Princípio da Boa Fé


O princípio da Boa Fé é, como diz Freitas do Amaral, “originário da dogmática e do direito privado” tendo sido posteriormente reconhecido como guia do ordenamento jurídico em geral.
Este princípio encontra-se plasmado no art.º 227 do Código Civil, onde se determina que as partes devem agir tanto na formação dos contratos como nos seus preliminares “segundo as regras da boa-fé”.
Após a revisão constitucional de 1997 este princípio deixou de estar consagrado exclusivamente no Código Civil para passar a fazer também parte da Constituição da República Portuguesa (CRP) figurando no seu art.º 266/2 onde se alarga a aplicação do princípio da boa-fé também à atuação dos órgãos e agentes administrativos.
Devido à sua importância, um ano antes de ser acolhido na CRP foi também recebido no art.º 10 do Código de Procedimento Administrativo (CPA), aparecendo por três vezes no nosso ordenamento jurídico como figura central de um artigo, ganhando destaque propositadamente realçado pelo CPA que o inclui na epígrafe com todo o realce gráfico inerente.
Contudo, antes deste princípio ser plasmado no CPA ou na CRP já vários autores, entre o quais, Marcelo Rebelo de Sousa, Celorico Palma e Freitas do Amaral, defendiam este princípio sem o referir, ao afirmarem que era necessário ter em conta a certeza e a segurança jurídica aquando da anulação ou revogação de atos constitutivos de direitos.
A relevância jurídica do princípio da boa-fé no ordenamento e praxis jurídica da administração pública entronca na necessidade de que os cidadãos reconheçam no Estado uma “pessoa de bem” e que confiem nele.
É por isso lógica a assimilação por parte do direito público deste princípio que constitui de há muito património conceptual estabilizado do direito privado. De facto, um dos princípios fundamentais para o bom governo da polis é precisamente a confiança que subjaz ao contrato social a qual nos permite confiar naqueles que connosco contratam acreditando que o seu agir se norteia por princípios que permitam não frustrar as expectativas dos cidadãos que lhes delegaram o exercício do poder e da administração.
Mas, para que o princípio da boa-fé se verifique realmente na prática é necessário coexistir com:
·       O princípio da tutela da confiança que impede à administração pública mudar as regras a meio do jogo. Segundo Freitas do Amaral, este princípio envolve quatro pressupostos:
o   Existência de uma situação de confiança
o   Justificação para essa confiança
o   Investimento nessa confiança
o   Imputação da situação de confiança
Segundo o autor para que se possa falar numa situação de tutela da confiança não se exige que estejam verificados todos estes pressupostos que, além do mais, não têm entre si qualquer tipo de hierarquia. Concorda com esta visão a maior parte da doutrina no Direito Civil.
No entanto resta-me uma dúvida que procurarei esclarecer à medida que for evoluindo em conhecimento acerca desta matéria: se não admitirmos um lugar privilegiado ao primeiro pressuposto, que fazem lá cada um dos outros três?
Por isso, se é verdade que a nível da práxis todos eles poderão considerar-se equivalentes e concorrentes em grau, sinto-me mais confortável, ao menos nesta fase do meu estudo, se puder dizer que a nível conceptual o primeiro tem ascendência sobre os demais.   
·       Princípio da materialidade subjacente que contraria o excesso de formalismo. O carácter genérico das leis impõe a mitigação das exigências formais por serem muitas vezes limitadoras da aplicação verdadeira da justiça e da justiça verdadeira.
Sara da Costa Hall faz uma apreciação bastante interessante ao art.º 10 do CPA, dizendo que este apenas se limita a consagrar o princípio da boa-fé não fazendo qualquer comentário acerca do tipo de responsabilidade que advirá da violação do mesmo e por isso fala de uma possível responsabilidade por culpa in contrahendo no caso de violação, pois havendo qualquer mínimo de autonomia é necessário que o princípio da boa-fé reine.
A partir do momento que a administração põe como hipótese contratar e os particulares começam a agir com base na confiança que assenta no princípio da boa-fé, se este for violado, levará necessariamente a uma responsabilidade por culpa in contrahendo, pois não foram tomadas as diligências necessárias nos momentos precedentes à realização do contrato, ou seja, não foram salvaguardadas as solenidades, atitudes e comportamentos que permitiriam a não violação daquele princípio.
A boa-fé dá uma segurança jurídica extra aos vários procedimentos previstos para a contratação pública pois permite que a margem negocial da administração seja controlada por forma a não se lesar ninguém, para o que aos particulares se deve um conveniente esclarecimento em vista de poderem participar de forma adequada.
A importância do princípio da boa-fé é meridianamente realçada pela atividade discricionária da administração, quando se entra na sua zona de “autonomia pública administrativa”, como refere Sérvulo Correia, em dissertação de doutoramento. É muitas vezes necessário que este princípio limite a atuação da administração. Um ato administrativo só pode ser eliminado da ordem jurídica se houver uma declaração que justifique esta mudança de posição e, mesmo assim, a administração pode ser obrigada a indemnizar o particular.
Por outro lado, a violação do princípio da boa-fé em si mesma gerará uma anulabilidade e não uma nulidade dos atos administrativos. – art.º 133 e 135 do CPA.
Em jeito de conclusão, e citando Hall na sua tese, podemos afirmar que é “este princípio [da boa-fé] que, aliado ao da tutela das expectativas, vai «obrigar» a Administração a cumprir com a sua auto-vinculação”. É verdade que a autora mitiga o seu juízo sobre a matéria acrescentando que esta auto-vinculação não pode ir “contra a própria concessão de margem de discricionariedade administrativa.” Mitigação que, diga-se, não retira peso, antes o confirma, aos dois princípios, já que sem os mesmos passaríamos a estar perante algo  que não seria um verdadeiro exercício da administração já que este é em si mesmo “auto-vinculado” sob pena de deixar de ser o que é para tornar-se a destruição de si mesmo. Sendo pública, a administração de que se trata, não pode ter como pano de fundo se não o bem público que tende a implementar. Pelo que a não “auto-vinculação” seria a destruição do carácter público da administração. Por outro lado, a total ausência de discricionariedade seria a destruição da especificidade do que é administrar, que implica decidir, escolher, ponderar entre opostos, contrários ou simplesmente diferentes.

Bibliografia:
·       Hall, Sara Ferreira da Costa. A responsabilidade civil pré-contratual da administração pública: a boa fé e a indemnização devida, 2018
·       Amaral, Diogo Freitas de. Curso de Direito Administrativo Volume II, 2ª Edição – 2011
·       Apontamentos Aulas Teóricas
·       Silva, Duarte Silva Bernardo Rodrigues. O princípio da boa-fé nos contratos administrativos com objeto passível de ato administrativo, 2001
·       Lopes, Pedro Moniz. Princípio da boa fé e decisão administrativa: estrutura e operatividade na discricionariedade conferida por normas habilitantes, 2010
·       Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa: anotada, 2007




Cristina Reis, 58548

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