A discricionariedade administrativa

Apesar de, como se sabe, a Administração Pública estar vinculada ao princípio da legalidade, em vertentes que aqui não interessam aprofundar, também se sabe que o legislador não dita sempre da mesma forma o modo como a Administração deve exercer as suas funções. Ou seja, nem sempre o legislador opta por regular até ao mais ínfimo pormenor os atos que a Administração deve executar. 
Desta forma, é-nos permitido aferir que a Administração exerce as suas normais atividades por duas vias: a da vinculação e a da discricionariedade. 
A discricionariedade consiste, tal como definido pelos professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, numa liberdade que é conferida, através de uma lei, à Administração. Esta liberdade dá-lhe o poder de escolher dentre as alternativas que são consideradas admissíveis ao nível jurídico. Isto, porém, não significa que o poder discricionário seja um poder livre. Tal como salientam os professores José Vieira de Andrade e Diogo Freitas do Amaral, este é um poder que está vinculado e delimitado pela lei. Afinal, a Administração Pública está sempre vinculada à prossecução dos princípios que a delimitam, devendo exercer o seu poder discricionário de forma a não os ferir ou, se for necessário para atingir a finalidade a que está vinculada, a feri-los o menos possível. Estando o órgão sempre vinculado a encontrar a solução jurídica que melhor sirva aquilo que se entende, e que está estabelecido legalmente, como sendo o interesse público, a decisão administrativa tem, também, que ser racional. 
Desta breve análise, podemos tirar duas ilações fulcrais: a primeira é a de que apesar de a discricionariedade implicar uma certa liberdade de decisão, esta representa um poder que se encontra vinculado à lei e aos princípios pelos quais a Administração se deve guiar aquando da sua atuação; a segunda é a de que apesar de a Administração Pública dispor desta discricionariedade de atuação, tal não a isenta de ser obrigada a encontrar a solução que melhor sirva aquilo que se entende como interesse público. 
Para percebermos se a lei atribui ou não um poder discricionário, é necessário fazer uma interpretação das normas em si. Assim, geralmente, entende-se que exista discricionariedade quando, no corpo da norma, existem vocábulos que tenham um significado permissivo. Mas nem sempre é assim que acontece. Tal como salientam os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, por vezes é necessário recorrer a instrumentos teleológicos. Isto com o intuito de apurar se, de facto, o fundamento da norma é o de conferir uma margem de discricionariedade à Administração. 
Tendo em conta tudo o que foi dito supra, conclui-se que não existem atos puramente vinculados nem puramente discricionários. Os atos da Administração costumam ser uma mistura destes dois – porque são vinculados o fim e a competência da administração, mas são deixados outros aspetos que esta, com fundamento nesse mesmo poder discricionário, pode decidir ou atuar. Porém, cumpre realçar quais são os aspetos, no ato, que podem ser discricionários. O professor Diogo Freitas do Amaral faz uma síntese destes aspetos, que compreende: o momento da prática do ato; a decisão final sobre praticar ou não determinado ato; determinação dos factos relevantes para a tomada da decisão; determinação do conteúdo da decisão e do próprio ato; a forma que o ato deve adotar; possibilidade de submeter o ato em si a termos, condições ou modos; determinação das formalidades que devem ser respeitadas aquando da preparação ou da prática do ato administrativo; e, por fim, a fundamentação do ato administrativo. Os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos distinguem, de outra forma, os aspetos sobre os quais a Administração pode agir de acordo com o seu poder discricionário: relativamente à escolha de agir ou não agir (discricionariedade de ação); relativamente à escolha entre duas possibilidades previstas legalmente (discricionariedade de escolha); e até mesmo escolher a definição da atuação concreta dentro dos limites jurídicos aplicáveis (discricionariedade criativa).
Mas, qual será o motivo que leva o legislador a dar à Administração esta liberdade discricionária? A resposta a esta pergunta acaba por ser intuitiva se pensarmos na logística do assunto. Seria bastante inconveniente para o legislador esgotar todas as situações em que a Administração teria que agir e como deveria fazê-lo, para não dizer que seria praticamente impossível. 
Este poder discricionário não está, porém, isento de limites – pelo contrário. Existem limites legais e limites impostos pela autovinculação da Administração à discricionariedade. Os limites legais são aqueles que são impostos pela própria lei, como é o caso dos princípios que vinculam a atividade administrativa. No que diz respeito à autovinculação da Administração Pública, esta verifica-se quando a própria elabora normas genéricas às quais obedecerá na apreciação de casos futuros. 
Por fim, e tal como salienta o professor José Vieira de Andrade, a discricionariedade também levanta problemas, elencando-os em três grupos: problemas relacionados com a natureza do seu caráter jurídico; problemas relacionados com a diversidade de tipos de poderes discricionários; e, por último, o problema relacionado com os conceitos indeterminados. 
O primeiro problema abordado, que tem a ver com a natureza do caráter jurídico da discricionariedade, leva-nos a definir esta como uma concessão legislativa e não como um poder originário que a Administração já detinha. A discricionariedade é, então, apreendida por via da interpretação do conteúdo das normas, tal como já foi analisado supra. Assim, podemos concluir que a discricionariedade é, basicamente, uma manifestação da autonomia da Administração Pública, a qual provém do contexto da separação de poderes. 
Relativamente às dificuldades que surgem devido à multiplicidade de poderes discricionários de que a Administração dispõe, podemos abordar a forma de controlo das decisões tomadas ao abrigo do poder discricionário e da garantia do interesse público e dos direitos de que dispõem os cidadãos. 
Já em relação ao último problema, nomeadamente o que diz respeito aos poderes discricionários retirados de conceitos indeterminados, em tempos colocou-se a questão de saber se a Administração também beneficiava da discricionariedade em situações de utilização de conceitos indeterminados pela lei. A resposta levou a crer que, então, o conceito de discricionariedade deveria ser encarado no sentido lato sensu. Assim, admite-se que a Administração estará, sim, a exercer poderes discricionários quando tiver ao seu dispor um “espaço de avaliação” – pelo que conclui que a discricionariedade não existe apenas em situações em que a Administração beneficie de uma liberdade decisória. 

Bibliografia: 
SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª edição, Dom Quixote, 2016 (reimpressão). 
AMARAL, Diogo Freitas de, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2ª edição, Almedina, 2011.
ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017.

Catarina Andrea Riça, nº59173.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os vários tipos de atos administrativos

O regulamento externo e interno

Caso Prático Direito Administrativo:Tópicos Correção