A problemática em torno das garantias administrativas
A problemática em torno das garantias administrativas
Sara
Isabel Frutuoso Marques de Lemos
58193
Sumário: I.
O que são garantias administrativas?; II. O antigo e o atual paradigma das
garantias administrativas e da recorribilidade do ato administrativo perante os
tribunais; III. Diferentes posições doutrinárias acerca da exigência de
exercício prévio das garantias administrativas; IV. Conclusão; V. Bibliografia.
I.
O que são
garantias administrativas?
As garantias administrativas são, segundo João
Caupers, aquelas que se efetivam “através dos órgãos da Administração Pública,
aproveitando as próprias estruturas administrativas e os controlos de mérito e
de legalidade nelas utilizados” [1]. Como tal, as garantias administrativas
tanto podem visar a apreciação da legalidade de um ato como o mérito daquela
atuação. Deste modo, entendemos que as garantias administrativas são meios
através dos quais os particulares podem defender os seus direitos e interesses
legalmente protegidos perante a Administração Pública. Importa ainda referir
que o recurso a garantias administrativas está regulado no CPA bem como no
CPTA. Contudo, aquilo que se verifica relativamente às garantias
administrativas é, muitas vezes, a sua ineficácia. Tal como afirma o Professor
Vasco Pereira da Silva, as garantias administrativas, pelo facto de, aquando do
seu exercício, se verificar que é novamente a Administração a decidir,
tornam-se ineficazes, na medida em que, muitas vezes, a Administração decide em
sentido igual ao que tinha decidido anteriormente.
II.
O antigo e o
atual paradigma das garantias administrativas e da recorribilidade do ato
administrativo perante os tribunais
Uma parte da doutrina entende que para que se
possa recorrer de um determinado ato administrativo é necessário que ele
produza efeitos externos, que seja definitivo e executório, tal como afirma o
Professor Diogo Freitas do Amaral. Todavia, o Professor Vasco Pereira da Silva
entende que este entendimento de ato administrativo corresponde a uma
manifestação da Administração agressiva. Como tal, esta conceção de ato
administrativo deixou de vigorar a partir do momento em que surgiu a
Administração prestadora, isto é, a moderna Administração. Neste sentido, de
acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, a definição de ato
administrativo como sendo definitivo e executório corresponde, hoje, a um
“paradigma perdido do ato administrativo” [2], não sendo adequado para
caracterizar o paradigma atual.
Exigir que as garantias sejam exercidas antes
de recorrer ao tribunal, sob pena de não ser possível fazê-lo previamente,
representa, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, uma manifestação
dos “traumas de infância” do contencioso administrativo. De acordo com o
Professor, o argumento segundo o qual se defende que esta exigência de
exercício prévio constitui uma forma de facilitar a resolução de um litígio não
procede. Para além disso, é também defendido que não deve ser confundido o
acesso ao juiz com o acesso ao tribunal, razão pela qual esta exigência prévia
seria, supostamente, admissível. O Professor Vasco Pereira da Silva, como é
evidente, não concorda com esta fundamentação.
Deste modo, de acordo com o Professor, o
critério indicado para sabermos se determinado particular pode ou não recorrer
de um certo ato administrativo deve ser o da eficácia externa dos atos
administrativos. Como tal, basta que um ato afete ou lese direitos e interesses
legalmente protegidos dos particulares para que se possa recorrer dele perante
os tribunais. Este critério tornou-se ainda mais evidente a partir do momento
em que o artigo 268º/4 da CRP passou a garantir aos particulares o recurso
contencioso de quaisquer atos administrativos que lesem direitos e interesses
legalmente protegidos dos particulares. Para além disso, o nº5 da disposição
supra referida determina ainda que é garantido a todos os particulares o acesso
à justiça, pelo que, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, seria
totalmente inadmissível vedar este acesso através da exigência de exercício
prévio das garantias administrativas dos particulares. Esta disposição tem,
pois, uma função de “garantir a proteção efetiva e integral dos direitos dos
cidadãos perante a Administração”, o que se demonstra incompatível com a
exigência de recurso hierárquico necessário. É neste sentido que o Professor
Vasco Pereira da Silva afirma que a CRP abandonou totalmente as características
de definitividade e executoriedade do ato administrativo, passando a existir um
“modelo de contencioso de matriz subjetiva” [3].
Atualmente, o CPA consagra expressamente a existência de recursos hierárquicos necessários (artigos 189º e 190º), ainda que a regra geral, conforme consta no artigo 185º/2 do CPA seja a da facultatividade.
Atualmente, o CPA consagra expressamente a existência de recursos hierárquicos necessários (artigos 189º e 190º), ainda que a regra geral, conforme consta no artigo 185º/2 do CPA seja a da facultatividade.
III.
Diferentes
posições doutrinárias acerca da exigência de exercício prévio das garantias
administrativas
O Professor Vasco Pereira da Silva, por forma
a defender a sua posição relativamente à temática do exercício prévio das
garantias administrativas, invoca o artigo 268º/4 da Constituição da República
Portuguesa. À luz do disposto neste artigo, o Professor defendeu, antes da reforma,
a inconstitucionalidade da exigência do recurso hierárquico necessário. O facto
de a disposição supramencionada garantir uma tutela jurisdicional efetiva aos
particulares impede, pois, que estes possam simplesmente recorrer aos tribunais
sem que exerçam previamente as suas garantias administrativas. Como tal, de
acordo com o Professor, a regra de recurso hierárquico necessário era
inconstitucional porque violava o princípio constitucional da plenitude da
tutela dos direitos dos particulares (artigo 268º/4 CRP), o princípio
constitucional segundo o qual deve existir uma separação entre a Administração
e a justiça bem como o princípio constitucional da desconcentração
administrativa (artigo 267º/2) e, finalmente, o princípio da efetividade da
tutela, também consagrado no artigo 268º/4 da CRP. O Professor aponta ainda
para a importância de compreender que a exigência de recurso hierárquico prévio
estava apenas presente nos casos em que o ato administrativo era suscetível de
ser impugnado contenciosamente, não se verificando esta exigência nos restantes
casos (regime que resultava do artigo 167º/1 do antigo Código do Procedimento
Administrativo).
O Professor Vieira de Andrade, por sua vez,
sempre defendeu a não inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário.
Na sua obra Lições de Direito
Administrativo, o Professor invoca a jurisprudência do Tribunal
Constitucional por forma a comprovar que não há qualquer inconstitucionalidade
no que diz respeito à exigência de recurso hierárquico necessário prévio à
possibilidade de recorrer aos tribunais. Neste sentido, o Professor defende a
constitucionalidade desta exigência pelo facto de, segundo o Professor,
corresponder a um “mero condicionamento” ou apenas a uma mera “restrição
legítima” [4]. Como tal, estaria apenas em causa uma restrição ao direito de
acesso aos tribunais que, de acordo com o autor supra referido, seria
totalmente justificada e proporcional.
Também o Professor Paulo Otero se pronunciou
acerca desta questão. Segundo o Professor, é necessário atender à regra da
suspensão dos prazos por forma a tomar posição relativamente a esta questão. O
Professor refere a finalidade subjacente à necessidade de exercer previamente
as garantias administrativas, que é a de dar uma última hipótese à
Administração de, antes de intervir o poder judicial, aquele poder
“reconsiderar a validade do ato” [5], facilitando, inclusivamente, o trabalho
nos tribunais administrativos.
Atualmente, o Professor Vasco Pereira da Silva
entende que o novo CPA “afasta inequivocamente e definitivamente a necessidade
de recurso hierárquico, como pressuposto de impugnação contenciosa”. O
Professor afirma isto com base no facto de o CPA consagrar a possibilidade de
impugnação contenciosa de qualquer ato administrativo que seja suscetível de
lesar direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Para além
disso, o CPA consagra ainda a possibilidade de o particular, ainda que tenha
exercido as suas garantias previamente, poder impugnar contenciosamente, de
imediato, o ato administrativo. Por fim, o CPA consagra também a atribuição de
efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa. Através destas normas do
CPA, o Professor Vasco Pereira da Silva conclui que o CPA afasta, sem dúvida, a
regra do recurso hierárquico necessário, bem como outras garantias que fossem também
consideradas necessárias. Através da CRP foi instituído, segundo o Professor,
um regime que determina que o particular pode recorrer imediatamente à
apreciação contenciosa dos atos administrativos.
Todavia, existe uma parte da doutrina que faz
uma interpretação restritiva destas normas do regime jurídico do CPA. De acordo
com esta doutrina, defendida, nomeadamente, pelo Professor Mário Aroso de
Almeida, o regime jurídico do CPA deve ser interpretado restritivamente, isto
é, o CPA não tem alcance para revogar eventuais normas especiais que exijam o
recurso hierárquico necessário. Como tal, não obstante o regime jurídico do
CPA, essas normas manter-se-iam. O Professor Vasco Pereira da Silva, como é evidente,
discorda desta posição. De acordo com o Professor esta posição doutrinária não
é de adotar pelo facto de o artigo 268º/4 da CRP, ou seja, a admissibilidade de
acesso à justiça, prevalecer sobre as eventuais regras especiais bem como pelo
facto o Professor entender que as tais regras especiais não serem,
efetivamente, especiais. Importa explicar melhor este segundo argumento do
Professor. O caráter especial destas regras não se verificaria, na ótica do
Professor Vasco Pereira da Silva, pelo facto de estas regras serem, aquando da
existência da regra geral de recurso hierárquico, mera confirmação dessa regra,
não apresentando especialidade alguma. Para além disso, o Professor refere
ainda mais três argumentos por forma a refutar a posição doutrinária supramencionada.
Segundo o Professor, não se trata de um fenómeno de mera revogação das
eventuais regras especiais, mas sim de um caso de caducidade, isto é, a partir
do momento em que surge o regime jurídico do CPA, estas regras especiais
carecem de objeto, pelo que caducam. Seguidamente, o Professor afirma ainda
que, do ponto de vista constitucional, justificar a exigência de recurso
hierárquico necessário perante a concretização constitucional de que o acesso à
justiça é um direito fundamental, parece ser uma “missão impossível” [6].
Finalmente, o Professor Vasco Pereira da Silva, quando o CPA concretiza o
direito fundamental de acesso ao contencioso administrativo, estabelece que o
“mérito” deve prevalecer sobre as “formalidades”, o que implica que devem ser
evitadas “diligências inúteis” [7].
Assim, segundo o Professor Vasco Pereira da
Silva, a solução mais adequada seria a da revogação expressa de todas as
disposições que determinassem o recurso hierárquico necessário bem como a
generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias
administrativas, acompanhada de um eventual prazo para o exercício da faculdade
de impugnação administrativa pelos particulares que serviria somente para
aplicar o regime da suspensão automática da eficácia, até à decisão da garantia
administrativa [8].
Importa ainda referir que, de acordo com o
Professor supramencionado, o sistema ideal seria aquele que se assemelhasse aos
“tribunals” que existem no sistema
britânico, isto é, a existência de órgãos administrativos especiais que
garantissem a verdadeira eficácia das garantias administrativas. Estes órgãos
administrativos especiais permitiriam, pois, uma maior autonomia e
imparcialidade por parte dos decisores, permitindo também a criação de “novos e
específicos meios administrativos” [9]. O Professor conclui, portanto, tal como
referi anteriormente, que se deve entender que caducam todas as normas que
prevejam o recurso hierárquico necessário, pelo que se deve entender que o
exercício das garantias é sempre facultativo.
IV.
Conclusão
Em suma, a meu ver, a posição do Professor
Vasco Pereira da Silva parece-me a mais indicada. Não obstante ainda existirem
normas que preveem a exigência de recurso hierárquico necessário, à luz do
A.268º/4 da CRP, aquelas demonstram-se incompatíveis com este preceito
constitucional. A opção do legislador constituinte demonstra um claro
“alargamento da recorribilidade a todos os atos administrativos” [10] que lesem
direitos ou interesses legalmente protegidos. Uma vez que a CRP, desde a
revisão constitucional de 1989, determina este âmbito alargado da
recorribilidade dos atos administrativos, deve considerar-se, conforme
determina o Professor Vasco Pereira da Silva, que todas as normas anteriores e
posteriores a esta revisão se devem considerar caducadas por inconstitucionalidade
superveniente ou originariamente inconstitucionais, conforme a data em que
entraram em vigor.
V.
Bibliografia
SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2016;
ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições de Direito
Administrativo, 5ª edição, 2017;
OTERO, Paulo, Impugnações Administrativas in: Cadernos de Justiça Administrativa,
1996;
SILVA, Vasco
Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação Administrativa
Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias Contenciosas e
Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a Reforma do
Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005;
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2016;
CAUPERS, João,
Introdução ao Direito Administrativo,
Âncora Editora, 2003.
[1] - CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo,
Âncora Editora, 2003, p.240;
[2] – SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina,
2016, p. 631;
[3] – SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina,
2016, p.666;
[4] – ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições
de Direito Administrativo, 5ª edição, 2017, p.245;
[5] – OTERO, Paulo, Impugnações Administrativas in: Cadernos de Justiça Administrativa,
1996, p. 52;
[6] – SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação
Administrativa Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias
Contenciosas e Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a
Reforma do Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005, p.23;
[7] - SILVA,
Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos
Atos Administrativos na Ação Administrativa Especial. A Metamorfose do
Relacionamento entre Garantias Contenciosas e Administrativas no Novo Processo
Administrativo: Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, AAFDL,
Lisboa, 2005, p.27;
[8] – SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação
Administrativa Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias
Contenciosas e Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a
Reforma do Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005, p.26;
[9] – SILVA, Vasco Pereira da, Da Impugnabilidade dos Atos Administrativos na Ação Administrativa
Especial. A Metamorfose do Relacionamento entre Garantias Contenciosas e
Administrativas no Novo Processo Administrativo: Estudos sobre a Reforma do
Processo Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2005, p.25;
[10] – SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina,
2016, p.674.
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