A (in)existência da inexistência jurídica enquanto patologia do ato administrativo? Uma análise da dissonância entre CPA e CPTA

A (in)existência da inexistência jurídica enquanto patologia do ato administrativo? Uma análise da dissonância entre CPA e CPTA


Neste artigo sobre a inexistência jurídica do ato administrativo será realizada uma análise teórica da figura, dos seus efeitos em relação ao ato por ela impactado e uma comparação entre a relevância jurídica que ela assumia antes de 2015 (ano de revisão do Código de Procedimento Administrativo e do Código de Processo dos Tribunais Administrativos) e a que assume atualmente.

Mais precisamente, pretende-se averiguar se a referida revisão, apagando as referências explícitas a esta figura no CPA, veio tornar factualmente inexistente a patologia do ato administrativo conhecida como inexistência jurídica.

Recorte dogmático da figura

Antes da revisão do CPA realizada em 2015, afirmava Marcelo REBELO DE SOUSA que a inexistência jurídica ocorre quando, numa pretensa atuação da Administração não se encontram reunidos os requisitos cumulativos essenciais que permitem, minimamente, identificá-la enquanto tal. Esse juízo de identificabilidade é realizado mediante a análise das caraterísticas concretas da atuação em causa.

O Autor dá o exemplo dos requisitos de existência jurídica do ato administrativo em sentido estrito: a ocorrência de uma decisão; o seu caráter individual e concreto; e a sua emanação por parte de um órgão pertencente à Administração no exercício da função administrativa. Uma atuação factual a que faltem estes elementos cruciais será, à luz do Direito Administrativo, inexistente enquanto ato administrativo em sentido estrito. Tratar-se-á de uma mera aparência de ato.

Partindo deste exemplo o Autor refere ainda a possibilidade de existência enquanto ato de qualificação diversa da que lhe seria correspondente.

O ato emanado de um Tribunal que pretenda passar-se por ato administrativo inexistirá enquanto ato administrativo (devido à sua emanação por parte de um órgão no exercício da função judicial). Poderá porventura existir enquanto sentença, ainda que ilegal.

Contraste em relação a outras figuras

Para enriquecer esta noção de inexistência jurídica, podemos agora evidenciar as diferenças entre esta e outras realidades com as quais ela não deve ser confundida: a inexistência ontológica, a invalidade, a irregularidade e a ineficácia.


Desde já se salienta a crucial distinção entre a figura em apreço e a inexistência ontológica, que é a falta de existência ou a ausência de algo no plano dos factos, no plano do ser – diferente, por isso, da inexistência jurídica, que é uma consequência imposta pelo ordenamento ao ato em relação ao qual faltam certos requisitos jurídicos considerados essenciais.
Exemplificando, imaginemos que um órgão administrativo pratica determinado ato que, por negar o direito de um particular, se encontra sujeito ao dever de fundamentação (por aplicação do art. 152º/1/a) CPA). Ao praticá-lo, o órgão omite toda e qualquer apresentação das razões de facto e de Direito que o levaram a optar pelo sentido decisório escolhido. A fundamentação que lhe era exigida é, neste caso, ontologicamente inexistente: existe um vazio em relação à fundamentação (ou em terminologia jus-administrativista, há falta absoluta do dever de fundamentação).


Importa igualmente distinguir a inexistência jurídica das categorias de desvalor do ato administrativo – que inclui as figuras da invalidade, ineficácia ou irregularidade do ato.
Em geral dir-se-á que a diferença de fundo é esta: o ato inexistente é na verdade uma mera “aparência”, uma ténue cortina de fumo atrás da qual nada há. Assim sendo, enquanto inexistentes e enquanto meras aparências que são, estes “atos” não são, como refere Marcelo REBELO DE SOUSA, suscetíveis de uma avaliação enquanto valiosos ou desvaliosos. E por isso se distingue a inexistência jurídica das seguintes figuras:


É inválido o ato administrativo que, de forma intrínseca (isto é, por razões que lhe são imanentes, inerentes), se revela inapto para a produção dos efeitos visados, por desconformidade desse mesmo ato para com o bloco de legalidade que vincula a atuação da Administração (ou, como refere o Regente Vasco PEREIRA DA SILVA, desconformidade em relação aos vários níveis de juridicidade que são impostos à atuação administrativa). Um exemplo de invalidade é a anulabilidade associada ao ato praticado por órgão incompetente (nos termos do art. 163º/1 do Código).

O ato irregular é aquele que manifesta intrinsecamente uma desconformidade pouco gravosa em relação à juridicidade que vincula a Administração – desconformidade essa que em função da sua reduzida gravidade vai impactar de forma mínima a produção de efeitos do ato. A irregularidade é por isso uma forma particularmente atenuada de ilegalidade do ato administrativo (por oposição à outra forma possível de ilegalidade, a já referida invalidade), e apenas se verifica em casos muito específicos de atos com vício formal ou de competência. Por essa razão um ato administrativo que padeça de vício material será, prima facie, inválido e não apenas irregular.

Ineficaz é o ato que, por circunstâncias que lhe são externas, não produzirá os efeitos visados: na maioria das vezes devido à ausência de uma exigência relativa a momento posterior à prática do ato. É o caso da não-verificação da condição suspensiva que difere a eficácia de certo ato (art. 157º/b)).

A inexistência no Direito Administrativo substantivo e adjetivo antes de 2015 (CPA 1991 e CPTA 2002)

A diferenciação realizada, para além de trazer maior clareza conceptual, reforça a seguinte ideia: a inexistência jurídica é concebida como consequência de uma patologia extremamente gravosa na atuação da Administração.
Também por essa reforçada gravidade, mesmo na versão anterior do CPA (Decreto-lei n.º 442/91), no qual se previa de forma explícita esta figura, era notório que a sua aplicação ocorria apenas em casos muito específicos e raros – o que de todo não significa que fosse desprovida de importância.
Se por um lado não havia uma disposição que estabelecesse um regime específico nem as situações em que ela se verificava (como se verificava com os art. 133º e 134º do antigo diploma em relação à nulidade ou com os art. 135º e 136º em relação à anulabilidade), por outro lado se realça que as suas consequências são ainda mais penalizadoras do que a invalidade do ato (não obstante a proximidade em relação ao regime da nulidade).

CPA

No antigo CPA, os art. 137º/1 e 139º/1/a) mencionavam expressamente os atos inexistentes, que, tal como os atos nulos, se encontravam excluídos tanto do núcleo de atos suscetíveis de ratificação, reforma e conversão como do núcleo de atos revogáveis.
A propósito, bem se compreende a referência feita por estes artigos: não faria sentido que algo que não é reconhecido como juridicamente existente fosse suscetível de sanação, convalidação ou revogação.
Referem-se ainda consequências como a ausência de prazo para pedido de declaração de inexistência, bem como a ausência de caso julgado das decisões judiciais que apliquem atos inexistentes.
Segundo o entendimento exposto por Marcelo REBELO DE SOUSA, referido no início desta análise, considerava-se que eram requisitos de existência da atuação administrativa, por exemplo, a indicação do seu autor ou do seu destinatário, o seu conteúdo, sentido decisório e objeto (exigências essas que eram referidas nas alíneas a), b) e e) do art. 123º/1). A ausência de tais elementos acarretaria portanto a inexistência jurídica da (aparência) de atuação administrativa em causa.

CPTA

Também o antigo Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos (Lei n.º 15/2002) continha diversas normas aplicáveis à declaração de inexistência do ato administrativo, entre as quais:
  • o art. 2º/2/a) que previa a obtenção junto dos tribunais administrativos da declaração de inexistência de atos administrativos como forma de tutela jurisdicional efetiva dos direitos do particular;
  • o art. 4º/2/a) que previa a possibilidade de cumular pedido de declaração de inexistência de ato com o pedido de restabelecimento da situação que se verificaria caso não tivesse sido praticado o ato inexistente;
  • o art. 39º/1 que reconhecia o interesse processual dos sujeitos que invocassem benefício próprio do facto de o Tribunal Administrativo apreciar a inexistência do atos
  • o art. 79º/3/b) que exige ao Autor do Processo que demonstre através de prova documental a aparência do ato cuja inexistência pretende ver declarada
Vemos por isso que havia uma sincronia entre Código de Procedimento e Código de Processo dos Tribunais. Tanto um como outro previam, de forma expressa e indicutível, a categoria dos atos juridicamente inexistentes, que para além de consequências procedimentais, tinha consequências a nível processual.

No entanto esta sinergia entre Códigos mudaria de forma brusca em 2015, ano em que ambos os diplomas normativos foram estruturalmente revistos.


Dissonância normativa

O CPA, revisto pelo DL 4/2015 de 07 de janeiro, deixou de fazer menção expressa à inexistência jurídica. A figura, que havia figurado no Código de Procedimento durante cerca de 14 anos como que evaporou do texto normativo. Os artigos 164º e 166º do novo diploma, correspondentes aos vetustos 137º e 139º do CPA de 1991, omitem agora toda e qualquer referência ao ato inexistente.

Poder-se-ia dizer então que este repentino abandono das menções expressas à inexistência jurídica no CPA ditava assim, a partir de 2015 a inexistência de facto, ontológica da figura da inexistência jurídica do ato administrativo? Teria esta figura morrido de forma silenciosa?

A resposta é negativa, e para o descobrir basta ler a nova versão do CPTA, trazida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 de 02 de outubro. Constata-se que foram mantidas as referências expressas ao ato inexistente e à declaração de inexistência do ato administrativo – os artigos da antiga versão do CPTA que foram referidos nesta análise (2º/2/a); 4º/2/a); 39º/1; 79º/3/b)) não só mantêm a sua numeração como preservam as mesmas referências aos atos inexistentes, que datam de 2002 (ano da feitura da versão anterior do CPTA).


Esta redação do CPTA, apenas 9 meses posterior à revisão do CPA (que remeteu para o silêncio no que diz respeito a menções expressas sobre o ato inexistente), força-nos a voltar à letra do CPA para tentar resgatar elementos que, de forma coerente com o que continua a afirmar o CPTA, nos permita dizer que os atos inexistentes não desapareceram do ordenamento jurídico português.

Voltando ao texto normativo do CPA, regista-se de facto que os “requisitos de existência” que ocupavam o antigo art. 123º/1 sobreviveram à revisão, tendo apenas sido alterado o número do artigo do qual constam, que é agora o art. 151º/1 (com as mesmas alíneas, a), b) e e)).

Assim sendo, apesar da confusão provocada pela brusca eliminação de previsão expressa da inexistência no Código de Procedimento, e da dissonância entre o carácter implícito da referência feita neste Código e o caráter inequívoco e explícito das referências encontradas no Código de Processo, resta concluir que a inexistência jurídica continua a assumir existência no nosso ordenamento, tendo consequências processuais importantes que impedem que se descure esta figura do Direito Administrativo português.



César Guedes de Andrade

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