A Ilegalidade por vício de forma e o estado de necessidade administrativo
Entre todos os moldes de ilegalidade em que a Administração “pode” incorrer, será o vício de forma o mais facilmente sanável ou cujos efeitos serão menos ponderosos. Por vício de forma tanto se tem a preterição de formalidades parte do procedimento como a inobservância da forma que a lei exige para um determinado acto. As formalidades correspondem aos “trâmites que a lei manda observar com vista a garantir a correta formação da decisão administrativa ou o respeito pelas posições jurídicas subjetivas dos particulares” – aqui, tanto se inclui, por exemplo, o dever de fundamentação dos actos pela Administração face aos particulares como o dever de notificação daquela a estes, sobre os actos que surtam efeitos externos ou lhes sejam dignos de interesse. A forma não tem outro significado se não aquele transversal ao Direito e é, à luz do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo, a exigência [genérica] da prática por escrito dos actos administrativos, exceção para aqueles emanados de órgãos colegiais.
Ainda assim, nem sempre que Administração falha ao observar uma formalidade que lhe é exigida estamos perante um vício de forma , quando o que se pretende aferir é a legalidade ou validade de um acto. Constitui um vício de forma a preterição por uma formalidade essencial anterior à prática do acto, como a falta de audiência prévia dos interessados; também o é a preterição de formalidades relativas à prática do acto ou decorrentes no procedimento; ainda, quando o acto é praticado por despacho e a lei lhe exige a forma de decreto. Já não estaremos perante uma ilegalidade, nem estará em causa a validade do acto, quando a inobservância da formalidade se dá depois de o acto ter sido praticado. É o sequência que muitas vezes se encontra entre validade e eficácia, ou invalidade e ineficácia. A validade diz respeito à génese e formação do acto, a eficácia diz respeito à sua capacidade de produzir os efeitos desejados. Assim, e pegando nos exemplos acima dados quanto às formalidades, será causa de invalidade por ilegalidade a falta de fundamento do acto, porque se trata de uma exigência anterior à sua criação, mas já não o será a falta de notificação do particular visado pelo acto: aqui, trata-se, sim, de ineficácia.
Quanto a estes últimos, parece resultar dos artigos 155.º e 160.º do CPA que somente os actos que “imponham deveres, encargos, ónus, sujeições ou sanções, que causem prejuízos ou restrinjam direitos ou interesses legalmente protegidos, ou afetem as condições do seu exercício” carecem de eficácia caso não sejam notificados aos destinatários, mormente os particulares, apesar de o artigo 114.º estabelecer o dever de notificar os destinatários sobre quaisquer actos que criem efeitos, positivos ou negativos, na esfera destes. De facto, faria todo o sentido que também os actos que “aumentem [...] direitos ou interesses legalmente protegidos, ou afetem as condições do seu exercício” necessitassem de ser notificados para que fossem eficazes. Como poderá o destinatário usufruir de um acto positivo se este não lhe for notificado, ou como poderá sequer saber que certa situação, eventualmente vantajosa, se criou na sua esfera? Estamos aqui perante uma lacuna, no sentido de que se a lógica nos leva a uma interpretação extensiva do artigo 160.º, a lei apenas refere os actos que produzam efeitos externos negativos como carentes de notificação.
O desvalor mais comumente associado aos vícios de forma é a anulabilidade. Raramente a inobservância de uma formalidade ou forma exigida por lei produzirá consequências tão dramáticas quanto o desvio de poder, a violação de lei propriamente dita, a usurpação de poder ou até a incompetência, se absoluta.
Mas haverá casos em que o acto administrativo, ainda que ferido de ilegalidade (quanto à forma), possa ser válido? Admite-se que sim, em casos bastante específicos e concretos. Se o princípio da legalidade é necessariamente inviolável (de forma até que Freitas do Amaral, juntamente com Marcelo Rebelo de Sousa, considere que não existe qualquer excepção) , contempla-se, por outro lado, a figura do estado de necessidade administrativo (que Vieira de Andrade qualifica como um contra-princípio), que permite à Administração, sob a verificação de uma situação excepcional e de um perigo grave, “desprocedimentalizar” a sua actuação – desta feita, devido a um caso de manifesta necessidade, e “desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo” (artigo 3.º/2 CPA), o acto administrativo, mesmo que não obedecendo à legalidade formal e procedimental, seria válido, ainda que ilegal (daqui decorreria a natural responsabilização da Administração). O estado de necessidade administrativo diverge ligeiramente da necessitas prevista no Código Civil na medida em que a situação de necessidade extraordinária não tem que ser urgente e imediata.
A administração poderia, assim, actuar com preterição de certa formalidade legal tendo por base o estado de necessidade, ainda que a situação de perigo estivesse prevista para o futuro (contudo próximo), desde que conseguisse provar que os resultados que pretendia alcançar não poderiam ser obtidos [atempadamente] respeitando o procedimento normal.
Como se fez referência, para Freitas do Amaral, a actuação por estado de necessidade com inobservância de forma não se traduz verdadeiramente numa excepção ao princípio da legalidade. Antes, considera existir uma “legalidade excepcional”, visto que a própria atuação em estado de necessidade está habilitada por lei (o artigo 3.º/2 do CPA).
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Amaral, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo II, 2.ª Edição (2011)
Andrade, José Carlos Vieira de - Lições de Direito Administrativo, 5.ª Edição (2017)
Correia, José Manuel Sérvulo - Revisitando o Estado de Necessidade
Ricardo Silva, 59130, ST17
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Amaral, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo II, 2.ª Edição (2011)
Andrade, José Carlos Vieira de - Lições de Direito Administrativo, 5.ª Edição (2017)
Correia, José Manuel Sérvulo - Revisitando o Estado de Necessidade
Ricardo Silva, 59130, ST17
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