A problemática da conceção do procedimento no CPA



O legislador encara o procedimento como “uma sucessão ordenada de atos e formalidades relativos à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da Administração Pública” artigo 1º/1 CPA. No entanto, é relevante salientar que só a partir dos anos 70 é que o procedimento adquire uma dimensão, deixando de considerar-se apenas a decisão e passando a importar a formação da mesma. Segundo VASCO PEREIRA DA SILVA[1], a noção de procedimento que consta no artigo advém da enunciada por ALDO SANDULLI de «sucessão coordenada de atos pré ordenados a um fim unitário», apesar do legislador a ter adaptado, esta noção já era criticada em 1991, por isso, ser enunciada em 2015 transmite uma ideia ultrapassada do procedimento administrativo. Considera, ainda, que o legislador não era obrigado a dá-la, uma vez que não obriga a doutrina e não tem consequências só por si, as definições servem apenas para auxiliar a interpretação. O Professor refere as quatro principais construções, numa breve referência:


  •      As posições negativistas que não atribuem qualquer relevância ao procedimento administrativo, só importava a decisão final, isto é o ato administrativo, e o controlo realizado pela justiça. Tratando-se de uma ótica contenciosa para a qual só importava a forma, o que é duvidoso para a importância que a forma possui para a decisão tomada, existindo assim uma confusão entre forma e procedimento. Como é perceptível é uma visão obsoleta. 
  •      As construções monistas (Alternatividade do procedimento em relação ao processo) defendidas em Portugal pelo Professor MARCELLO CAETANO que considerava que a administração era principalmente uma atividade processual. Na qual o procedimento está subordinado ao processo e equipara o ato administrativo às sentenças. Atualmente, é percetível a sua incompatibilidade com a separação de poderes entre a administração e justiça, sendo o “trauma do administrador-juiz”. Criticando, VASCO PEREIRA DA SILVA, salienta que cada função tem o seu próprio procedimento, não se podendo confundir a função jurisdicional com a função administrativa. 
  •     As posições que através de uma visão funcional consideram que o procedimento possui uma autonomia limitada face à atuação final da administração. É a posição que consta no CPA 2015, onde o procedimento possui uma autonomia relativa, em que por um lado o procedimento é estruturado como autónomo e distinto do contencioso. Contudo, por outro lado, estrutura-o como uma realidade funcional submetida às formas de atuar da administração. Salienta-se SANDULLI, onde o legislador se inspirou,  que vê o procedimento administrativo como “fenómeno autónomo, estruturalmente distinto, quer do processo contencioso, quer das figuras substantivas a que dá origem», por outro lado, como uma «realidade funcionalmente subordinada e serviente em relação às formas de atuação da Administração, máxime ao ato administrativo”[2], permanecendo deste modo subordinado e não autonomizado. Deste modo, no relevante o procedimento é desconsiderado se se alcançar uma solução materialmente boa;
  •      Por último, a conceção mais moderna que autonomiza o procedimento, é assim, uma realidade com importância jurídica própria. Possuindo multifunções quer “para a legitimação das decisões administrativas, para a criação de racionalidade no funcionamento da Administração, para a composição de interesses antagónicos (sejam públicos sejam privados), e para a proteção jurídica (preventiva) dos particulares face à Administração.”[3] É de referir que atualmente a maioria da doutrina moderna pertencente à europa defende este entendimento. O procedimento é estruturado autonomamente e não simplesmente em função do fim. Sendo nesta conceção que se enquadra VASCO PEREIRA DA SILVA para o qual o procedimento engloba uma multifuncionalidade, possuindo valor próprio. Deste modo, engloba: a função legitimadora da atuação administrativa; a função racionalizadora da decisão adotada; a função de determinar o interesse público, pela comparação do interesse publico face ao privado; e a função de tutelar os particulares, pois, podem intervir quando considerem que os seus interesses vão ser lesados.
A visão adotada pelo legislador português, encontra-se ultrapassada pela abrangência que hoje o direito administrativo possui. O procedimento não pode ser visto como uma mera forma de se produzir um ato administrativo[4].
O procedimento administrativo é entendido, conforme demonstra Viera de Andrade[5], com o objetivo de garantir a participação e os interesses, tal como a eficiência de tarefas complexas; de modo, a que se alcance a produção de atos administrativos. Referindo-me apenas ao procedimento do ato no CPA, este é visto como o procedimento-tipo, enquanto o regulamentar e contratual como um procedimento especial. Salienta-se que o procedimento que tem como objetivo preparar um ato administrativo pode distinguir-se entre procedimento de primeiro grau e de segundo grau, sendo este último um garante para os particulares.  
O procedimento-tipo, segundo VIEIRA DE ANDRADE[6] :

  •      A fase preparatória integra os atos preparatórios típicos que só irão produzir efeitos externos com o ato principal. O ato principal será válido se na preparação a iniciativa(102º) partir de quem possui legitimidade(68º), distinguindo-se entre procedimentos oficiosos públicos e não oficiosos (quando se deva a propostas, requisições e pedidos). De seguida, se a instrução (115º a 120º) integrar os atos que relevam para produzir uma situação jurídica. Inclui-se as diligências probatórias (116º a 120º) e as consultivas (91º e 92º), tal como as provas e alegações. A direção desta fase da instrução decorre do princípio inquisitório(58º) e da adequação procedimental (56º) devendo ser realizadas por um órgão hierárquico inferior através da delegação de poder pelo órgão competente para a decisão final(55º).
  •     A audiência dos interessados, ocorre entre a fase preparatória e a fase constitutiva, procura efetivar a participação dos interessados na formação da decisão administrativa, exceto quando se torne impraticável ou ocorra alguma das situações definidas no artigo 124º.
  •     A fase constitutiva, produz o ato principal se o órgão competente for colegial é necessário executar um procedimento interno (23º a 35º) para que se alcance a vontade colegial. Assume uma importância fulcral pois é onde se considera válido ou inválido o ato, tal como onde se torna finalizado e apto para produzir os efeitos.
  •     A fase integrativa, na qual o ato já está pronto, mas para que os efeitos possuam eficácia é necessário a satisfação de outros fatores. Os atos integrativos de eficácia visam meramente libertar os efeitos típicos através da remoção dos obstáculos. Sendo as comunicações obrigatórias, erigem-se como condições de oponibilidade dos efeitos, não como condições de eficácia do ato, pois visa especialmente a segurança jurídica e a proteção dos particulares. No entanto, a publicação condiciona a eficácia do ato artigo 158º/2.
A função do procedimento administrativo é validar a decisão da administração pública ao subordiná-la ao direito e ajudando a identificar os factos relevantes para decisão e ponderação dos interesses públicos e privados. Permitindo, deste modo, a participação dos particulares nas decisões que lhe digam respeito e assegurando a previsibilidade e segurança jurídica.[7]
Considera, no entanto, o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA que a consequência da violação do procedimento que o CPA estabelece é iníqua pois se não se tratar de um problema de atuação e se não afetar a decisão final, não deve ser inválida. Demonstrando que apesar da importância que o procedimento possui, “o que conta é a bondade da decisão”[8]. Evidenciando que o legislador se preocupa mais com questões de natureza substantiva do que com o procedimento. Salienta-se o artigo:
“Artigo 163.º
Atos anuláveis e regime da anulabilidade
(…)
5 - Não se produz o efeito anulatório quando:
a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.”
                Na base desta norma, encontra-se a visão subordinada do procedimento que o legislador alemão adotou. Na qual a falha no procedimento não implica nulidade do ato desde que a decisão administrativa seja materialmente válida, só comprometerá caso as falhas sejam determinantes para a decisão[9]. É possível questionar-se, então qual o objetivo do procedimento? Se uma decisão é legal mesmo omitindo uma exigência procedimental e se considera que o conteúdo do ato seria idêntico se todas as etapas do procedimento estivessem cumpridas? É certo que em situações excecionais a audiência dos interessados pode ser afastada, mas esta dispensa é prevista pelo legislador no artigo 124º. Relativamente a este ponto tem a jurisprudência entendido que a audiência prévia dos interessados( art.121 e ss) que se pode extrair do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de dezembro de 2018[10] quando não observada corresponde a uma infração e invalidade do ato arts. 267.º, n.º 5, da CRP, 12.º e 121.º do CPA.
29. Com efeito, a prática de um ato administrativo como o que se mostra impugnado nos autos [declaração de interesse público das grandes instalações petrolíferas existentes], com o decorrente impacto na situação jurídica dos bens detidos e pertencentes à A. tal como previsto no art. 24.º do DL n.º 31/2006, estava, em decorrência da necessidade de observância do princípio da participação por parte dos órgãos da Administração Pública [cfr. arts. 267.º, n.º 5 da CRP, e 12.º do CPA], sujeita ao dever de audiência tal como imposto pelo art. 121.º do CPA e ao mesmo devia obediência e estrita observância.
30. À A. não foi permitida a apresentação da defesa no procedimento de formação da decisão que a viria a afetar, como afetou, na sua esfera jurídica e que, por isso e nessa medida, lhe dizia diretamente respeito, não tendo, assim, emitido pronúncia sobre todas as questões [de facto e de direito] com interesse para aquela decisão, bem como não pode requerer as diligências complementares e/ou juntar os documentos tidos por pertinentes ou como necessários.
31. Ora, como se extrai da factualidade apurada nos autos [cfr., em especial, seus n.ºs VII) e IX)], essa participação por parte da A. no procedimento não teve lugar, mostrando-se, assim, infringido o disposto nos arts. 12.º e 121.º do CPA, na certeza de que, concretamente, nada na situação vertente dispensava a realização da audiência prévia tal como previsto no n.º 1 do art. 124.º do mesmo Código, dispensa essa que, aliás, não foi sequer alegada e muito menos resulta demonstrada a sua possibilidade de ocorrência in casu.”[11]
                Contudo, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16 de janeiro de 2018[12] demonstra, claramente, o que se pretende salientar; o artigo 163º/5 faculta a possibilidade de se omitir regras procedimentais sem que se incorra em invalidade, nomeadamente, pela aplicação conjugadamente do princípio do aproveitamento do ato. No acórdão recordam o acórdão do STA de 25.06.2015, proc. n.º 1391/14 em que assumem idêntica posição demonstrando, que apesar do princípio do aproveitamento do ato não possuir nenhum suporte legal, a doutrina e jurisprudência entendem o seguinte:
 “(…) que não se justifica a anulação de um acto administrativo que foi praticado no exercício de poderes vinculados e está de acordo com os pressupostos fixados na lei –, nos termos do qual se admite que a falta de audiência dos interessados, quando obrigatória, possa não conduzir à anulação do acto final do procedimento (in casu a liquidação adicional de IS), anulação que é a sua consequência, de acordo com o previsto no n.º 1 do art. 163.º do Código do Procedimento Administrativo («São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção».).
Concluindo, que (…) embora se admita que o acto padece de algum vício – como ocorre no caso presente -, outra decisão não poderia ser tomada pela Administração. (…) subsistem fundamentos bastantes para suportar a validade do acto quanto à sua conformidade substancial (como se viu anteriormente, não ocorre fundamento para a exclusão da proposta da Contra-interessada), não se antevendo qualquer possibilidade de alteração do seu sentido decisório.”[13]
                Alcança-se, deste modo, a problemática que o Professor alude. A jurisprudência tem corroborado a posição do legislador do CPA ao considerar que desde que a  materialidade/substancialidade do ato esteja conforme, não existe razão para que este incorra em ilegalidade. 

Bibliografia:

ANDRADE- JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, Lições de Direito Administrativo, dezembro 2017, Imprensa Universidade de Coimbra

SILVA- VASCO PEREIRA DA, “Breve Crónica De Um Legislador Do Procedimento Que Parece Não Gostar Muito De Procedimento”

SOUSA- MARCELO REBELO DE e MATOS- ANDRÉ SALGADO DE, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Actividade administrativa, 1ª edição, fevereiro 2007, Publicações Dom Quixote

Powerpoint facultado pelo Professor Jorge Pação “CPA e responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas”- Workshop: Um ano de jurisprudência administrativa em duas tardes

Aulas teóricas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa lecionadas pelo professor Vasco Pereira da Silva.

Jurisprudência:

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo 572/17.0 BELRA de 16-01-2018 in: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/44e68b9e666f64a08025822500443faf?OpenDocument&Highlight=0,CPA:





[1]Breve Crónica De Um Legislador Do Procedimento Que Parece Não Gostar Muito De Procedimento” VASCO PEREIRA DA SILVA
[2]Breve Crónica De Um Legislador Do Procedimento Que Parece Não Gostar Muito De Procedimento” VASCO PEREIRA DA SILVA p. 3
[3]Breve Crónica De Um Legislador Do Procedimento Que Parece Não Gostar Muito De Procedimento” VASCO PEREIRA DA SILVA p.4
[4]Breve Crónica De Um Legislador Do Procedimento Que Parece Não Gostar Muito De Procedimento” VASCO PEREIRA DA SILVA p.6
[6] Lições de Direito Administrativo, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, dezembro 2017, Imprensa Universidade de Coimbra p188
[8]  “Breve Crónica De Um Legislador Do Procedimento Que Parece Não Gostar Muito De Procedimento” VASCO PEREIRA DA SILVA p.6
[9]  “Breve Crónica De Um Legislador Do Procedimento Que Parece Não Gostar Muito De Procedimento” VASCO PEREIRA DA SILVA
[12] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo 572/17.0 BELRA de 16-01-2018 in: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/44e68b9e666f64a08025822500443faf?OpenDocument&Highlight=0,CPA:
[13] Acórdão do TCA Sul de 16 de janeiro de 2018


Maria Ana Pires
Subturma 17 2ºB
Nº58526



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