Alegações dos advogados do Ministério do Ambiente

Meritíssimos Juízes,

Face ao processo de impugnação contenciosa do concurso extraordinário para o recrutamento de cinco guardas florestais, aberto conjuntamente pelo Ministério do Ambiente e pelo Ministério da Administração Interna, nos termos do Aviso 3055 / 2019 (publicado em Diário da República, 2ª série, nº. 40, de 26 de fevereiro de 2019), enquanto advogados do Ministério do Ambiente, apresentamos as seguintes alegações:

1.          DIREITO DO AMBIENTE - O Direito do Ambiente é um ramo do direito, constituindo um conjunto de princípios jurídicos e de normas jurídicas que pretendem a proteção jurídica da qualidade do meio ambiente. Da Lei nº19/2014, relativamente as bases da política de ambiente, e do artigo 5º podemos retirar a ideia de que o Direito do Ambiente consiste no direito de defesa contra qualquer agressão à esfera constitucional e internacionalmente protegida de cada cidadão, bem como o poder de exigir de entidades públicas e privadas o cumprimento dos deveres e das obrigações, em matéria ambiental, a que se encontram vinculadas nos termos da lei e do direito.
2.            Existem 4 princípios basilares do Direito do Ambiente e que são importantes ter em conta: o princípio da prevenção (Art.66º da Constituição da República Portuguesa e no art.3º a) da Lei de Bases do Ambiente) visa evitar o risco ambiental. A sua aplicação faz-se nos casos em que os impactos ambientais já são conhecidos. Neste caso, este princípio foi aplicado com a criação de mais vagas na carreira de guarda florestal, e tendo em conta que há um problema associado aos incêndios, que têm ocorrido nos últimos anos, é necessário prevenir danos irreversíveis. O segundo princípio é o da precaução (presente no Tratado de Lisboa Art.191º nº2) – ligado aos conceitos de afastamento do perigo e segurança das gerações futuras, bem como ao conceito de sustentabilidade ambiental das atividades humanas. Este princípio atua através de ações como limpeza de matas, disponibilização de mais meios de atuação e sensibilização da população por forma a travar consequências danosas. Outro princípio é o da correção na fonte, que assenta também numa lógica preventiva, e pretende proferir uma solução de correção na fonte, ou seja, relacionada neste caso com o número de guarda florestais, que é preciso ser aumentado. O princípio passa também por solução no fim de linha, isto porque permite eliminar/minimizar bastante os impactos gerados, não só no ambiente, mas também na vida das pessoas, evitando tragédias como as que tem ocorrido, o que demonstra que é necessário que haja guardas florestais o mais adequados possíveis às funções, para que possam defender não só o ambiente, como também as pessoas. Por último, é importante realçar o princípio do Desenvolvimento Sustentável (Art.66º CRP), que pretende satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, o que significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e económico e de realização humana e cultural, fazendo ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais, ou seja, conciliar o desenvolvimento económico com a sustentabilidade ambiental. Como tal, é necessário proteger os nossos recursos e o meio ambiente, garantindo que é feita uma correta aplicação dos princípios supramencionados, por forma a evitar mais estragos provocados por incêndios, e impedir que mais pessoas sofram com estas tragédias.
3.          ATO ADMINISTRATIVO: O ato administrativo em causa foi praticado pelo Secretário de Estado da Administração Interna e pelo Secretário de Estado do Ambiente (Art. 148º CPA). Existe, desde logo, um ato administrativo que corresponde à abertura do procedimento concursal.
4.   Nos termos do artigo 148º do Código do Procedimento Administrativo, consideram-se atos administrativos as decisões administrativas que visam produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual. O ato administrativo, conforme determina a disposição supramencionada, tem de ter um caráter externo, o que significa que deve verificar-se a produção de efeitos noutros sujeitos jurídicos diferentes da pessoa coletiva que praticou o ato. Neste caso, o ato foi praticado pelo Secretário de Estado do Ambiente e da Administração Interna (art.151º nº1 a) CPA), e produz efeitos nos guardas florestais que se vão candidatar e que são, por conseguinte, os destinatários deste ato (art.151º nº1 b).
5.     Para além de externo e de versar sobre uma situação individual e concreta, o ato administrativo tem também de ser unilateral, praticado no exercício do poder administrativo, ser decisório e advir de um órgão administrativo.
6.          Parece-nos importante referir que, não obstante se tratar da abertura de um procedimento concursal, estamos perante um ato e não perante um contrato administrativo. Este último, contrariamente àquilo que se verifica em relação ao ato administrativo, implica um acordo de vontades e tem, portanto, um caráter bilateral. Como tal, o contrato administrativo, ainda que, tal como o ato, seja um modo de exercício da função administrativa, implica a existência de um acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa[1].
7.          Os artigos 155º e seguintes do CPA regulam a eficácia do ato administrativo. O ato administrativo só produz efeitos desde a data em que é praticado. Como tal, a abertura do procedimento concursal só produz efeitos a partir do momento em que o ato foi praticado pelos Secretários de Estado. Para que se considere que o ato foi praticado é necessário que estejam preenchidos os requisitos do nº2 do artigo 155º do CPA.                   
8.          O ato administrativo está subordinado ao princípio da legalidade (art. 266º/2 da CRP e no art. 3º do CPA) e a todas as suas dimensões. Na dimensão da preferência de lei, o ato administrativo não deve contrariar o direito vigente e, por conseguinte, o bloco de legalidade. No presente caso, o ato foi praticado nos termos do Aviso n.º 3055/2019, e tendo em conta que o aviso é um regulamento, segundo o art. 142º, o ato não pode derrogar o regulamento. Por outro lado, na dimensão da reserva de lei, o ato administrativo deve fundamentar-se numa norma jurídica. Deste modo, parece-nos importante aferir a competência dos Secretários de Estado para praticar este ato. Segundo o disposto no art. 3º nº16 da Lei Orgânica do Governo, o Secretário de Estado do Ambiente coadjuva o Ministro do Ambiente no exercício das suas funções, contudo não dispõe de competências próprias por força do art. 10º do mesmo diploma. Como tal, a competência para o exercício deste ato teria de ser delegada pelo Ministro do Ambiente, segundo o art. 8º nº3 e nos termos do art.10º nº1 da LOG, ao Ministro do Ambiente compete formular, conduzir, executar e avaliar as políticas do ambiente, conservação da natureza (entre outros), numa perspetiva de desenvolvimento sustentável e de coesão social e territorial, conforme dispõe o artigo 26º nº1 da LOG.
9.          PROCEDIMENTO: O procedimento administrativo, conforme afirma o Professor MARCELO REBELO DE SOUSA, é uma série de condutas dotadas de lógica interna e orientadas para a produção ou execução de uma decisão administrativa[2].
10.       O procedimento do ato administrativo está regulado nos artigos 102º e seguintes do CPA, e está subordinado a seis princípios fundamentais: o princípio do inquisitório; o princípio da celeridade; o princípio da publicidade; o princípio do caráter escrito dos atos e formalidades procedimentais; o princípio da colaboração procedimental dos particulares; e, por fim, o princípio da gratuitidade.
11.       De acordo com o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, o procedimento decisório de 1º grau, isto é, aquele que tende à prática de um ato administrativo primário, é composto por seis fases.
12.       Primeiramente, ocorre a fase inicial. Esta fase dá início ao procedimento, início este que pode ser desencadeado pela Administração ou por um particular interessado. No caso concreto, o procedimento foi iniciado pela Administração, na medida em que abriu o procedimento concursal.
13.       Seguidamente, verifica-se a fase da instrução. Nesta fase, averiguam-se os factos relevantes para a decisão final, que serão disponibilizados através da recolha de provas que se mostrem necessárias nos termos dos artigos 115º a 120º do CPA. Esta fase está diretamente relacionada com o princípio inquisitório, consagrado no 58º do CPA.
14.       De seguida, verifica-se a fase da audiência dos interessados. Esta é uma das fases mais importantes que concretiza princípios consagrados no CPA, nomeadamente o princípio da colaboração da Administração com os particulares, consagrado no artigo 11º/1 CPA, bem como o princípio da participação, que está disposto no artigo 12º do mesmo diploma. Relativamente a esta fase do procedimento do ato administrativo fala-se até de um direito fundamental com base no artigo 2º da CRP, uma vez que este princípio é referido, inclusivamente, no artigo 267º/5 da CRP.
15.       Tal como dispõe o ponto 21 do Aviso n.º 3055/2019, os candidatos têm direito de acesso às atas e aos documentos em que assentam as deliberações do júri, nos termos da lei, ou seja, foi assegurado o princípio da colaboração com os particulares, ou seja, são dadas as informações e os esclarecimentos que são necessários para clarificar as decisões tomadas.
16.       O CPA determina, todavia, exceções à necessidade de verificação desta fase. Existem, portanto, casos em que a fase da audiência dos interessados pode ser dispensada. Estes casos estão explanados no artigo 124º do CPA. No presente caso, uma vez que a necessidade de vigilância acrescida das florestas para prevenção de incêndio é uma situação de caráter urgente, nomeadamente pelo facto de nos aproximarmos de uma época em que há uma probabilidade elevada de aumento dos incêndios florestais e devido a todas as tragédias que se já se verificaram anteriormente em Portugal, concluímos que, nos termos do artigo 124º/1 a) há dispensa de audiência prévia dos interessados no procedimento deste ato administrativo. Importa ainda a este respeito atender ao artigo 191º/2 do Tratado de Lisboa que consagra o princípio da precaução. De acordo com esta disposição, é necessário garantir o afastamento do perigo e salvaguardar a sustentabilidade ambiental, pelo que se demonstra imperativo a contratação destes guardas florestais com a maior urgência possível. Não obstante, conforme determina o nº2 da disposição supramencionada, a dispensa de audiência dos interessados neste caso tem de ser acompanhada de devida fundamentação.
17.       Assim, quando seja exigida audiência dos interessados e esta não ocorra, estamos perante uma ilegalidade, um vício de forma por preterição de uma formalidade essencial. Relativamente ao tipo de vício que está em causa, existe divergência doutrinária. Esta divergência verifica-se em função do entendimento da audiência prévia dos interessados como um direito fundamental ou, por outro lado, do entendimento segundo o qual não se trata de um direito fundamental. Discute-se, portanto, se a sanção corresponderá a uma nulidade ou a uma anulabilidade.
18.       Se entendermos o direito à audiência prévia como um direito fundamental então, nos termos do artigo 161º/2 d), o vício será a nulidade. Se por outro lado, entendermos que o direito à audiência prévia não é um direito fundamental, então a sua falta produzirá mera anulabilidade, ao abrigo do disposto no artigo 163º/1. O Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL perfilha a segunda posição, ao passo que o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA entende o direito à audiência prévia um direito fundamental e, portanto, quando verificada a sua falta, gerador de nulidade.
Importa referir que a jurisprudência dominante, no que diz respeito a esta matéria, se posiciona no sentido de a falta de audiência prévia cominar na anulabilidade e não na nulidade. No Acórdão do STA datado de 26-09-2018 entende-se que a falta de audiência prévia “quando não seja legalmente dispensada, constitui preterição de uma formalidade essencial, conducente, em regra à anulabilidade do ato (nº1 do artigo 163º CPA)”[3].
19.       De seguida, verifica-se a fase da preparação da decisão. Esta fase, não obstante não ser autonomizada por todos os autores, é-o pelo Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, que defende que esta fase corresponde ao momento em que a Administração pondera adequadamente tudo aquilo que foi estabelecido na fase inicial, preparando-se, portanto, para decidir.
20.       Finalmente, ocorre a fase da decisão. É com a decisão que termina o procedimento do ato administrativo, conforme determina o artigo 93º do CPA. O procedimento, nos termos do artigo 127º do CPA, pode terminar pela prática de um ato administrativo ou pela celebração de um contrato. Neste caso, o procedimento terminou com a prática de um ato administrativo.
21.       DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO: Em conformidade com o disposto no artigo 152º do CPA, os atos administrativos têm de ser fundamentados, devendo esta fundamentação preencher os requisitos do artigo 153º. Este dever consiste, assim, na enumeração explícita das razões que levaram a Administração a praticar aquele ato. Neste sentido, o dever de fundamentação permite também que a Administração pondere as suas razões, permitindo uma maior prudência aquando da prática de atos administrativos. Na perspetiva da defesa do particular, o dever de fundamentação permite-lhe estruturar cabalmente uma impugnação administrativa ou contenciosa daquele ato, uma vez que só poderá fazê-lo se tiver conhecimento de todos os motivos que levaram a Administração a decidir.
22.       Como tal, os Secretários de Estado terão de indicar quais as razões que os levaram a abrir o procedimento concursal extraordinário. Relativamente ao Secretário de Estado do Ambiente, as razões que levaram à abertura daquele concurso extraordinário correspondem precisamente à urgente necessidade de proteger as florestas, uma vez que nos aproximamos da época em que se verificam as temperaturas mais altas, mas também por forma a evitar que haja uma elevada incidência de fogos que não só porão em risco as florestas como a segurança da população, todavia, não se verificam todos os requisitos do A.153º/1 CPA. Ainda em relação ao dever de fundamentação, importa referir que também se discute a sua possível natureza jusfundamental. A nosso ver, contrariamente àquela que é a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, o dever de fundamentação não corresponde, de todo, a um direito fundamental. Não se trata de um direito fundamental precisamente pelo facto de, desde logo, o legislador não o ter consagrado enquanto tal e ainda porque o próprio legislador, em alguns casos, dispensa o dever de fundamentação, caracterizando-o sempre como apenas um “dever” e não um direito. Como tal, ainda que não tenham sido respeitados os requisitos do artigo 153º relativo ao dever de fundamentação, não estamos perante a violação de um direito fundamental. Importa ainda referi que, no que diz respeito ao vício que a violação do dever de fundamentação acarreta é de nulidade ou de anulabilidade. No seguimento da nossa posição tomada relativamente à falta de jusfundamentalidade do dever de fundamentação, entendemos também que a violação deste dever apenas se pode reconduzir a uma anulabilidade nos termos do A.163º/1. Neste caso, de facto, houve falta de dever de fundamentação, uma vez que não estão preenchidos todos os pressupostos do A.153º/1, pelo que é anulável nos termos do A.163º/1. Contudo, uma vez que se trata de um ato discricionário, entendemos que, ao abrigo do A.163º/5 c) e à luz do princípio do aproveitamento do ato administrativo estamos perante um caso em que se aproveita o ato administrativo pelo facto de se verificar que ele seria praticado independentemente da violação de certas formalidades, ou seja, a invalidade é desvalorizada para uma situação de mera irregularidade e, como tal, tida como não essencial. Neste sentido, não obstante, ter sido violado o dever de fundamentação, a anulabilidade do ato administrativo é sanada por força da alínea c) do nº5 do A.163º.
23.       IMPUGNAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO: Ao abrigo do disposto no artigo 50º/1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, a impugnação de um ato administrativo tem por objeto a anulação ou a declaração de nulidade desse ato. Como tal, João Sorridente e Manuel Sabichão pretendem a anulação ou a declaração de nulidade do ato administrativo praticado pelos Secretários de Estado. A impugnação do ato administrativo é, portanto, uma forma de controlo da invalidade dos atos administrativos. A impugnabilidade do ato prende-se com o seu caráter externo, isto é, com a suscetibilidade de aquele ato produzir efeitos que podem ser lesivos na esfera jurídica de outrem (artigos 51º a 54º do CPTA). Esta faculdade de impugnar o ato administrativo está também consagrada constitucionalmente no artigo 268º/4 e 5 da CRP que consagra a tutela jurisdicional efetiva dos administrados, nomeadamente a impugnação de atos administrativos que os lesem.
24.       Com efeito, nos termos do artigo 188º/1 do CPA, o prazo de impugnação relativo aos interessados a quem o ato administrativo deve ser notificado só corre a partir da data da notificação. Neste sentido, João Sorridente e Manuel Sabichão podem impugnar o ato administrativo praticado pelos Secretários de Estado a partir do momento em que aquele lhes foi notificado. Em conformidade com o nº1 do artigo 189º, as impugnações administrativas necessárias suspendem os efeitos dos atos administrativos, ao passo que as impugnações administrativas facultativas não têm efeito suspensivo.
25.       ATO DE NOMEAÇÃO - Para além da abertura do procedimento concursal, a escolha dos guardas que ingressaram nas cinco vagas consiste num ato de nomeação.
26.       REGULAMENTO: Relativamente ao Aviso nº 3055/2019 importa perceber a que forma de atuação da Administração Pública este se reporta.
27.       Pela definição de regulamento que consta do CPA no artigo 135º percebemos que este aviso se aproxima mais daquilo que é um regulamento, dadas as suas características de generalidade e abstração. Generalidade por se aplicar a uma generalidade de destinatários, neste caso todos os que se queiram candidatar ao concurso e abstração por se aplicar a uma ou mais situações definidas pelos elementos típicos constantes das previsões normativas, ou seja, a todos os procedimentos concursais para o ingresso na carreira e categoria de guardas-florestais, o que até é percetível pelo facto deste concurso ser extraordinário já tendo ocorrido outro ao abrigo do mesmo.
28.       Além disso, o regulamento é ditado por um órgão da Administração Pública, o Governo, que nos termos do artigo 199º alínea c) da CRP tem competência para tal, visto ser o órgão supremo da Administração Pública e primeiro titular do poder regulamentar, tendo no âmbito das suas competências administrativas competência generalizada para a emissão de regulamentos.
29.  O artigo 135º refere ainda que para efeitos do disposto no CPA é necessário que o regulamento vise produzir efeitos jurídicos externos, ou seja, produzir efeitos na esfera de uma pessoa coletiva diversa da pessoa que aprovou o regulamento, neste caso uma pessoa coletiva diversa do Governo, o que acontece, pois este irá produzir efeitos na esfera jurídica dos guardas florestais que se vão candidatar.
30.       Conclui-se pelo exposto que presente Aviso se trata de um regulamento ao qual se aplicam os artigos 135º e ss. do CPA.
31.       De acordo com o 136º nº1 do CPA para a emissão de um regulamento tem de existir uma lei habilitante para tal, sendo essa neste caso a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, que regula o vínculo do trabalho em funções públicas. Mais precisamente, o Regulamento em causa foi aprovado ao abrigo dos artigos 30º nº1 e artigo 33º dessa mesma Lei, relativos ao preenchimento dos postos de trabalho e ao procedimento concursal. No artigo 136º nº 2 conjugado com o 112º nº7 da CRP os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar, o que no caso do Aviso em questão é respeitado referindo esta essa mesma lei logo no ponto 1 do mesmo.
32.       Estamos perante um regulamento de execução, pois este visa desenvolver a disciplina jurídica que consta da LGTFP, contudo não é devido, mas sim espontâneo, uma vez que não consta da lei a necessidade de complementarização da mesma. A Administração pode editar um regulamento de execução, se para isso tiver competência e achar adequado. O Governo, como já referido, tinha competência e era adequado dada a aproximação da época estival e a necessidade de vigilância acrescida das florestas para a prevenção de incêndios.
33.       O Regulamento em causa é eficaz, uma vez que foi publicado no Diário da República, respeitando o disposto no artigo 139º do CPA. Para além disso, entra em vigor na data da sua publicação, conforme consta do mesmo e ao abrigo do disposto no artigo 140º do CPA.
34.       REQUISITOS DO AVISO - No Aviso n.º 3055/2019, é de realçar que ao longo do regulamento são apresentados os vários aspetos, formalidades e requisitos necessários para o cargo de guarda florestal. No ponto 3) são apresentadas as caraterísticas do posto, e no ponto 6) são apresentados os requisitos de admissão, e um exemplo disso é não ter reprovado mais de uma vez em anterior curso de formação de guardas-florestais ou não ter sido eliminado por falta de mérito ou sanção disciplinar. No ponto 9 são expostos os documentos necessários. Seguidamente, no ponto 11) e seguintes do Aviso são apresentadas as etapas de seleção são as seguintes: uma prova de conhecimentos; provas físicas; avaliação psicológica composta por três diferentes fases. Os anexos são fundamentais para esclarecer relativamente as provas físicas e em relação as restrições, respetivamente.
35.         Para contextualizar a posição de guarda florestal no panorama jurídico nacional, analisaremos a partir do topo hierárquico. Começamos pela Guarda Nacional Republicana (GNR), uma força de segurança de natureza militar de Portugal, dependente, para efeitos policiais e operacionais em tempo de paz, do Ministério da Administração Interna e, para efeitos militares, do Ministério da Defesa Nacional (contexto da Administração Direta do Estado). De entre os vários serviços e competências dela, é do nosso interesse o Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente (SEPNA), pois é nesta que se encontram inseridos as equipas de proteção florestal (EPF), constituídas pelos guardas florestais, tal como refere o ponto 3.1 do Aviso. O trabalho dos guardas-florestais vai além da vertente policial, tendo também uma vertente técnica: existe uma relação estreita com a floresta e um contacto direto com as populações, indo ao encontro do princípio administrativo da aproximação dos serviços às populações. Zelar pelo cumprimento das disposições legais e regulamentares referentes a conservação e proteção da natureza e do meio ambiente, dos recursos hídricos, dos solos e da riqueza cinegética, piscícola, florestal ou outra, previstas na legislação ambiental, bem como investigar e reprimir os respetivos ilícitos são as principais funções do cargo. Para mais, fazem serviço de vigilância e fiscalização das florestas e das atividades nelas realizadas, como a caça e a pesca proibidas; fazem também controlos de podas e de cortes de árvores; verificam o descortiçamento (de grande relevância nacional, face à importância da cortiça na economia do país); contabilizam áreas ardidas; fiscalizam operadores de resíduos; vigiam o território através de postos estrategicamente colocados, que visam uma deteção oportuna de incêndios florestais; apoiam o sistema de gestão de informação de incêndios florestais (SGIF), colaborando para a atualização permanente dos dados; entre muitas outras.

36.         JOÃO SORRIDENTE- O Dr. Ricardo Crespo, médico dentista, no seu artigo sobre O impacto da falta de dentes (Edentulismo) na qualidade de vida na população e como resolver de 2012, salienta a importância dos dentes, visto que a falta destes dificulta funcionalidades como a mastigação, a fala, o sorriso ou a comunicação interpessoal. Para além disso, o Doutor reforça que as doenças orais têm um impacto significativo na qualidade de vida da pessoa, pois estão associadas a diversas doenças crónicas, como é o caso das diabetes e das doenças cardiovasculares. Os problemas dentários também podem ser associados à ocorrência de dores de cabeça, ouvidos, tonturas e alterações posturais, e a falta de dentes em concreto levar a baixa autoestima, fruto dessa má aparência.
37.         Estas condicionantes são muito relevantes ao caso em questão, pois estão intimamente relacionadas com a função de guarda florestal. A má aparência promove o isolamento e a anti sociabilidade das pessoas, uma clara desadequação a um posto que procura uma aproximação à população (princípio que rege a Administração direta do Estado - artigo 3º/3 da Lei 4/2004) e está em constate interação com os particulares. Mais relevante ainda, a comunicação interpessoal é absolutamente fundamental no exercício das funções de guarda florestal, pois estas abrangem a comunicação com outras pessoas, a necessidade de troca de informações, a comunicação correta com os restantes guardas florestais e a realização dos alertas necessários, muitas vezes em situações que exijam celeridade, como visto no ponto 37.
38.         No que diz respeito à queixa do João referente às placas e implantes dentários, podemos afirmar que esta não tem fundamento, na medida em que, novamente de acordo com o Dr. Ricardo, as placas e os implantes já permitem o ato da mastigação, essencial a uma nutrição adequada, um dos fatores importantes para uma boa saúde geral. Passamos a clarificar: a capacidade de mastigar fica reduzida com a falta de dentes (o que não acontece em situações de prótese ou placa), que leva à afetação das escolhas alimentares, tendendo-se a escolher alimentos com elevados teores de gordura e colesterol, que contribuem para défices nutricionais e, consequentemente, para um risco aumentado de aparecimento de outras doenças.
39.         Conclui-se, então, que a falta de dentes tem uma grande influência no funcionamento do corpo e, tendo em conta que o cargo de guarda florestal pode envolver grande esforço físico, isto leva-nos a aferir que o João não possuía as condições físicas indicadas para exercer o cargo.
40.         O argumento utilizado pelo João Sorridente, relativamente à questão de ter sido num âmbito de uma causa da Greenpeace que perdeu os dentes apenas demonstra que o João é um cidadão preocupado com o ambiente e que procura ajudar da melhor forma, envolvendo-se diretamente em causas importantes. No entanto, este argumento é irrelevante para a candidatura ao cargo de guarda florestal, pois a “paixão por causas verdes” não é critério de seleção. O relevante é que, neste momento, o candidato não se encontra na forma física mais indicada para atuar como guarda floresta.
41.         Podia ser posta em causa a possível violação por parte da Administração Pública de alguns princípios fundamentais constitucionais e administrativos, como o princípio da igualdade, da proporcionalidade e da justiça. Estes princípios são as posições jurídicas básicas reconhecidas pelo direito português, com vista à defesa dos valores e interesses mais relevantes que assistem às pessoas singulares e coletivas em Portugal, e encontram-se previstos no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa. Segundo o professor Freitas do Amaral, o princípio da justiça é o princípio fundamental consagrado no artigo supramencionado, sendo que os da igualdade e da proporcionalidade não passam de sub-princípios que se integram no da justiça. Como tal, este princípio pode ser definido como um conjunto de valores que impõem ao Estado e a todos os cidadãos a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido, em função da dignidade da pessoa humana. Acrescem também aos sub-princípios já mencionados a boa-fé, a razoabilidade e a equidade. O princípio da igualdade (art.266.º/2 da CRP e art.6.º do CPA), impõe que se trate de modo igual o que é juridicamente igual e de modo diferente o que é juridicamente diferente, na medida da diferença. A própria proibição da discriminação necessita de averiguação, já que se tem de ter em conta o fim visado pela medida administrativa e, depois, isolam-se as categorias que, para realizar tal fim, são objeto de tratamento idêntico ou diferenciado; por fim, questiona-se se, para a realização do fim tido em visto, é ou não razoável, à luz dos valores dominantes do ordenamento, proceder àquela identidade ou distinção de tratamento. O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três pressupostos cumulativos: a adequação (medida adotada é idónea para o fim público que se propõe a alcançar), a necessidade (obrigação a que se lese o mínimo possível, tanto a nível de interesses públicos como interesses privados) e a proporcionalidade em sentido estrito (benefícios que se espera alcançar com uma medida administrativa adequada e necessária suplantem os custos que acarretará).
42.         Não consideramos, todavia, que estamos perante qualquer violação dos princípios supramencionados. Neste caso concreto, em relação ao princípio da igualdade, podemos averiguar que o fim da medida administrativa é restringir as candidaturas às pessoas capazes de exercer o cargo de guarda florestal, tendo em conta as suas funções. Já foi comprovado que as condições de João Sorridente não eram as indicadas tendo em conta as funções a desempenhar, pelo que o tratamento desigual é justificado, pois o principio da igualdade não proíbe diferenças de tratamento, mas sim medidas discriminatórias materialmente infundadas, ou seja, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional. Quanto ao princípio da proporcionalidade, verificamos que existe adequação, pois as funções de guarda florestal necessitam, como já demonstrado, de pessoas com boa capacidade de comunicação e forma física, que não se estende a pessoas com falta de, pelo menos, 5 dentes. Está cumprida também a necessidade pois, apesar de privados na situação do João Sorridente, serem lesados pela prática deste ato, os danos públicos e privados seriam inconcebivelmente superiores se se admitisse a candidatura de pessoas sem apetência para a função de guarda florestal. Por fim, assume-se que a Administração Pública analisou os custos e, tendo em conta os benefícios claros aliados ao aumento da quantidade de guardas florestais, é claro que o pressuposto da proporcionalidade em sentido estrito se encontra cumprido. Estando já analisados os princípios da igualdade e proporcionalidade, também verificamos que a Administração Pública atuou de boa-fé, pois não tirou uma vantagem desproporcional com o ato, não conseguindo com a prática deste ato retirar proveitos inesperados e excessivos; com razoabilidade, visto que a ideia de razoabilidade é no sentido de haver desproporcionalidade sempre que a relação apurada entre a gravidade do sacrifício imposto pelo meio adotado e a importância dos interesses públicos que o justificam seja desrazoável, o que não é o caso, como analisado no pressuposto da proporcionalidade em sentido estrito; por fim, no que diz respeito à equidade, que é a justiça do caso concreto (não corrigindo o que é justo na lei, mas completando o que a justiça não alcança), esta foi também respeitada porque a lei é justa. Tendo tudo isto em conta, concluímos que não existe violação do princípio da justiça, nem de nenhum dos seus sub-princípios.
43.         Não obstante, se se considerar que existe aqui violação de algum dos direitos fundamentais apresentados, há que relembrar que estes não são direitos ilimitados ou ilimitáveis. Vivendo os indivíduos numa sociedade, é normal que o Direito seja chamado a limitar os direitos fundamentais de modo a proteger os direitos fundamentais de outras pessoas ou ainda a garantir bens jurídicos de relevo específico, como a segurança ou a ordem pública. Apesar de os direitos fundamentais serem universais e inalienáveis, a sua interdependência e a vida em sociedade trazem, na prática do dia-a-dia, a necessidade de determinar os limites aos direitos fundamentais, desde que seja em condições bem definidas e de caráter excecional, como entendemos que seja este o caso. Na vasta maioria das vezes, a limitação dos direitos fundamentais é realizada pelos poderes públicos, por uma questão de confronto de princípios. Trata-se da restrição desses princípios fundamentais em prol da prossecução do interesse público, que se encontra consignado no artigo 266º/1 da CRP e 4º do CPA (entenda-se interesse público como o interesse coletivo ou interesse geral de uma determinada comunidade: o bem comum). A exclusão da candidatura do João Sorridente prende-se por razões de superior interesse, na medida em que é necessário limitar o princípio da igualdade e da justiça no acesso a este cargo público, por força das especificidades e importância do posto de guarda florestal, como já desenvolvido. A admissão deste pode colocar em causa outros interesses e princípios fundamentais tais como a propriedade privada, a dignidade humana, a integridade física e até mesmo a vida.
44.         Por tudo isto, conclui-se que o cargo em causa exige, necessariamente, critérios mais apertados, não só pelo momento em que vivemos com a proliferação de incêndios, mas também porque, desta maneira, e recorrendo a uma ponderação valorativa dos princípios envolvidos, se asseguram outros princípios fundamentais, não correndo o risco de sermos imprudentes. Neste caso, como pudemos averiguar, os princípios da igualdade, justiça e proporcionalidade não proíbem diferenças de tratamento, mas sim medidas discriminatórias materialmente infundadas, ou seja, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional. Ora, neste caso não se verifica essa discriminação, na medida em que os valores defendidos são objetivamente superiores.

45.         MANUEL SABICHÃO - Manuel obteve a classificação de 0 valores na respetiva prova de conhecimentos. Na presente prova foram contrapostos 2 textos de Direito do Ambiente, cujas questões foram apresentadas sob forma de escolha múltipla, tal como é referido no diploma, no ponto 11/3 do Aviso. A profissão de guarda-florestal atua também sob princípios do Direito do Ambiente, nomeadamente no que toca à fiscalização, sendo que a apresentação de tais conhecimentos na prova parece ser relevante na avaliação da capacidade dos candidatos para o exercício da função que vão desempenhar. Apesar de o réu alegar que não tem formação jurídica, o ponto 3 do Aviso, especificamente no ponto 3.1 c) refere que o guarda florestal deve, no âmbito da missão da Guarda, prestar auxílio a qualquer diligência em matéria legal. Para além disso, o Direito do Ambiente, sendo um ramo do Direito, com um conjunto de princípios e normas jurídicas que pretendem a proteção do ambiente, parece ser necessário ter o mínimo de conhecimento nessa área. Importa referir que, tendo em conta que os guardas florestais se enquadram no SEPNA, compete-lhes zelar pelo cumprimento de disposições legais e regulamentares referentes à conservação e proteção do meio ambiente.
Para além disso, a doutrina caracteriza-se pelas opiniões dos jurisconsultos sobre uma determinada questão jurídica. Ao longo do tempo, a relevância da doutrina tem evoluído, aumentando a sua interferência na vida jurídica em relação à compreensão de certos institutos e princípios jurídicos, criação e interpretação de leis e integração de lacunas.
Relativamente ao Direito do Ambiente, segundo o professor Vasco Pereira da Silva, a aplicação do Direito do Ambiente abrange vários ramos de Direito, incluindo o Administrativo. Por outro lado, segundo o professor Jorge Miranda, a maior parte das normas de Direito do Ambiente remetem ao Direito Administrativo, não tendo utilidade prática para outros ramos de Direito.
As divergências doutrinárias no Direito do Ambiente são escassas, o que demonstra que os conhecimentos que Manuel teria de ter relativamente às divergências das Escolas de Lisboa e Coimbra não seriam assim tao significativas. Por exemplo, um dos casos de divergência doutrinária[4] é relativa ao dano ecológico, que existe entre as Escolas de Coimbra e de Lisboa, sendo que para a Escola de Lisboa, representada por José Cunhal Sendim, o dano ecológico é uma perturbação do património natural que afete a capacidade funcional ecológica e a capacidade de aproveitamento humano de tais bens, tutelada pelo sistema jurídico-ambiental. Por outro lado, para a Escola de Coimbra, representada por Gomes Canotilho, o dano ecológico verifica-se quando existe uma agressão aos bens naturais.
Como exposto, o Manuel Sabichão não precisa de formação jurídica, mas apenas dos conhecimentos mínimos para a realização da prova. Não obstante as divergências doutrinárias serem escassas em matéria de Direito do Ambiente, é importante que os guardas tenham conhecimento destas questões, nomeadamente da divergência supramencionada, visto que a violação de um dano ecológico é a violação de um direito coletivo juridicamente protegido, podendo gerar responsabilidade civil por dano ecológico.
Independentemente da relevância atribuída à divergência doutrinária das Escolas de Coimbra e Lisboa, a obtenção de zero valores por parte de Manuel, demonstra total desconhecimentos de aspetos fundamentais para o exercício de guarda florestal, visto que a prova de conhecimento procura averiguar se tem as competências técnicas necessárias ao exercício da função, tais como cultura geral sobre a atualidade, por isso, Manuel para além de não conhecer divergência doutrinária, também desconhece aspeto gerais sobre o Direito do Ambiente e questões atuais, não estando por isso preparado para o cargo.
46.       A carreira de guarda-florestal é dotada de um elevado sentido de responsabilidade e defensabilidade perante a sociedade, uma vez que das suas competências se pode extrair a necessidade de defender a floresta contra incêndios, bem como a investigação das causas das quais resultam os incêndios florestais. O ponto 3 do Aviso referente às funções dos guardas florestais, demonstra que estes exercem funções de grande relevância, abrangendo fiscalização, investigação das causas de incêndios, tarefas administrativas, formações, tarefas de carater operacional e auxílio em matéria legal. Deste modo, conclui-se que a sua missão não se relaciona apenas com questões de proteção ambiental, mas também a vida da população e a sua defesa é um dos pilares basilares, não fosse Portugal ocupado em 35.4% por Floresta, percentagem esta que expressa os 3.2 milhões de hectares da Floresta Portuguesa.
47.       FAMILYGATE – O princípio da imparcialidade está previsto no art.9.º, art. 69º, 76º/1 e 2 do CPA e determina que a Administração Pública deve tomar decisões determinadas exclusivamente com base em critérios objetivos de interesse público, adequados ao cumprimento das suas funções específicas, não se tolerando que tais critérios sejam substituídos ou distorcidos por influência de interesses alheios à função, sejam estes interesses pessoais do órgão, funcionário ou agente, ou mesmo interesses políticos concretos do Governo. A imparcialidade traduz a ideia de que os titulares de órgãos e agentes da Administração Pública estão impedidos de intervir em procedimentos, atos ou contratos que digam respeito a questões do seu interesse pessoal ou da sua família, ou de pessoas com quem tenham relações económicas de especial proximidade, a fim de que não se possa suspeitar da isenção ou retidão da sua conduta (vertente negativa). Traduz também a ideia de ponderação de todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos, equacionáveis para o efeito de certa decisão, antes da sua adoção. Tal obrigação de ponderação comparativa implica um apreciável limite à discricionariedade administrativa. Este princípio é independente das decisões da Administração serem justas, ou não, a lei pretende que os cidadãos possam ter sempre confiança na capacidade de a Administração tomar decisões justas. Ou seja, pretende-se que não haja razões para suspeitar, à partida, da imparcialidade dos órgãos competentes que vão tomar a decisão.
48.       O artigo 69º do CPA determina as circunstâncias em que "os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes, bem como "quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos", "não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública”. Na alínea b) do nº 1 do dito artigo diz-se que os abrangidos pela lei "não podem intervir" quando tenham interesse direto (ou através de representantes) no "procedimento administrativo" ou no tal "ato ou contrato de direito público", ou quando estejam envolvidos o "cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges" (uniões de facto), "bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil".
49.       Já quanto a outros familiares, a lei menciona o "parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral" (alínea d) do mesmo preceito). Ora, os primos - caso da nomeação que levou à demissão do réu - não estão abrangidos pela expressão "parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral", pois estes pertencem ao quarto grau da linha colateral.
50.       Tendo isto em conta, a nomeação de um primo do Secretário de Estado para seu Assessor não é, como alegado, ilegal. Não sendo a demissão de ambos fundamentada numa ilegalidade, mas sim em razões políticas e pessoais, não pode ser de maneira nenhuma posta em causa a legalidade dos demais atos praticados pelo Secretário de Estado do Ambiente, nomeadamente a lista dos candidatos escolhidos.
51.       No entanto, mesmo que o ato de nomeação pelo Secretário de Estado do Ambiente do seu primo para seu assessor fosse ilegal, o ato de nomeação da lista dos candidatos escolhidos para guardas florestais nunca poderia ser posto em causa, quanto à sua legalidade.
52.       Se efetivamente estivéssemos perante um ato inválido, seria um ato anulável (163º/1 do CPA, por violação do princípio da imparcialidade), pelo que continuaria a produzir efeitos jurídicos, que poderiam ser destruídos com eficácia retroativa ex tunc se o ato viesse a ser declarado anulado.
53.       Pelo facto de esse ato por parte do Secretário de Estado ser inválido, não significa que todos os atos praticados por ele também o sejam. É preciso entender que são dois atos distintos: o de nomear o primo para seu assessor (anulável), e o do nomear os guardas florestais pelo concurso público. A invalidade de um não implica a invalidade automática do outro, mesmo que praticados pelo mesmo órgão. Para o ato de nomeação dos guardas florestais ser anulável, teria ele também que violar algum princípio ou norma jurídica, que como já vimos não acontece. Isto ocorre pela necessidade de segurança jurídica, bem como não pôr em causa a continuidade das instituições, que não aconteceriam se sempre que um órgão praticasse um ato inválido, todos os seus outros atos já praticados se tornassem inválidos também. A máquina administrativa parava, e não seria possível prosseguir o interesse público.
54.       Um exemplo recente é o da perda de mandato pelo presidente da Câmara da Maia, em abril deste ano, pela intervenção direta deste num processo administrativo “para o qual estavam impedidos, visando a obtenção de uma vantagem patrimonial” (artigo 69º/1 a.). Este ato de imparcialidade é anulável e levou à perda de mandato, mas não implicou uma invalidade de todos os outros atos tomados pelo presidente da autarquia.
55.       Basta analisar o conceito de anulabilidade do ato, para perceber que não há fundamento a esta pretensão por parte dos acusadores: reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado. Ora, o primo do Secretário de Estado deixaria de ser seu assessor, e então já teríamos a situação que existiria, caso o ato não fosse praticado, não havendo lógica nem base jurídica que invalide o ato de nomeação da lista dos candidatos escolhidos para guardas florestais.
56.    Face ao exposto, o Ministério do Ambiente solicita ao Tribunal que decida pela improcedência do pedido de impugnação, uma vez que não se verificam quaisquer invalidades no procedimento que justifiquem as alegações feitas pelos autores.

Subturma 17

Carolina Vieira
João Duarte Brazão
João Ferro
Mariana Vaz
Raquel Oliveira
Sara Lemos
Tiago Peyroteo




[1] AMARAL, Diogo Freitas de, Curso de Direito Administrativo, 3ª edição, 2016, Almedina, p.450.
[2] SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, p.53
[3] http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ac23cdbe6d492d59802583220046ae1d?OpenDocument&ExpandSection=1
[4] Retirado da Tese Dano à ecodiversidade: rutura conceptual, uma perspetiva juspublicista de Paula de Castro Silveira, orientada pelo professor Doutor Vasco Pereira da Silva, 2017, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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