A má fundamentação do ato administrativo e quais as suas consequências


A má fundamentação do ato administrativo e quais as suas consequências


Com a presente análise se visa abordar a figura da falta de dever de fundamentação (com especial destaque para a falta relativa de fundamentação) bem como as suas consequências ao nível da impugnabilidade do ato praticado com tal vício.

A fundamentação: formalidade essencial e dever da Administração

A fundamentação surge como formalidade essencial associada ao ato jurídico da Administração e à fase constitutiva do procedimento através da qual o órgão administrativo competente para dirigir o procedimento de determinado ato apresenta as razões que a levaram a optar pela decisão num determinado sentido, em preterição de outros sentidos possíveis. Ou seja, a fundamentação (ou pelo menos a boa fundamentação, como veremos adiante) deve responder de forma satisfatória à seguinte pergunta:
Quais as razões de facto e de Direito que levaram a que a Administração adotasse, na decisão em causa, determinado sentido decisório?
Nos termos do art. 153º/1 CPA, exige-se que a resposta dada a esta pergunta seja expressa, e sucinta – até porque o caráter excessivamente parafrástico de uma fundamentação pode colocar em causa a sua eficácia expositiva.
Surge então um dever de fundamentação, uma posição jurídica passiva atribuída à Administração Pública pela ordem jurídica – desde já através da própria Lei, tendo em conta o art. 152º/1 do CPA – que lhe impõe a obrigação de fundamentar os atos praticados, salvaguardadas as situações de dispensa de fundamentação referidas no número 2 daquele mesmo artigo.
No entanto, como todo o dever jurídico, é ontologicamente possível uma atuação violadora do mesmo. No caso específico do dever de fundamentação tal se enquadra na figura da falta de fundamentação do ato administrativo, que admite duas possibilidades: falta absoluta e falta relativa.
Sem prejuízo de retornar à análise do dever de fundamentação (e do direito que eventualmente lhe corresponda), que assumirá particular relevância quando se expuser a controvérsia doutrinária a propósito da invalidade do ato assim praticado, importa agora estudar as situações em que a fundamentação não existe de todo, e aquelas em que, existindo factualmente, estamos perante uma má fundamentação.

Falta do dever de fundamentação: a fundamentação inexistente e a má fundamentação

Falta absoluta

Diz-se que há falta absoluta quando inexiste, no plano dos factos, uma apresentação por parte da Administração das razões que a levaram a praticar determinado ato administrativo – existe um total silêncio em relação à pergunta que referíamos no ponto anterior da análise.

Falta relativa

Diferente é a falta relativa do dever de fundamentação: caso em que temos uma fundamentação...que não fundamenta.
Esta falta relativa verifica-se quando a Administração respondeu de facto à pergunta que já foi referida, mas fê-lo de forma insatisfatória: quer por razões de insuficiência da fundamentação (não fundamentando totalmente a decisão), contradição (por conflito entre os diferentes argumentos invocados pela Administração, ou entre estes e o sentido decisório escolhido) ou obscuridade da mesma (estando mal explicada a relação entre os argumentos invocados e a decisão realizada). Para efeitos de aplicação do CPA, o próprio Legislador equipara, no n.º 2 do art. 153º, a falta relativa à falta absoluta.
É legítimo suscitar a seguinte questão: A que critérios vai o decisor recorrer para avaliar a suficiência, coerência ou clareza da fundamentação de determinado ato administrativo?”
A Doutrina e a Jurisprudência têm vindo a preencher estes conceitos através do critério conhecido como bonus pater familias ou do homem médio, que consta por exemplo do Código Civil, e pode ser encontrado no art. 487º/2 para aferir a culpa do lesante, ou no art. 236º/1 para efeitos de interpretação da declaração negocial. Significa isso que se chegarmos à conclusão de que a fundamentação teria sido considerada satisfatória pelo homem médio colocado na situação do seu real destinatário, não devemos concluir pela existência de uma falta do dever de fundamentação.

Consequência da falta absoluta ou relativa – a natureza jus-fundamental da fundamentação?

Quando se verifique falta do dever de fundamentação (quer absoluta quer relativa, devido à equiparação de efeitos de ambas [art. 153º/2 CPA]), deve o ato praticado ser considerado inválido. No entanto surge divergência doutrinária quanto à sua recondução à anulabilidade (por força do art. 163º/1 CPA) ou à nulidade (por violação do art. 161º/2/d)).
A matéria controvertida prende-se principalmente com a classificação do direito à fundamentação.

Duas teorias opostas

Vasco PEREIRA DA SILVA, em sede de aula teórica, defende intensamente a natureza jus-fundamental do direito à fundamentação enquanto direito fundamental de terceira geração (terceira geração caraterística da Administração pós-social), invocando o art. 267º/3 da CRP.


Diogo FREITAS DO AMARAL afirma, numa corrente que é francamente maioritária no Direito Administrativo português, que não obstante a importante função do direito à fundamentação enquanto garantia política do particular, este não se inclui no núcleo de direitos fundamentais (categoria que está mais relacionada com a proteção de situações jurídicas ativas relativas ao direito à Vida e à Dignidade Humana).

Teorias intermédias

Entre estas duas conceções opostas do direito de fundamentação, encontramos ainda correntes intermédias.
Uma delas, reconhecendo o caráter fundamental deste direito previsto no art. 268º/3 CRP, à semelhança de Vasco PEREIRA DA SILVA, considera que apenas o ato não-fundamentado será nulo, por considerar que somente nesse caso haverá violação do conteúdo essencial do direito de fundamentação. Esta linha de pensamento associa por isso, a mera anulabilidade ao ato mal-fundamentado.
Também o Tribunal Constitucional, como exposto nas aulas práticas, tem vindo a tomar posição quanto a este tema, entendendo que a violação do art. 268º/3 CRP acarreta consequentemente uma violação do direito fundamental de acesso ao Direito, do qual dispõe o particular (art. 20º CRP). Parece resultar desta teoria que o ato praticado em violação é nulo, não diretamente por violação do direito de fundamentação (que não seria um direito fundamental para o TC) mas sim por violação consequente do próprio direito de acesso ao Direito – este sim de natureza indiscutivelmente fundamental para o TC.

Opinião sobre as teorias expostas

Expostas as principais teorias sobre a consequência invalidante do desrespeito pelo dever de fundamentação, expõe-se agora um ponto de vista próprio sobre as mesmas.
Com o devido respeito pela teoria de FREITAS DO AMARAL, entendo que alguns dos argumentos que utiliza para concluir pela anulabilidade do ato podem-nos levar à conclusão contrária.
Refere este Autor que o direito à fundamentação é uma garantia política do particular e não um direito fundamental, porque entende que os direitos fundamentais são o direito à Vida Humana, o direito à Dignidade da pessoa humana, e outros intimamente ligados a estes.
Discordo do Autor neste ponto. Existem direitos cuja natureza jus-fundamental resulta explicitamente da Constituição e que não se confundem com o direito à Vida Humana ou à Dignidade da pessoa. É, por exemplo, o caso do direito de acesso ao Direito, que se encontra previsto na Parte I da CRP, cujo título é precisamente “direitos e deveres fundamentais”. Assim se compreende que nem todos os direitos fundamentais têm de estar diretamente ligados àquela conceção limitadora apresentada pelo Autor (de considerar que os direitos fundamentais se confundem de certa forma com o direito à Vida ou à Dignidade da pessoa humana).
Por outro lado, quando se considera que o direito de fundamentação é apenas uma garantia política, podemos contrapor o seguinte: o que são os direitos fundamentais senão garantias políticas do particular contra o Estado?
Concluo por isso que os argumentos apresentados por este Autor levam a concluir pela jus-fundamentalidade do direito à fundamentação, e a consequente nulidade do ato praticado em violação deste direito. Assim, concordo em grande medida com a teoria exposta por PEREIRA DA SILVA.
Por outro lado, a teoria pugnada pelo TC fornece um dado importante que podemos usar em reforço da nulidade do ato em questão: o nexo entre o dever de fundamentação e o direito de acesso aos meios judiciais dos particulares.
De facto, uma fundamentação ausente ou que não fundamente o sentido decisório que visava justificar obsta a que o particular possa, de forma eficaz, combater o ato administrativo em questão. Esta violação do direito de acesso ao Direito vem por isso, a meu ver, cumula como outro fundamento de nulidade do ato, a par do fundamento de violação do direito fundamental à fundamentação.
Por fim, quanto à teoria intermédia que diferencia os efeitos consoante a falta de fundamentação seja relativa ou absoluta, dificilmente se coadunará com o art. 153º/2 CPA que equipara a falta relativa de fundamentação relativa à falta absoluta, razão pela qual discordo da mesma.



César Guedes de Andrade


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