A RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A RESPONSABILIDADE CIVIL DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A
vivência em sociedade está sempre associada à ocorrência de danos na esfera
jurídica dos indivíduos ou do seu património, principalmente numa sociedade
desenvolvida, complexa, competitiva e aberta ao exterior.
O
princípio no nosso Direito é de que os prejuízos são suportados por quem os
sofre. No entanto, este princípio sobre algumas exceções que implica que os
danos sejam suportados por outrem – é este o caso do instituto da
Responsabilidade Civil.
O
principal objetivo da responsabilidade civil é ressarcir ou indemnizar
prejuízos sofridos por particulares, pretendendo repor a sua situação inicial
(colocar o particular na situação que estaria se não tivesse ocorrido o dano),
quando isso não é possível então procede-se à reparação por equivalente pecuniário
ou, subsidiariamente, à compensação do dano sofrido.
Este
instituto foi transportado para o Direito Administrativo uma vez que o
exercício da função administrativa implica frequentemente o uso de poderes de
autoridade e esse exercício pode ter como consequência a ocorrência de danos na
esfera jurídica dos particulares.
A
ideia de responsabilizar a Administração pelos seus atos começou a
desenvolver-se a partir dos inícios do século XIX, em grande parte devido ao
acórdão Blanco (proferido a 8 de fevereiro de 1873, pelo Tribunal de
Conflitos francês).
Assim,
a responsabilidade da Administração é a figura por virtude da qual uma pessoa
coletiva de direito público fica obrigada à indemnização, à reparação
pecuniária, dos prejuízos causados por facto dos seus órgãos ou agentes a
particulares, tanto no exercício da função administrativa, como no exercício da
função privada.
É
de referir que as questões associadas a este instituto são da maior relevância,
não só pelo seu papel na construção do Direito Administrativo, mas também pela
sua grande atualidade e pertinência, na medida em que, como refere o Professor
Vasco Pereira da Silva[1], “a responsabilidade civil das entidades
públicas constitui um verdadeiro “pilar” do Estado de Direito, encontrando-se
consagrada na Constituição, no âmbito do regime jurídico dos direitos
fundamentais (art. 22º). Além disso, também o próprio direito à indemnização em
caso de lesão de direitos fundamentais assume, a natureza de direito
fundamental (artigos 16º e 17º)”.
Quanto à
evolução histórica do instituto da responsabilidade civil da Administração, o
Professor Freitas do Amaral autonomiza quatro fases.
Numa primeira
fase, por regra, considerava-se que o Estado era irresponsável: a manifestação
da vontade do soberano não poderia gerar qualquer tipo de obrigação de
indemnizar pelos prejuízos que aquele provocasse aos particulares.
Foi esta a
conceção dominante nas épocas em que o Poder estava reunido nas mãos de um
monarca absoluto, bem como durante o século XIX.
Contudo, é de notar
que, na prática, não só eram consideráveis exceções abertas àquele princípio
geral (em certos casos, havia lugar a situações de responsabilidade civil por
parte do Estado), mas apenas nos termos do direito privado e só para os atos e
contratos de direito privado que aquele praticasse ou celebrasse; como, por
outro lado, o facto de o Estado não ser ainda intervencionista limitava, em
grande parte, as situações em que a sua ação era suscetível de causar danos aos
particulares.
Assim, os textos
constitucionais portugueses do séc. XIX previam apenas a responsabilidade dos
“empregados públicos” por faltas cometidas no exercício das respetivas funções:
erros e abusos de poder. Vigorava um regime de responsabilidade civil do
funcionário; a Administração não respondia, nem sequer indiretamente.
Porém, a
jurisprudência e a doutrina interpretaram estes preceitos no sentido de que os
atos de gestão privada, isto é, a atividade
da Administração que decorre sob a égide do Direito Privado[2],
responsabilizam o Estado, à semelhança do que acontecia com as demais pessoas
coletivas, sendo estas atividades reguladas pelo Direito Privado; já os atos
praticados no âmbito da gestão pública, nunca poderiam responsabilizá-lo.
A CRP de 1911 nem
chegava a aborda o tema, e nem sequer se referia à responsabilidade dos
empregados públicos.
Numa segunda
fase, a jurisprudência começa a admitir a responsabilidade do Estado por “atos
de império”, até que, em 1930, com a revisão do CC acrescenta-se à
responsabilidade dos agentes estaduais a responsabilidade solidária do próprio
Estado.
Com o Código
Administrativo de 1936-1940, estabelece-se a responsabilidade exlusiva do
Estado, uma vez que este vem estabelecer, em certos casos, a responsabilidade
exclusiva das autarquias locais. Apenas os atos feridos de incompetência,
excesso de poder ou preterição de formalidades essenciais é que continuaram a
implicar a responsabilidade pessoal do agente; caso contrário, a legislação
ordinária portuguesa, indicava que se admitia a responsabilidade civil da
Administração por atos ilícitos e culposos, praticados pelos seus órgãos ou
agentes no desempenho das respetivas funções.
Até meados do
século XX, a doutrina sustentou que a responsabilidade só existia nos casos
expressamente enumerados em leis especiais. “A partir de 1950, começou a
entender-se que, pelo menos em relação à responsabilidade por atos lícitos,
havia um princípio geral que impunha à Administração o dever de indemnizar,
mesmo fora das hipóteses previstas na lei”.[3]
Do ponto de vista
processual, verificava-se uma situação paradoxal: por um lado, as ações para
efetivação da responsabilidade civil da Administração deveriam ser propostas em
tribunais administrativos; por outro lado, a competência para conhecer da responsabilidade
administrativa cabia aos tribunais judiciais.
A terceira fase
inicia-se com a publicação do novo CC, em 1966, que vem trazer importantes
alterações a esta matéria.
A intenção
originária do legislador era regular na nova lei toda a matéria da responsabilidade
extracontratual da Administração Pública, no entanto, o que acabou por se
regular foi apenas a responsabilidade extracontratual por danos causados no
exercício da atividade da gestão privada; deixando para as leis administrativas
a disciplina da responsabilidade da Administração nos domínios dos atos de
gestão pública, isto é, “emergente de
condutas autoritárias da Administração Pública, adotadas sob a égide de regras
e princípios de direito administrativo” [4],
a qual veio a ser estabelecida no DL nº 48 051, de 21 de novembro de 1967.
O diploma fiel ao paradigma da imputação à
Administração do dano causado por atuações de indivíduos com quem mantém uma
relação funcional, consagrou um regime distinto de responsabilidade da
Administração – em parte direta, noutra indireta – “em matéria de factos
ilícitos e culposos dos seus órgãos, funcionários ou agentes e, como figura
geral, a responsabilidade exclusiva e objetiva da Administração no que se
refere à responsabilidade pelo risco e à responsabilidade por facto lícito”[5]
Em termos de
contencioso, a distinção de regime
substantivo (gestão pública versus gestão privada), refletia-se no plano
adjetivo, isto é, na determinação da jurisdição competente para o julgamento
das ações de responsabilidade: pelos prejuízos causados no exercício de
atividades de gestão privada, a Administração respondia segundo o direito civil
e perante os tribunais judiciais; pelos danos causados no desempenho de
atividades de gestão pública, a Administração respondia segundo o direito
administrativo e perante os tribunais administrativos.
Numa quarta fase,
que corresponde à atualidade, a CRP veio a autonomizar expressamente, no artigo
22º, a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, da responsabilidade
dos seus funcionários e agentes.
Além disso, este
preceito veio a consagrar o princípio da responsabilidade solidária da
administração e dos seus titulares de órgãos, funcionários e agentes, pelos
prejuízos causados no desempenho das suas funções.
A CRP de 1976
veio ainda a prever, no art. 271º, nº 1 e nº4, a ideia de responsabilidade da
Administração em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários
ou agentes. Contudo, é de notar que este princípio da responsabilidade se distingue
daquele que está previsto para as “obrigações solidárias” no CC, e deve ser
conjugado com outros princípios constitucionais, nomeadamente o da eficiência
da Administração e o de uma Administração responsável.
Posteriormente, a
Reforma do Contencioso Administrativo de 2002/2003 veio remeter o tratamento de
todas as questões relativas à responsabilidade civil da Administração para os
tribunais administrativos através da ação administrativa comum, passando estes
a ter competência para conhecer da responsabilidade civil contratual resultante
do incumprimento de contratos sujeitos a “um procedimento pré-contratual
regulado por normas de direito público” (contratos públicos) ou de contratos
administrativos[6].
Idêntica solução
está prevista para a responsabilidade civil extracontratual das pessoas
coletivas de direito público, dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e
demais servidores público, bem como para a responsabilidade civil
extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime
específico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas
coletivas de direito público[7],
o que se traduz num alargamento do âmbito de aplicação subjetiva do novo regime
legal por parte do legislador.
Por sua vez, em 2007,
com a Lei nº67/2007, de 31 de dezembro[8], é aprovado o RCEEP, isto é,
o Regime da Responsabilidade
Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. Dois dos objetivos
prosseguidos foram o de aproximar o quadro normativo legislado da jurisprudência
dos tribunais administrativos e o de dar cumprimento à obrigação de
transposição de diretivas euro-comunitárias em matéria de responsabilidade
pré-contratual.
Deste
modo, quanto ao seu âmbito de aplicação material, ainda hoje a dualidade de regimes
substantivos de responsabilidade se mantém: por um lado, a responsabilidade
civil decorrente do exercício de atividades de gestão privada, cujo regime
consta do art. 501º do CC; por outro, a responsabilidade civil emergente do
exercício da função administrativa”, regulada quer pelo CCP, quer pelo RCEEP,
no que respeita à responsabilidade civil contratual.
Assim,
na síntese apresentada pelo Professor Freitas do Amaral, quanto ao regime da
responsabilidade civil da Administração Pública, é possível distinguir entre as
seguintes modalidades:
®
Pelos factos ilícitos e
culposos, praticados pelos órgãos, agentes ou representantes, fora do âmbito e
do exercício das suas funções, há lugar a responsabilidade exclusiva dos
mesmos;
®
Pelos factos ilícitos e
culposos, praticados pelo órgão, agente ou representante da Administração,
dentro do âmbito e do exercício das suas funções, há lugar a responsabilidade
solidária da Administração e dos indivíduos que tenham atuado em nome dela.
Nesta hipótese:
§ Se o órgão, agente ou representante da Administração
atuou com dolo, a Administração goza do direito de regresso contra ele;
§ Se atuou com mera culpa, há responsabilidade
exclusiva da Administração;
®
Nos casos de
responsabilidade objetiva, há também responsabilidade exclusiva da
Administração.
Para o
Professor Freitas do Amaral, a solução atualmente em vigor, assente na
distinção entre gestão privada (regulada no CC) e gestão pública (que consta do
RCEEP, no tocante à responsabilidade extracontratual, e do CCP, relativamente à
responsabilidade emergente da violação de contratos administrativos), é
acertada, na medida em que, quando a atuação da Administração é similar à
atuação de qualquer entidade privada, esta deve estar sujeita às consequências
deste regime.
Assim,
quando um ato ou facto se enquadra numa atividade regulada por normas de
direito privado, o regime da responsabilidade é o que consta da lei civil;
quando se trata de uma atividade regulada por normas de direito administrativo,
a responsabilidade rege-se pela lei administrativa.
Por
outro lado, o professor Vasco Pereira da Silva critica esta solução uma vez que
há dificuldade em qualificar os factos danosos como sendo de gestão privada ou
festão pública. A isto, o professor Freitas do Amaral apresenta uma solução uma
vez que faz uma distinção entre factos danosos que são atos jurídicos ou factos
integrados numa atividade que em si mesma revista natureza jurídica, ou, pelo
contrário, atos materiais ou factos integrados em atividades de natureza não
jurídica. Quanto à primeira o Professor defende que não existem grandes
dificuldades a propósito da sua qualificação, contudo, se o facto danoso for um
facto material ou pertencer a uma atividade não jurídica da Administração, já
se podem levantar alguns problemas, uma vez que se torna mais difícil
determinar se estamos perante uma situação de gestão privada ou pública.
O
Professor Freitas do Amaral apresenta, contudo, um critério, que permite
distinguir entre os dois tipos de gestão, nos seguintes termos: (…) um ato material ou uma atividade não
jurídica deverão qualificar-se como de gestão pública se na sua prática ou no
seu exercício forem de algum modo influenciados pela prossecução do interesse
coletivo (isto é, corresponderem ao exercício da função administrativa) – ou
porque o agente esteja a exercer poderes de autoridade, ou porque se encontra a
cumprir deveres ou sujeito a restrições especificamente administrativos, isto
é, próprios dos agentes administrativos. E será gestão privada nos restantes
casos.
Por sua
vez, o Professor Vasco Pereira da Silva considera que, por um lado, enquanto o
afastamento da dualidade de jurisdições, no que se refere à responsabilidade
civil administrativa, vem afastar muitos dos inconvenientes que antes se
verificavam, decorrentes das dúvidas e dos conflitos relativos à competência
dos tribunais; porém, por outro, a
subsistência da dualidade de regimes jurídicos substantivos no domínio da
responsabilidade administrativa – que já antes era ilógica – deixa agora de
fazer qualquer sentido, não apenas pela (antes) referida ausência de critério
de distinção entre gestão pública e gestão privada, como também pela
inadequação material do regime aplicável[9].
Assim,
para o Professor Regente, ao contrário do que defende o Professor Freitas do Amaral,
as mudanças introduzidas pela reforma do Contencioso Administrativo pressupõem
a alteração do regime da responsabilidade civil pública, não fazendo sentido
continuar a falar na dualidade de regimes jurídicos substantivos (que contrapõe
gestão pública a gestão privada), na medida em que a mesma carece de lógica e,
além disso, corresponde à aplicação de regimes jurídicos inadequados à
realidade social e jurídica administrativa atual.
No
entanto, como já foi referido, há dois regimes de responsabilidade civil da
Administração consagrados no nosso Direito – responsabilidade por atos de
gestão privada e responsabilidade por atos de gestão pública.
O
Professor Freitas do Amaral indica-nos também, tendo em conta a complexidade do
instituto e acompanhando a estrutura dos diplomas e a distinção entre
responsabilidade contratual e extracontratual, quais os regimes jurídicos a que
se encontra sujeira a Administração Pública, e são eles:
1.
Responsabilidade civil
pré-contratual e contratual emergente de contratos sujeitos ao direito privado;
2.
Responsabilidade civil
extracontratual por atos de gestão privada;
3.
Responsabilidade civil
extracontratual por atos de gestão pública, na qual se inclui cinco
modalidades:
a.
Responsabilidade por ação ou
omissão ilícita e culposa praticada pelos titulares de órgãos da Administração,
seus funcionários ou agentes;
b.
Responsabilidade por
violação de norma ocorrida no âmbito do procedimento de formação de certos
contratos administrativos;
c.
Responsabilidade por
funcionamento anormal do serviço;
d.
Responsabilidade pelo risco;
e.
Responsabilidade por ato
lícito
4.
Responsabilidade civil
contratual emergente de contratos administrativos
Bibliografia consultada:
DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito
Administrativo”, volume II, 4ª edição, Almedina, 2018
JOÃO CAUPERS, “Introdução ao Direito Administrativo,
10ª edição, Âncora, Lisboa, 2009
MARCELO REBELO DE SOUSA/ ANDRÉ SALGADO DE MATOS,
“Direito Administrativo Geral”, D. Quixote, Lisboa – tomo III “Atividade
administrativa” 1ª edição, Dom Quixote, 2007
MARCELLO CAETANO, “Manual de Direito
Administrativo”, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 1983
VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo”,
Almedina, 2005
Realizado
por:
Marta Ferreira Biu
Nº aluno: 58678
Subturma 17
[1] Cfr. O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as
Ações no Novo Processo Administrativo”, pp. 472-474.
[2]
Cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito
Administrativo II, p. 1222.
[3] Diogo
Freita do Amaral, “Curso de Direito Administrativo” vol. II, 4ª ed, p. 578
[4]
Cfr. João Caupers, Introdução ao Direito
Administrativo, p. 324.
[5] Diogo
Freita do Amaral, “Curso de Direito Administrativo” vol. II, 4ª ed, p. 579
[6]
Cfr. o art. 4º, nº1, alíneas e) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos
e Fiscais.
[9]
Cfr. Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 495.
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