos, portanto, que existem
limites bastante definidos para a aplicação deste regime, sendo a concretização
do príncipio do aproveitamnte do ato administrativo limitada por determinados pressupostos.
Em terceiro lugar, não podemos
deixar de referir que não estamos perante uma convalidação do ato, do que a
ilegalidade e invalidade do mesmo matém-se, implicando, por isso, que encontra-se
ressalvada a possibilidade de indemnização dos lesados por danos não
patrimoniais afetos a direitos ou interesses legalmente protegidos, ou por
dados provenientes pela não anulação se houvesse um interesse legítimo
relevante para a anulação..
Outra das vertentes que achamos
interessante discutir, prende-se com a “ratio”
e a base ontológica deste preceito. No plano nacional, a introdução deste
príncipio no novo CPA resultou da necessidade premente da simplificação dos
procedimentos administrativos e da concretização de três príncipios da
administração pública (de acordo com parte da doutrina onde se destaca o
Professor Vieira de Andrade). Estes príncipios orientadores da atuação
administrativa são o princípio do economicidade dos atos públicos (que se
traduzem numa manifestação de eficiência indispensável à realização do
interesse público), o próprio princípio do interesse público e o princípio da
boa administração, o qual tem como objetivo tornar os procedimentos mais
céleres e a administração menos desbucratizada.
É este último príncipio que a
nossa ver consiste na principal ratio
deste artigo, tendo em conta a crescente importância que o príncipio da boa
administração adquiriu com o novo CPA. As soluções apresentadas pelo art 163 nº5 do CPA pretendem essencialmente a economia de procedimento, evitando anulações
seguidas da prática de atos com o mesmo conteúdo.
Outra questão que, intensamente tem
sido discutida pela doutrina e merecido tratamento jurisprudencial diferenciado
diz respeito ao âmbito de aplicação do regime legal estabelecido. A dúvida
criada prende-se com a possibilidade, ou não, de se aplicar as três alíneas do nº5
do art163 do CPA a atos administrativos discricionários (atos que gozam de
alguma forma de descricionariedade) ou se só é possível aplicar este regime a
atos administrativos vinculados.
Analisando jurisprudência
nacional, não conseguimos chegar a uma verdadeira conclusão, dado que existem acordãos
que afirmam ser o regime do art 163 nº5 do CPA aplicável apenas a atos vinculados, e
em sentido oposto, existem acordãos que admitem um âmbito de aplicação mais
abragente, sendo aplicável não só a atos vinculados mas também a atos que gozam
de um certo grau de descricionariedade. Temos como exemplo da aplicação do
regime do artº 163º nº5 alínea a) do CPA, o acordão do STA, de 13/04/2004, no Proc.
n.º 040245, no sentido de ““ que o acto
impugnado decorre do exercício de um poder de estrita vinculação, atribuído por
normas de competência”(…)“a decisão
administrativa impugnada não tem alternativa juridicamente válida e que,
portanto, está adquirido que, fosse qual fosse a intervenção dos interessados
no procedimento administrativo, a decisão final não podia ter outro sentido.
Neste quadro, por economia dos actos públicos, justifica-se a não anulação do
acto recorrido”.
Noutro sentido o Acórdão do STA,
de 11/10/2007, no Proc. n.º 01521/02, veio permitir a aplicação do regime do artº
165º do CPA em atos administrativos não só vinculados mas também
descricionários, retirando-se esta conclusão do seguinte excerto: “a mais frequente fundamentação é, contudo, a
de aceitar a irrelevância de vícios procedimentais sempre que decisão tomada
seja a única possível, mesmo perante actos praticados no exercício do poder
discricionário, como se pode ver, no acórdão de 7-2-2002, proferido no recurso
46.661”
Concluímos, dada a divergência da
jurisprudência ao longo dos anos, que está claramente em causa uma irrelevância
da separação entre atos administrativos descricionários e atos administrativos
vinculativos, sendo o regime do art 163º nº5 aplicável a estas duas tipologias
de atos.
Em termos de tratamento doutrinal
da questão, defendemos a posição preconizada pelo Professor Rui Machete,
segundo o qual, o foco central de aplicação do regime é a “neutralidade ou não essencialidade do vício relativamente ao conteúdo
da decisão”, tese que vai ao encontro da irrelevância da sepração das
tipologias de ato, tendo como justificação aparente não ser esse o critério
essencial de aplicação do regime, mas sim um juízo de essencialidade no que diz
respeito ao sentido e conteúdo da decisão, isto é, se através de um juízo de
prognose póstuma for possível perceber se o vício não interferiu de alguma
maneira na decisão do procedimento.
Por fim, temos de analisar o
entendimento que o legislador tomou do procedimento administrativo,constante do art 163 nº 5 do CPA. É inquestionável que
o tratamento conceptualdado ao procedimento, alterou-se completamente no
período posterior a 2015, muito por causa da influência do artigo em questão.
Do ponto de vista deste artigo, o procedimento tem uma função funcional de
menor relevância, estando subalternizado ao ato. Para o legislador português,
não importa se no momento procedimental existiu um desrespeito ao próprio
procedimento, desde que se chegue a uma decisão materialmente positiva, e,
neste caso, não é preciso anular o ato com base nos vícios do procedimento.
O procedimento começa a perder
importância e a degradar-se no quadro de atuações administrativos, tornando-se
somente numa forma de manifestação de vontade dos órgãos da Administração
Pública, uma realidade necessária, mas não valorada como tal, para a criação de
um ato, de um contrato ou de um regulamento.
Apesar da maioria de doutrina
concordar com este aproveitamento do ato administrativo anulável, estamos longe
de encontrar um consenso generalizado. Por exemplo, os professores Vasco
Pereira da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa discordam desta leitura, deste preceito
legal, pois segundo estes, coloca-se em causa a importância do procedimento ao
se considerar que as invalidades das decisões administrativas podem ser
ultrapassadas. Esta parte da doutrina defende uma visão do procedimento com uma
certa autonomia, com uma função e valor determinantes no quadro da atuação
administrativa. Entendem que se o
procedimento tem valor, então tem de ser valorado como tal, considerando que na
era moderna, num estado de direito democrático, onde se consagra e se atribui
uma super relevância ao direito de participação dos particulares na decisão
administrativa (sendo que essa
participação é feita nomeadamente em fases procedimentais), então o respeito
pelo procedimento deve ter um valor reforçado. Havendo oportunidades para o
efeito, ao longo do procedimento, como é o caso da fase procedimental da
audiência dos interessados, não faz sentido não atribuir valor ao procedimento
administrativo.
No entanto, ainda que esta
posição tenha toda a pertinência, entendemos que, se o procedimento é meramente
instrumental, sendo relevante, não se deve sobrepor ao interesse material que
através dele se visa satisfazer.
João Batista nº58134
Bibliografia
FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo
Volume II
FAUSTO QUADROS, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, RUI CHANCERELLE
DE MANCHETE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE. MARIA DA GLÓRIA DIAS GARCIA, MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, ANTÓNIO POLÍBIO HENRQUES, JOSÉ MIGUEL SARDINHA, “Comentários
â revisão do Código do Procedimento Administrativo”
REBELO DE SOUSA, Marcelo, “Lições de Direito Administrativo”
OTERO, Paulo,“Legalidade e Administração Pública”MACHETE, Rui, "A Relevância Processual dos Vícios Procedimentais no novo paradigma da Justiça Administrativa Portuguesa, Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Professor Doutor António de Sousa Franco"
PEREIRA DA SILVA, Vasco, aulas teóricas
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