Alegações e Contra-Alegações do Ministério da Administração Interna


Aos Meritíssimos Juízes,

No seguimento do processo de impugnação contenciosa do concurso extraordinário para o recrutamento de 5 (cinco) novos guardas florestais, aberto conjuntamente pelos Ministérios da Administração Interna e Ambiente, nos termos do Aviso nº. 3055 / 2019 (publicado em Diário da República, 2ª série, nº. 40, de 26 de Fevereiro de 2019), e tendo em conta os motivos expostos pelos seus autores a Tribunal, o Ministério da Administração Interna apresenta as suas próprias alegações e contra-alegações com os seguintes argumentos e conclusões.

I. Face à exclusão do Sr. João Sorridente do procedimento por inaptidão médica: Considerou-se que a falta de 6 dentes (condição eliminatória nos termos da alínea c) do número 12. do anexo II do Aviso de abertura de concurso) poderia causar dificuldades de comunicação e relacionamento interpessoal, sendo, para além disso, um indicador de [fraca] saúde e higiene – a dentição danificada demonstra um estado débil e despreocupação com a saúde oral, reflexo da forma como a pessoa cuida de si mesma. O efeito que a falta de dentes comporta na dicção é, contudo, o que causa mais alarme – em caso de perigo, iminente ou não, cabe ao guarda-florestal transmitir informação ao comando, dirigir meios de combate, e avisar as populações com a maior clareza possível. A [reconhecida] experiência do Sr. João Sorridente no campo da proteção ambiental, nomeadamente o seu trabalho com baleias ao serviço da Greenpeace, não é, por si só, indicador de fortes aptidões para desempenhar a profissão de guarda florestal, e não deve prevalecer sobre um critério eliminatório constante no regulamento de abertura (com o qual, diga-se, o autor concordou, ainda que tacitamente, ao ingressar voluntariamente no procedimento sob estas mesmas condições). Demonstra, antes, uma louvável predisposição natural de preocupação para com o meio ambiente, que poderia, caso último, valer como critério de distinção ou desempate sobre a nota final dada pelo juri, caso o autor tivesse sido aprovado.
Posto isto, não seria honesto desvalorizar a relevância da condição e apresentação física e estética de um funcionário do Estado - como refere o capítulo dedicado às funções do guarda florestal, nos estatutos da carreira de Guarda Florestal, este desempenhará funções de contacto com o público ou outras entidades fora e dentro do contexto da floresta, nomeadamente na sua actuação como órgão de polícia criminal (artigo 38º). Também será importante olhar ao guarda florestal através do prisma da entidade em que se integra. O guarda florestal pertence à Guarda Nacional Repúblicana e é, para todos os efeitos, um militar, e a tradição militar exige um aprumo especial, um respeito pela figura e apresentação física que existe para lá do mero funcionalismo.

II. Quanto á inclusão de matéria de cariz jurídico na prova de conhecimentos: A lei estabelece como método de selecção obrigatório para concursos de acesso a funções públicas a prova de conhecimentos (artigo 36º 1/A da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), cujo objetivo será avaliar as competências técnicas necessárias ao exercício da função. A Administração age com poder de discricionariedade no momento antecedente ao da realização da prova pelos candidatos, como é o caso da escolha das matérias sobre as quais devem versar as perguntas que integram a prova escrita, bem como a elaboração das concretas perguntas e das concretas soluções possíveis, pelo que, dentro dessa discricionariedade e dos limites que lhe são naturalmente impostos, considerou justificável, como parte integrante da prova, o dito exercício de comparação doutrinária. Afinal, a matéria sobre a qual incidia era de Direito do Ambiente e, como consta do Estatuto da Carreira de Guarda Florestal, é competência genérica dos guardas florestais, segundo o artigo 37º, número 2, alínea a) 1ª parte, ‘’fiscalizar o cumprimento da legislação florestal, da caça e da pesca...’’ – neste âmbito, considerou-se relevante o mencionado conhecimento jurídico. Além do mais, a última alteração aos estatutos do Guarda Florestal, motivada pelos trágicos incêndios de 2017, refere, logo no seu preâmbulo, que a comissão técnica independente responsável por apurar os factos e circunstâncias desses mesmos incêndios, apontou falhas estruturais e operacionais no modelo de prevenção e combate aos incêndios florestais. Assim, veio introduzir-se uma reforma no sistema que, entre outros, ‘’acenta no pilar do princípio da profissionalização e capacitação do sistema, que exige investimento e valorização do conhecimento científico e qualificação técnica dos profissionais’’. Considerou-se que essa valorização do conhecimento cientifico e qualificação técnica dos profissionais passa, também, por promover o conhecimento jurídico em matéria de direito ambiental.
Resta referir que a prova em causa, na qual o autor obteve 0 (zero) valores, não compreendia somente perguntas de comparação doutrinária, nem estas valiam 9,5 valores, para que este pudesse alegar seriamente que foi a inclusão das ditas perguntas que causou a sua exclusão do procedimento. De facto, não obteve nem 8 nem 7 valores, sendo uma possível e eventual diferença entre estes e uma nota positiva as perguntas em causa. Obteve 0. Não foram, com certeza, as perguntas de comparação doutrinária que levaram ao acto decisório de exclusão do Sr. Manuel Sabichão, mas a sua completa falta de aptidões académicas.

III. Quanto aos princípios pelos quais se pauta a função administrativa: Poderia levantar-se a questão de as condições exigidas no regulamento serem excessivamente limitadoras e não estarem de acordo com os princípios da prossecução do interesse público, da legalidade e da proporcionalidade.
O princípio da prossecução do interesse público encarrega a Administração Pública com a obrigação de  prosseguir o interesse da população, prosseguir o bem comum. É uma noção de conteúdo variável e aquilo que é o interesse da população pode mudar em função do momento e das circunstâncias de cada caso. Aqui, o Aviso e as condições nele contidas vão ao encontro daquilo que é o bem geral, uma vez que é claramente do interesse da população que existam mais guardas florestais e que estes sejam o mais qualificados e competentes possível. Assim, uma vez que a falta de dentes poderá constituir o entrave à comunicação e ao relacionamento interpessoal, eventualmente prejudiciais numa situação de perigo, e demonstrando também um descuido com a saúde, parecem-nos ser do interesse da comunidade, corretas e adequadas as ditas exigências.

Dentro do princípio da legalidade encontramos a vertente da precedência de lei, que nos indica que nenhum acto de categoria inferior à lei pode contrariar o bloco de legalidade. Neste caso, poderia equacionar-se uma violação de princípios fundamentais como o principio da igualdade ou da dignidade da pessoa humana, o que, por sua vez, caso existisse, resultaria numa violação da princípio da legalidade, também. No entanto, não há violação de nenhum destes princípios, uma vez que: o principio da igualdade assenta na ideia de que deve ser tratado de forma diferente aquilo que é diferente e de forma igual aquilo que é igual. Em concreto, não estamos perante um caso onde o Sr. João Sorridente se encontra impedido enquanto uma pessoa com a mesma dentição que ele possa. De facto, trata-se igual o que é igual e diferente aquilo que é diferente. Também não nos parece que se esteja a afrontar a dignidade da pessoa humana, uma vez que a exclusão do Sr. João Sorridente não se funda numa questão de mera valoração estética (embora para tal possa contribuir) e discriminação, mas sim de interesse público, o imperativo de recrutar o indivíduo mais adequado e que virá a realizar a sua função com o melhor aproveitamento possível. Também não nos parece que os conteúdos do regulamento estejam feridos por falta de proporcionalidade.

IV. Sobre o dever de fundamentação do acto com efeitos externos, nomeadamente o acto decisório que exclui os interessados do processo: Segundo o artigo 152º 1/A do Código de Procedimento Administrativo, devem ser fundamentados todos os actos que “Neguem, extingam, restrinjam ou afetem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos...”. Como o acto que causa a exclusão dos candidatos em causa precede qualquer deliberação de juri ou lista de classificação final, o caso em concreto não se encontra abrangido pelo número 2 do artigo 152º, havendo, por isso, o dever de fundamentar.

Dever este que foi cumprido uma vez que no art. 153º/3 é referida a possibilidade de, em assuntos da mesma natureza, se poder utilizar os fundamentos de decisões anteriores; neste caso fundamenta-se a decisão na resolução do conselho de ministros nº 11 – A / 2018, que por sua vez é a fundamentação do aviso nos termos do qual se abriu o concurso extraordinário.

No entanto, a fundamentação prestada não cumpre todos os requisitos do art. 153º/1 e é, admitidamente, insuficiente. O desvalor associado é, regra geral, a anulabilidade, por mero vício de forma e tendo em conta que não estamos perante nenhuma das previsões do art. 161º do Código de Procedimento Administrativo.  Por cima, importa ainda atentar ao número 2 alínea d) desse mesmo artigo, que refere que é nulo o acto que ofenda e não cumpra um dever fundamental. Há, por isso, que saber se o dever de fundamentação é, ou não, um direito fundamental dos particulares. Através do art. 268º/3 CRP conclui-se que não, mas somente um dever da administração. Consideramos não ser caso para se aplicar um desvalor tão acentuado quanto o da nulidade. Ainda, parte da doutrina actual argumenta que só existiria violação de um direito fundamental se não houvesse qualquer fundamentação, havendo, no caso concreto, alguma fundamentação, apenas não cumprindo todos os requisitos exigidos pelo art. 153º. Há uma fundamentação parcial pelo que não cabe a nulidade.

Deste modo, o acto seria anulável nos termos do art 163º/1. Porém, este artigo ressalva no seu nº5 que há casos em que um acto, ainda que inquinado por um ou mais vícios, poderá escapar à anulação. É o caso do acto que, não existindo os vícios, viria a ser produzido de igual forma e com os mesmos resultados. O falta de fundamentação é um vício formal e à luz do principio do aproveitamento do acto, comporta uma mera irregularidade. Baseia-se no princípio da economia dos actos públicos, que afere que se deve evitar tomar decisões que se manifestem como desnecessárias no sentido da boa administração, de forma a tornar a actividade da administração mais célere. Não fará sentido estar a invocar anulabilidade para, dias depois, a administração actuar de forma exactamente igual.

V. Em face do supra exposto, o Ministério da Administração Interna solicita ao Tribunal que decida pela improcedência do pedido de impugnação, à luz do princípio do aproveitamento do acto e por (como se tentou comprovar), não ter ocorrido qualquer outra irregularidade ou ilegalidade ao longo do procedimento que espelhe as alegações feitas pelos autores da contenda.

Lisboa, 17/05/2019
CAROLINA NABAIS
DIOGO LOPES
LAURA SILVA
MARTA BIU
RICARDO SILVA
SOFIA TAVARES
TOMÉ BARCELOS

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