A problemática em torno das garantias administrativas


A problemática em torno das garantias administrativas

                                                                                                            Sara Isabel Frutuoso Marques de Lemos
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Sumário: I. O que são garantias administrativas?; II. O antigo e o atual paradigma das garantias administrativas e da recorribilidade do ato administrativo perante os tribunais; III. Diferentes posições doutrinárias acerca da exigência de exercício prévio das garantias administrativas; IV. Conclusão; V. Bibliografia.

I.                    O que são garantias administrativas?

As garantias administrativas são, segundo João Caupers, aquelas que se efetivam “através dos órgãos da Administração Pública, aproveitando as próprias estruturas administrativas e os controlos de mérito e de legalidade nelas utilizados” [1]. Como tal, as garantias administrativas tanto podem visar a apreciação da legalidade de um ato como o mérito daquela atuação. Deste modo, entendemos que as garantias administrativas são meios através dos quais os particulares podem defender os seus direitos e interesses legalmente protegidos perante a Administração Pública. Importa ainda referir que o recurso a garantias administrativas está regulado no CPA bem como no CPTA. Contudo, aquilo que se verifica relativamente às garantias administrativas é, muitas vezes, a sua ineficácia. Tal como afirma o Professor Vasco Pereira da Silva, as garantias administrativas, pelo facto de, aquando do seu exercício, se verificar que é novamente a Administração a decidir, tornam-se ineficazes, na medida em que, muitas vezes, a Administração decide em sentido igual ao que tinha decidido anteriormente.

II.                  O antigo e o atual paradigma das garantias administrativas e da recorribilidade do ato administrativo perante os tribunais

Uma parte da doutrina entende que para que se possa recorrer de um determinado ato administrativo é necessário que ele produza efeitos externos, que seja definitivo e executório, tal como afirma o Professor Diogo Freitas do Amaral. Todavia, o Professor Vasco Pereira da Silva entende que este entendimento de ato administrativo corresponde a uma manifestação da Administração agressiva. Como tal, esta conceção de ato administrativo deixou de vigorar a partir do momento em que surgiu a Administração prestadora, isto é, a moderna Administração. Neste sentido, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, a definição de ato administrativo como sendo definitivo e executório corresponde, hoje, a um “paradigma perdido do ato administrativo” [2], não sendo adequado para caracterizar o paradigma atual.
Exigir que as garantias sejam exercidas antes de recorrer ao tribunal, sob pena de não ser possível fazê-lo previamente, representa, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, uma manifestação dos “traumas de infância” do contencioso administrativo. De acordo com o Professor, o argumento segundo o qual se defende que esta exigência de exercício prévio constitui uma forma de facilitar a resolução de um litígio não procede. Para além disso, é também defendido que não deve ser confundido o acesso ao juiz com o acesso ao tribunal, razão pela qual esta exigência prévia seria, supostamente, admissível. O Professor Vasco Pereira da Silva, como é evidente, não concorda com esta fundamentação.
Deste modo, de acordo com o Professor, o critério indicado para sabermos se determinado particular pode ou não recorrer de um certo ato administrativo deve ser o da eficácia externa dos atos administrativos. Como tal, basta que um ato afete ou lese direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares para que se possa recorrer dele perante os tribunais. Este critério tornou-se ainda mais evidente a partir do momento em que o artigo 268º/4 da CRP passou a garantir aos particulares o recurso contencioso de quaisquer atos administrativos que lesem direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Para além disso, o nº5 da disposição supra referida determina ainda que é garantido a todos os particulares o acesso à justiça, pelo que, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, seria totalmente inadmissível vedar este acesso através da exigência de exercício prévio das garantias administrativas dos particulares. Esta disposição tem, pois, uma função de “garantir a proteção efetiva e integral dos direitos dos cidadãos perante a Administração”, o que se demonstra incompatível com a exigência de recurso hierárquico necessário. É neste sentido que o Professor Vasco Pereira da Silva afirma que a CRP abandonou totalmente as características de definitividade e executoriedade do ato administrativo, passando a existir um “modelo de contencioso de matriz subjetiva” [3].
Atualmente, o CPA consagra expressamente a existência de recursos hierárquicos necessários (artigos 189º e 190º), ainda que a regra geral, conforme consta no artigo 185º/2 do CPA seja a da facultatividade. 

III.                Diferentes posições doutrinárias acerca da exigência de exercício prévio das garantias administrativas

O Professor Vasco Pereira da Silva, por forma a defender a sua posição relativamente à temática do exercício prévio das garantias administrativas, invoca o artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa. À luz do disposto neste artigo, o Professor defendeu, antes da reforma, a inconstitucionalidade da exigência do recurso hierárquico necessário. O facto de a disposição supramencionada garantir uma tutela jurisdicional efetiva aos particulares impede, pois, que estes possam simplesmente recorrer aos tribunais sem que exerçam previamente as suas garantias administrativas. Como tal, de acordo com o Professor, a regra de recurso hierárquico necessário era inconstitucional porque violava o princípio constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (artigo 268º/4 CRP), o princípio constitucional segundo o qual deve existir uma separação entre a Administração e a justiça bem como o princípio constitucional da desconcentração administrativa (artigo 267º/2) e, finalmente, o princípio da efetividade da tutela, também consagrado no artigo 268º/4 da CRP. O Professor aponta ainda para a importância de compreender que a exigência de recurso hierárquico prévio estava apenas presente nos casos em que o ato administrativo era suscetível de ser impugnado contenciosamente, não se verificando esta exigência nos restantes casos (regime que resultava do artigo 167º/1 do antigo Código do Procedimento Administrativo).
O Professor Vieira de Andrade, por sua vez, sempre defendeu a não inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário. Na sua obra Lições de Direito Administrativo, o Professor invoca a jurisprudência do Tribunal Constitucional por forma a comprovar que não há qualquer inconstitucionalidade no que diz respeito à exigência de recurso hierárquico necessário prévio à possibilidade de recorrer aos tribunais. Neste sentido, o Professor defende a constitucionalidade desta exigência pelo facto de, segundo o Professor, corresponder a um “mero condicionamento” ou apenas a uma mera “restrição legítima” [4]. Como tal, estaria apenas em causa uma restrição ao direito de acesso aos tribunais que, de acordo com o autor supra referido, seria totalmente justificada e proporcional.
Também o Professor Paulo Otero se pronunciou acerca desta questão. Segundo o Professor, é necessário atender à regra da suspensão dos prazos por forma a tomar posição relativamente a esta questão. O Professor refere a finalidade subjacente à necessidade de exercer previamente as garantias administrativas, que é a de dar uma última hipótese à Administração de, antes de intervir o poder judicial, aquele poder “reconsiderar a validade do ato” [5], facilitando, inclusivamente, o trabalho nos tribunais administrativos.
Atualmente, o Professor Vasco Pereira da Silva entende que o novo CPA “afasta inequivocamente e definitivamente a necessidade de recurso hierárquico, como pressuposto de impugnação contenciosa”. O Professor afirma isto com base no facto de o CPA consagrar a possibilidade de impugnação contenciosa de qualquer ato administrativo que seja suscetível de lesar direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Para além disso, o CPA consagra ainda a possibilidade de o particular, ainda que tenha exercido as suas garantias previamente, poder impugnar contenciosamente, de imediato, o ato administrativo. Por fim, o CPA consagra também a atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa. Através destas normas do CPA, o Professor Vasco Pereira da Silva conclui que o CPA afasta, sem dúvida, a regra do recurso hierárquico necessário, bem como outras garantias que fossem também consideradas necessárias. Através da CRP foi instituído, segundo o Professor, um regime que determina que o particular pode recorrer imediatamente à apreciação contenciosa dos atos administrativos.
Todavia, existe uma parte da doutrina que faz uma interpretação restritiva destas normas do regime jurídico do CPA. De acordo com esta doutrina, defendida, nomeadamente, pelo Professor Mário Aroso de Almeida, o regime jurídico do CPA deve ser interpretado restritivamente, isto é, o CPA não tem alcance para revogar eventuais normas especiais que exijam o recurso hierárquico necessário. Como tal, não obstante o regime jurídico do CPA, essas normas manter-se-iam. O Professor Vasco Pereira da Silva, como é evidente, discorda desta posição. De acordo com o Professor esta posição doutrinária não é de adotar pelo facto de o artigo 268º/4 da CRP, ou seja, a admissibilidade de acesso à justiça, prevalecer sobre as eventuais regras especiais bem como pelo facto o Professor entender que as tais regras especiais não serem, efetivamente, especiais. Importa explicar melhor este segundo argumento do Professor. O caráter especial destas regras não se verificaria, na ótica do Professor Vasco Pereira da Silva, pelo facto de estas regras serem, aquando da existência da regra geral de recurso hierárquico, mera confirmação dessa regra, não apresentando especialidade alguma. Para além disso, o Professor refere ainda mais três argumentos por forma a refutar a posição doutrinária supramencionada. Segundo o Professor, não se trata de um fenómeno de mera revogação das eventuais regras especiais, mas sim de um caso de caducidade, isto é, a partir do momento em que surge o regime jurídico do CPA, estas regras especiais carecem de objeto, pelo que caducam. Seguidamente, o Professor afirma ainda que, do ponto de vista constitucional, justificar a exigência de recurso hierárquico necessário perante a concretização constitucional de que o acesso à justiça é um direito fundamental, parece ser uma “missão impossível” [6]. Finalmente, o Professor Vasco Pereira da Silva, quando o CPA concretiza o direito fundamental de acesso ao contencioso administrativo, estabelece que o “mérito” deve prevalecer sobre as “formalidades”, o que implica que devem ser evitadas “diligências inúteis” [7].
Assim, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, a solução mais adequada seria a da revogação expressa de todas as disposições que determinassem o recurso hierárquico necessário bem como a generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, acompanhada de um eventual prazo para o exercício da faculdade de impugnação administrativa pelos particulares que serviria somente para aplicar o regime da suspensão automática da eficácia, até à decisão da garantia administrativa [8].
Importa ainda referir que, de acordo com o Professor supramencionado, o sistema ideal seria aquele que se assemelhasse aos “tribunals” que existem no sistema britânico, isto é, a existência de órgãos administrativos especiais que garantissem a verdadeira eficácia das garantias administrativas. Estes órgãos administrativos especiais permitiriam, pois, uma maior autonomia e imparcialidade por parte dos decisores, permitindo também a criação de “novos e específicos meios administrativos” [9]. O Professor conclui, portanto, tal como referi anteriormente, que se deve entender que caducam todas as normas que prevejam o recurso hierárquico necessário, pelo que se deve entender que o exercício das garantias é sempre facultativo.

IV.                Conclusão

Em suma, a meu ver, a posição do Professor Vasco Pereira da Silva parece-me a mais indicada. Não obstante ainda existirem normas que preveem a exigência de recurso hierárquico necessário, à luz do A.268º/4 da CRP, aquelas demonstram-se incompatíveis com este preceito constitucional. A opção do legislador constituinte demonstra um claro “alargamento da recorribilidade a todos os atos administrativos” [10] que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos. Uma vez que a CRP, desde a revisão constitucional de 1989, determina este âmbito alargado da recorribilidade dos atos administrativos, deve considerar-se, conforme determina o Professor Vasco Pereira da Silva, que todas as normas anteriores e posteriores a esta revisão se devem considerar caducadas por inconstitucionalidade superveniente ou originariamente inconstitucionais, conforme a data em que entraram em vigor.

V.                  Bibliografia

SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2016;

ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, 2017;

OTERO, Paulo, Impugnações Administrativas in: Cadernos de Justiça Administrativa, 1996;

SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação Administrativa Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias Contenciosas e Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005;

AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2016;

CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 2003.


[1] - CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 2003, p.240;

[2] – SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2016, p. 631;

[3] – SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2016, p.666;

[4] – ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, 2017, p.245;

[5] – OTERO, Paulo, Impugnações Administrativas in: Cadernos de Justiça Administrativa, 1996, p. 52;

[6] – SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação Administrativa Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias Contenciosas e Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005, p.23;

[7] - SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação Administrativa Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias Contenciosas e Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005, p.27;

[8] – SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação Administrativa Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias Contenciosas e Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005, p.26;

[9] – SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação Administrativa Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias Contenciosas e Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005, p.25;

[10] – SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2016, p.674.


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