Teoria da excecionalidade da desaplicação de regulamentos e/ou leis pela Administração Pública com fundamento na ilegalidade e/ou inconstitucionalidade

  Depois de estudarmos o princípio da legalidade e as suas três vertentes (vertente da preferência de lei, vertente da precedência de lei e a reserva material de lei), concluímos que a Administração Pública se encontra subordinada à lei, seja pela consagração expressa no artigo 266º/2 CRP do princípio anteriormente referido, ou até mesmo de uma forma indireta pelo artigo 112º/5/7 CRP. Assim, aludindo também ao princípio da separação de poderes, a diferença entre função legislativa e função administrativa torna-se clara[1]e todos os esforços que sejam necessários para a não invasão de uma pela outra são necessários e indispensáveis.

  À pergunta “pode a Administração Pública desaplicar regulamentos administrativos?”, a resposta é apenas aparentemente óbvia. Como aprendemos em Introdução ao Estudo do Direito, perante conflitos normativos, para além de lei nova prevalecer sobre lei velha, norma superior também prevalece sobre norma inferior. 

 Apesar de tudo isto, a doutrina maioritária tende no sentido de tal não se aplicar à Administração Pública, devendo esta aplicar a norma de nível inferior, quando a norma corresponder de facto à norma necessária para resolver o caso concreto.
  Os argumentos apresentados nesta direção passam pelo facto dos juízos de invalidade e de ilegalidade nunca serem total e completamente absolutos e inequívocos; a reserva de jurisdição ser uma competência atribuída aos tribunais; e por fim, a prevalência e respeito devido ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13º CRP, visto que, se a aplicação da lei dependesse do juízo de um órgão administrativo, acabaria por ser aplicado de forma desigual, pois seria aplicado a uns e não a outros[2]. A segurança jurídica necessária para os cidadãos seria, com alguma probabilidade, substituída por decisões arbitrárias.[3]
  No entanto, esta tese não se encontra isenta de exceções. O professor Jorge Miranda afirma que esta se deve desaplicar quando leva à prática de um crime, acrescentando-se dois argumentos essenciais que passam pela desaplicação quando constatada uma inconstitucionalidade manifesta, inconstitucionalidade material (no plano substantivo) e a violação direta de um direito, liberdade ou garantia.

 Mas pode a Administração Pública desaplicar leis com fundamento em inconstitucionalidade?

  Não desligado do problema anterior, mas começando pelo início do presente, no que diz respeito à competência de fiscalização de constitucionalidade por parte dos órgãos administrativos, e depois de abandonada a ideia inicial defendida de presunção de constitucionalidade da lei, é admitido um dever de fiscalização, auxiliar na atividade de interpretação que a Administração Pública tem de desenvolver na resolução do caso concreto. O ponto de partida será então o pressuposto que as leis “com grande probabilidade não são inconstitucionais”, de modo a responder de forma mais eficiente. Assim, as dúvidas e questões sobre a constitucionalidade das leis podem surgir, mas só devem acontecer quando existam motivos justificadamente fortes. Neste sentido, apontam os professores Paulo Otero e Vieira de Andrade.

 Por outro lado, o professor Carlos Blanco de Morais discorda desta posição, afirmando que a Administração Pública não pode fazer juízos de constitucionalidade, pois estaria a fazer juízos sobre os próprios parâmetros que a vinculam. 

  Seguindo a lógica da professora Ana Raquel Moniz, que nos parece a mais indicada, após a fiscalização seguem-se três possibilidades. Uma possibilidade isenta de qualquer dificuldade quando a lei não apresenta inconstitucionalidades, mas também a suspensão ou rejeição da aplicação da norma. 

  A suspensão é apresentada como a hipótese que deve ser à partida descartada, pela necessidade de recorrer ao superior hierárquico, pela consequente interferência no interesse público devido à pouca eficiência e celeridade que provoca e por ser encarada com uma “rejeição camuflada” quando se torna duradoura.[4]

  No que toca ao problema da rejeição da aplicação da lei tida como inconstitucional, existem vários princípios constitucionais a ter em conta. O princípio da separação de poderes, o princípio da legalidade/juridicidade (como a obrigação de obediência a todo o ordenamento jurídico), o princípio da proporcionalidade e ainda ao conteúdo do artigo 18º/1 CRP referente a direitos, liberdades e garantias dos particulares.

  A tarefa de fazer juízos de inconstitucionalidade caberá sempre em primeiro lugar aos tribunais, mas a Administração Pública nunca pode deixar de ter em conta o princípio da juridicidade no exercício da sua atividade.

  De forma simplificada, a professora Ana Raquel Moniz assume a posição de defender que, cada vez que nos encontremos perante uma norma que viole qualquer um dos princípios referidos anteriormente, seja natural a rejeição de aplicação por parte da Administração Pública. A possibilidade de desaplicação neste âmbito encontra também a seu favor um forte argumento que se prende com a existência de responsabilidade civil “pelos danos emergentes da não aplicação de uma lei erroneamente considerada inconstitucional”[5]. Neste sentido, eliminamos a possibilidade da Administração Pública de fazer juízos puramente arbitrários e parciais, em último caso numa via preventiva de não sanções (tendo sempre em conta que não deve ser esta a principal orientação da sua atividade, mas sim a prossecução do interesse público).

  E o princípio da separação de poderes? A doutrina que nega a possibilidade de rejeição de aplicação de normas inconstitucionais pela Administração Pública argumenta que de facto, se esta fosse permitida, estaria a ser ignorada a posição subordinada da função administrativa relativamente à função legislativa, assim como a função jurisdicional atribuída aos tribunais, em especial ao Tribunal Constitucional.

  No entanto, a doutrina diverge. Várias são as considerações pertinentes referidas a este propósito pela Professora Ana Raquel Moniz. 

  Em primeiro lugar, temos sempre de esclarecer o que é que efetivamente este princípio pretende expressar. Muitas vezes encarado como a proibição da concentração e abuso de poderes, nada indica então que a rejeição de aplicação de certas normas com fundamento em inconstitucionalidade viole efetivamente o princípio da separação de poderes.

  Para além disso, esta desaplicação encontra-se ainda sujeita ao controlo judicial (pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva) e à chamada teoria da evidência, associada à teoria da gravidade dos vícios. A função administrativa acaba por manter o seu estatuto de função secundária, somando o facto de apenas efetuar esses juízos quando existir “uma convicção argumentativa e juridicamente fundada da inconstitucionalidade das leis”[6], intervindo então quando estivermos perante uma violação grave e manifesta, se se tratar de uma matéria relativa a direitos, liberdades e garantias e ainda se apresentar semelhanças com leis anteriormente consideradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional. 

  Ainda na lógica de abordagem dos vários princípios que vinculam a Administração Pública e a sua atividade, quando nos reportamos ao princípio da proporcionalidade e às suas três vertentes (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), a resposta será idêntica a algumas matérias estudadas no semestre passado. Assim, “nos casos em que se não exija uma urgência na decisão e a inconstitucionalidade não seja evidente, equacionar a possibilidade de suspender o procedimento para efeitos de representação ao superior hierárquico”.[7]

  Por fim, resta perguntarmo-nos se existe de facto um dever de rejeição de aplicação da lei quando considerada inconstitucional. O professor Rui Medeiros reconhece de facto a existência deste dever e alicerça a sua argumentação ao artigo 204ºCRP. Noutro sentido, a doutrina que admite a existência do mesmo dever, mas apenas em casos excecionais, nomeadamente quando em causa estejam os direitos fundamentais dos particulares.

  A opção por uma tese mais moderada parece-nos a mais correta. Apesar do esclarecimento feito relativamente ao significado do princípio da separação de poderes, o equilíbrio que este pretende garantir entre as várias funções seria posto em causa, nomeadamente através da utilização do artigo 204º CRP para justificar um dito dever da Administração Pública. A importância de uma fundamentação elaborada e cuidada será sempre um dos pontos fundamentais quando estiver em causa uma dúvida sobre a constitucionalidade das leis, garantindo que esta será sempre analisada pelos órgãos a quem compete a função jurisdicional.

Bibliografia
PAÇÃO, Jorge, “Apontamentos da aula prática subturma 17”
MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/17968/1/Tese_Ana%20Raquel%20Moniz.pdf


Trabalho realizado por:
Ana Beatriz Alves 
2º ano Subturma 17
Nº 58463





[1]MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, “A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade”
[2]PAÇÃO, Jorge, “Apontamentos da aula prática subturma 17”
[3]MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, “A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade”

[4]MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, A Recusa de Aplicaçãode Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade
[5]MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, A Recusa de Aplicaçãode Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade
[6]MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, “A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade”. A professora Ana Raquel Moniz acrescenta ainda quanto mais elevada for a posição do órgão, maior será o grau de certeza quanto à conclusão no sentido da inconstitucionalidade, razão que leva alguma doutrina a reservar a competência de rejeição para os órgãos superiores da Administração Vieira de ANDRADE
[7]MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, A Recusa de Aplicaçãode Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade”.

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