Formas de invalidade e o Princípio de aproveitamento do ato

Formas de invalidade e o Princípio de aproveitamento do ato


Segundo o Código do Procedimento Administrativo, as formas de invalidade de dos atos administrativos praticados dividem-se em dois regimes: o da nulidade (previsto no artigo 161º), e o da anulabilidade (previsto no artigo 163º).
A anulabilidade apresenta-se como a regra-geral no ordenamento jurídico português, pelo que, e segundo uma interpretação a contrario do artigo 163º/1, a exceção será a nulidade.  Esta surge como a forma mais grave de invalidade, visto que o ato nulo é totalmente ineficaz, não produzindo qualquer efeito, independentemente da declaração de nulidade. Por sua vez, a anulabilidade é uma sanção menos grave, pois o ato anulado é juridicamente eficaz até ao momento em que venha a ser anulado, produzindo até aí efeitos como se fosse válido. Após esse momento, tem efeitos ex-tunc (retroativos) (163º/2).
Para mais, a nulidade é insanável, não havendo possibilidade de o ato ser sanado nem pelo decurso do tempo (162º/1) nem por ratificação (164º/1). Podem, no entanto, ser aproveitados e conservados elementos válidos através da reforma ou conversão (164º/2) (termos abordados posteriormente, aquando do princípio de aproveitamento do ato administrativo). Pelo contrário, a anulabilidade é sanável por decurso do tempo, mas também por ratificação, reforma ou conversão (164º/1), desde que dentro de um certo prazo estabelecido na lei (163º/3 e 4). Por não produzir efeitos jurídicos, não é imperativo que os destinatários obedeçam às ordens de atos nulos, mesmo que a Administração queira impor a sua execução. Esta legitimidade de resistência por parte dos particulares encontra-se consagrada constitucionalmente no artigo 21ºPelo mesmo raciocínio, o ato anulável é obrigatório para destinatários e funcionários públicos, até que seja anulado.
De seguida, a nulidade pode ser impugnada a todo o tempo (162º/2) e conhecida (ou seja, desaplicada) também a todo o tempo, por qualquer autoridade ou órgão administrativo ou por qualquer tribunal. A declaração de nulidade, pode ser, mais uma vez, declarada a todo o tempo, embora unicamente pelos tribunais administrativos ou órgãos competentes para a anulação, e tem eficácia erga omnes. Quanto à anulação de atos administrativos, esta só pode ser feita por um tribunal administrativo. Por fim, a declaração de nulidade é declarativa, enquanto que a sentença de anulação tem natureza constitutiva.
A justificação para o facto da regra-geral ser a anulabilidade, face à nulidade, reside na procura de uma maior certeza e segurança jurídica, visto que a anulabilidade só pode ser impugnada dentro de um certo prazo. Ora, decorrido esse prazo, deixarão de existir quaisquer impasses acerca da invalidade desse ato. A nulidade, por ventura, pode ser declarada a todo o tempo, o que traria muito mais incerteza e indefinição, quanto a este aspeto específico, fosse este regime o geral.
Quanto ao âmbito de aplicação destes dois regimes, o legislador aplica a sanção da nulidade a um número reduzido de casos, sendo estes os mais graves e evidentes, casos esses que vêm enunciados no artigo 161º/2. A palavra “designadamente” faz que este elenco não seja taxativo, existindo assim outros casos de nulidade. Dito isso, as situações-tipo de nulidade são as que estão reguladas neste artigo, o único que as elenca. Como tal, deparando-nos com questões sobre o tipo de invalidade do ato em apreço em cada caso, deverá ser observado se o ato é nulo, segundo este artigo. Não o sendo, pertencerá à regra geral.
Pode ocorrer o caso de se cumularem diferentes formas de invalidade, nomeadamente nestas duas hipóteses possíveis: a) quando o mesmo ato gera anulabilidade e nulidade, simultaneamente, e b) sendo a declaração de anulabilidade sujeita a prazo, quando não é possível alegá-la decorrido esse tempo. Quanto à primeira situação, existe a prevalência do ato mais grave (a nulidade). Em relação à segunda, como vimos anteriormente, fora do prazo legal só poderão ter fundamento causas de nulidade.
Em relação ao princípio do aproveitamento do ato administrativo, utile per inutile non vitiatur (o inútil não vicia o útil), este tem sido abordado em função do regime de invalidade do ato administrativo e da relevância das formalidades e do procedimento na manifestação da vontade administrativa.
O CPA estipula o princípio do aproveitamento do ato administrativo no artigo 163º/5, não abrangendo a sua aplicação a outras formas de atuação administrativa como o regulamento ou o contrato (no entanto, de acordo com o artigo 102º/7 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, é possível retirar que este princípio do aproveitamento seja aplicado não só ao ato, mas também ao contrato, possibilidade também já prevista no Código dos Contratos Públicos).
Quem tem sustentado tal princípio, no entanto, tem sido a jurisprudência, através da decisão para cada caso e respetiva argumentação. Este princípio permite ao juiz proceder a ponderações acerca da irrelevância das ilegalidades cometidas pela Administração, apelando a valores de eficácia, eficiência, racionalidade, celeridade, poupança de tempo e de recursos.
O aproveitamento do ato pode ser feito pela Administração ou pelos tribunais. No primeiro caso, a Administração pratica um ato administrativo secundário que ratifica, reforma ou converte o ato administrativo originário (164º/1), aproveitando-o apesar dos vícios. Já se o ato for aproveitado pelos tribunais, estamos perante a desconsideração da relevância dos vícios do ato administrativo pelo tribunal, permitindo-lhe manter a respetiva validade. Diz-se ratificado o ato quando a Administração pratica um ato secundário que substitui o ato originário, “limpando” os vícios de competência, de forma ou procedimentais de que padecia. Diz-se reformado o ato quando se pratica um ato administrativo novo em que se aproveita do ato anterior a parte não viciada por uma legalidade que se reporta ao conteúdo do ato, suprimindo ou alterando a parte ilegal. Por fim, diz-se convertido o ato consistente na prática de um ato novo que transforma em válido o ato que era inválido, comutando-o num ato de outro tipo legal. 
Para um enquadramento deste princípio no quadro constitucional e legal vigente, destacam-se o artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 4º e 5º do CPA, que acolhem o princípio de prossecução do interesse público, que se caracteriza por uma atuação administrativa racional, eficiente e célere, bem como o princípio da boa administração, que também invoca critérios económicos, de eficiência e de rapidez para a atuação da Administração, respetivamente.
O princípio do aproveitamento do ato administrativo tem sido aplicado sobretudo, a nível jurisprudencial, a propósito de vícios formais e procedimentais, excluindo a aplicação do princípio no caso de verificação de vícios materiais ou de violação de lei, separando a alínea b) do artigo, referente a vícios formais e procedimentais, das alíneas a) e c), que autorizam a aplicação do princípio do aproveitamento a atos com vícios de outra natureza mediante verificação de pressupostos legais. Com isto, o poder judicial habilita-se a regular os efeitos provenientes de qualquer tipo de invalidade administrativa. 
Existe certo conflito deste princípio com o princípio da legalidade, pois permite-se com este manter na ordem jurídica o ato não anulado, não obstante as ilegalidades de que sofre, uma vez que a ilegalidade do ato não obsta ao reconhecimento da produção de efeitos. A justificação baseia-se numa sobreposição ao princípio da legalidade de ponderações sobre custo-benefício, eficiência, eficácia, interesses públicos e privados. Contudo, não se pode dizer que se alterou significativamente o âmbito da intervenção material do juiz administrativo, que continua a fazer o controlo da legalidade do ato, apenas podendo afastar a anulação do ato nas situações previstas no 163º/5 do CPA.
Existe uma divergência doutrinária quanto à aplicação deste princípio, nomeadamente se pode ser aplicado a atos discricionários, ou apenas a atos praticados ao abrigo de poderes estritamente vinculados. A análise da jurisprudência demonstra que os tribunais consideram, que o princípio do aproveitamento do ato administrativo apenas tem aplicação no domínio de atos submetidos a vinculação administrativa, por ser possível aferir mais facilmente em relação a este tipo de atos, não obstante o seu vício, que é seguro dizer que o ato ainda assim teria sido praticado, por não assumir relevância no conteúdo do ato praticado. Atenção que a natureza do ato impugnado, se vinculado ou discricionário, em si mesma, não deve constituir critério de aplicação, sendo relevante sim o entendimento maioritário da jurisprudência, quanto à existência de uma margem de livre decisão da Administração, tendo o princípio o seu âmbito limitado de aplicação aos atos vinculados e àqueles em que a margem de discricionariedade foi reduzida a zero.  
No que respeita à questão de saber se o princípio do aproveitamento do ato administrativo pode ter aplicação para além dos casos em que se verifiquem vícios formais ou procedimentais, também se denota alguma hesitação jurisprudencial. Dada a função da sua natureza e do seu fim, o princípio do aproveitamento do ato administrativo terá maior aplicação no caso de existirem vícios de natureza formal e procedimental. Ao nível dos vícios materiais, em rigor, somente a alínea b), do n.º 5 do artigo 163.º prevê a situação do ato com vício procedimental ou formal, nada obstando que nos casos das alíneas a) e c) se apontem vícios de outra natureza, como os de natureza material.
Relacionando a aplicação deste princípio às formas de invalidade supra apresentadas (atos anuláveis e atos nulos), tem sido jurisprudencialmente aplicado aos atos anuláveis, pois o princípio do aproveitamento do ato não podia ser aceite quanto às “infrações mais graves", correspondendo à nulidade. Argumentou-se também, e a meu ver corretamente, que a atribuição de quaisquer efeitos jurídicos, ainda que colaterais, ao ato nulo representaria uma rutura intolerável na estrutura normativa do Estado de Direito. Não obstante, o novo CPA manteve a impossibilidade de os atos nulos serem revogados ou ratificados, mas passou-se a poder reformar ou converter atos nulos, segundo os artigos 166º/1 alínea a) e 164º/2. Como tal, os atos nulos que não produzem quaisquer efeitos jurídico podem, no entanto, ter elementos válidos aproveitados, numa possibilidade de sanação ou supressão da ilegalidade do ato. Quer a reforma, quer a conversão do ato administrativo são atos secundários, que versam diretamente, por terem por objeto, um ato primário, traduzindo-se no poder conferido à Administração de, ao invés de proceder à sua anulação administrativa, sanar o ato nos aspetos que sejam desconformes à lei, mantendo-os total ou parcialmente na ordem jurídica. 
Deve-se com isto considerar que o princípio do aproveitamento do ato administrativo esgota-se no regime da anulabilidade do ato (163º/5)? O número referido tem efetivamente aplicação limitada aos atos administrativos a que se aplica o regime da anulabilidade, mas não está, contudo, vedado no ordenamento jurídico, face ao regime legal dos atos nulos, previsto no artigo 164.º do CPA, como já abordado. Através da reforma ou conversão, é possível manter/aproveitar parte de um ato nulo, não viciada de ilegalidade. Como tal, a resposta é não, devendo-se considerar o previsto no nº 5 do artigo 163º, em relação ao regime dos atos anuláveis, bem como o 164º, em relação ao regime dos atos nulos.
Concluindo, a aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo não deverá ter o objetivo de permitir a legitimação de uma Administração contra legem, que não respeita a forma ou as formalidades ou que erra na prática dos seus atos, sob pena, aliás, de perturbação do princípio da legalidade. Deverá sim, definidas as situações em que não se produz o efeito anulatório, onde não haverá o risco de quebrar fronteiras entre o que é julgar e o que é administrar, nem entre exercício de judicialismo ou de reinterpretação da legalidade administrativa, o juiz ser investido em poderes que lhe permitem modelar os efeitos das normas jurídicas e dos atos administrativos, respeitando a legalidade administrativa e cumprindo o Direito.



Tiago Peyroteo, nº 58489

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4ªedição, Almedina, 2018.
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Lições de Direito Administrativo I, Lisboa, 1994/1995





















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