Erosão do princípio da legalidade



Erosão do princípio da legalidade
Rodrigo Leitão Dias, nº58545
Sumário
I – Considerações sobre o princípio da legalidade: II – Normas legais em branco; III – Regulamentos delegados e deslegalização; IV – Regulamentos Independentes; V – Expressão das vicissitudes do princípio da legalidade no direito administrativo da regulação; VI – Conclusões; VII - Bibliografia

I - Considerações sobre o princípio da legalidade
O princípio da legalidade merece consideração constitucional no número 2 artigo 266º encontrando-se igualmente presente no número 1 do artigo 3º do Código do Procedimento Administrativo. Destes preceitos resulta, em primeira linha, uma necessária conformação da atuação dos órgãos da Administração Pública à lei.
A referida norma do CPA insere uma ideia de “obediência (…) ao direito”, ou seja, a vinculação a que a atuação administrativa se encontra sujeita estende-se para além da lei, englobando fontes de direito que se encontram num patamar superior, como é o caso das normas constitucionais, do Direito da União Europeia e do Direito Internacional Público, bem como normas infralegislativas (regulamentos administrativos). De referir ainda, os princípios constitucionais que também vinculam a administração.
A doutrina designa comumente este fenómeno como bloco de legalidade, na medida em que existem diferentes níveis de legalidade a serem observados pela Administração. O Professor Vasco Pereira da Silva não considera muito feliz a designação de bloco de legalidade na medida em que imprime uma ideia de inelasticidade, que se concretiza no oposto da atual lógica flexível assente em princípios jurídicos (na conjetura corrente do direito administrativo existem cada vez mais princípios que emergem do direito global para o interno que vêm flexibilizar este). Não obstante, o princípio da legalidade refere-se hoje a um universo mais amplo merecendo a designação de princípio da juridicidade.
O princípio da legalidade concretiza-se, essencialmente, em duas dimensões: a preferência de lei e a reserva de lei. A primeira dimensão limita a administração a uma atuação conforme com o direito vigente, sendo que prevalecerá a norma superior em relação ao ato administrativo. A segunda decompõe-se na reserva material – há matérias que apenas são suscetíveis de regulação por parte do legislador, sob pena de usurpação de poderes - e na precedência de lei – imposição de um fundamento normativo que legitime a atuação pela atribuição de competência. De ressalvar uma exigência de densificação entendida pela maioria da doutrina como uma reserva de densificação que constrange o legislador a definir os meios os fins a serem prosseguidos pela administração. Este aspeto apresenta-se permeável no sentido em que há entidades que gozam de mais autonomia do que outras, sendo a densificação total excessiva pois haverá sempre uma margem de discricionariedade.
O provável desgaste do princípio da legalidade é o resultado de uma diminuição da densificação legislativa nas competências que confere à Administração.
Neste seguimento, importa analisar uma série de fenómenos que contribuem para o tema da erosão do princípio da legalidade, o porquê de uma possível plasticidade do princípio da legalidade. Surgem diversas formas de encarar o problema sendo que alguns autores preferem uma abordagem mais radical defendendo uma administrativização da lei, enquanto que outros abordam o tema de forma mais geral apelando a uma fuga de influência das normas legislativas e consequente entrada de outras fontes.
Resta-nos analisar os fenómenos que concorrem para esta realidade.

II - Normas legais em branco
Será praticamente indiscutível que, atualmente, desponta uma abertura normativa apoiante da Administração Pública que desempenha um papel fulcral no desenvolvimento das soluções concretas para cada caso conduzindo a uma maior permeabilidade e elasticidade do princípio da legalidade. Este cenário impõe-se face a uma Administração que se limitava a fazer juízos de lógica subsuntiva relativamente a normas emanadas do poder legislativo.
O Professor Paulo Otero define as normas legais em branco como “normas com valor e força de lei [que], atendendo à incompletude do conteúdo da sua previsão, remetem a integração (…) para instrumentos jurídicos de grau ou nível inferior”. Ou seja, perante uma norma legislativa pré-existente e conformadora dos atos administrativos subsequentes há um determinado grau de indefinição deixado nas mãos do decisor administrativo. Havendo que considerar um variável grau de incompletude, se é verdade que podemos ter normas totalmente em branco (ainda que a doutrina discuta este aspeto e tendo em conta as limitações resultantes do já mencionado bloco de legalidade) também será verdadeiro assumir que algumas apenas o são parcialmente.
Estas normas podem assumir diferentes formas, como é o exemplo da própria discricionariedade administrativa – que surge por razões de inconveniência e de impossibilidade por parte do poder legislativo, bem como uma imposição do Estado de direito democrático à luz da separação de poderes.
O Senhor Professor qualifica ainda o fenómeno das normas legais em branco como contribuidor para a erosão do princípio da legalidade, considerando “inevitável para as modernas sociedades pluralistas”.
As razões que fundamentam e justificam a maleabilidade da legalidade são de diversa ordem. Importa, desde logo, apelar a uma ideia de subsidiariedade, no sentido de que o regulamento se encontra mais próximo de uma situação concreta (quando concretiza a lei habilitadora) do que a norma legislativa. Outro fator de relevo traduz-se no facto de existirem constantes princípios conflituantes entre si, pelo que é necessário compatibilizá-los, cabendo ao aplicador a aplicação concreta. O mesmo se diga para os casos que envolvem interesses contraditórios em torno de determinada atuação. Ainda, existem matérias que envolvem graus de especialização e tecnicidade, pelo que se torna necessária a remissão legal para os órgãos administrativos. Por último, há uma constante mutabilidade das exigências socais que justificam uma apreciação casuística suscetível de ser moldada perante os circunstancialismos de cada época e de cada momento.
Por outras palavras, a lei torna-se impotente para responder a uma constante dinâmica das sucessivas ocorrências sociais. A solução encontra-se na atuação administrativa de regulação.

III - Regulamentos delegados e deslegalização
Pela interpretação do número 5 do artigo 112º da CRP percebemos que há uma proibição expressa, no ordenamento jurídico português, no que concerne à existência de regulamentos delegados (já no direito da União Europeia são admitidos, por via do artigo 290º do Tratado de Funcionamento da União Europeia). Qualquer modalidade de regulamento (modificativo, suspensivo, revogatório ou derrogatório) enquadra-se nesta proibição.
No entanto, não é possível concluir pela impossibilidade da deslegalização.
O Professor Marcelo Rebelo de Sousa define o fenómeno da deslegalização como a “operação legislativa de abaixamento do grau hierárquico de uma disciplina normativa constante de lei, acompanhada de uma habilitação legal para a emissão de regulamentos sobre a matéria em causa”. Isto é, contrariamente ao que ocorre com os regulamentos delegados (nos quais a primeira expressão é da função administrativa) há uma dependência legislativa primária. Dicotomicamente apresenta-se a legalização que confere força de lei aos atos administrativos, reforçando a sua força jurídica.
Importa dizer que o princípio da legalidade (de cumprimento imprescindível) deve ser tomado não só como ponto de partida, mas também como ponto de chegada, bem como os demais princípios constitucionais que balizam a atividade administrativa. A deslegalização terá de observar todos os princípios e efetivar o seu respeito.
A lei que permite a deslegalização, assim como explicam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, comporta duas funções. Por um lado, a existir um regime legislativo, a lei deslegalizadora terá de revogá-lo, revelando-se o pressuposto normativo essencial para que sejam aceitáveis atos administrativo com disciplina inovatória ou diversa da legislação já existente. Por outro lado, há que colocar em contraponto a heterodeslegalização e a autodeslegalização. A primeira assenta na premissa de que é possível reverter a situação da deslegalização (processo de redeslegalização), uma vez que terá sido uma lei a propiciar tais circunstâncias, ao passo que a segunda é proibida pela Constituição na medida em que não poderá ser a própria lei instituidora de um regime jurídico a permitir que um regulamento possa revogar o regime implementado por esta, isto é, não é constitucionalmente atendível que uma lei assuma uma futura modificação por via regulamentar. Neste a caso, o desvirtuamento do princípio da legalidade constitui-se gritantemente, havendo proibição constitucional resultante do artigo 112º/5. 
A deslegalização não é um fenómeno linear apresentando diversos níveis, isto é, a lei pode permitir que o regulamento venha a estabelecer inovatoriamente um determinado regime, não existindo uma disciplina legislativa prévia bem como os casos em que já existindo um estatuto anterior, a lei permite que o regulamento disponha sobre a matéria.
A reserva de lei é o principal limite da deslegalização, sendo inconstitucional toda e qualquer atuação deslegalizadora que recaia sobre matéria que a Constituição impõe que sejam tratadas em sede legislativa. Como salienta a Professora Ana Raquel Moniz não é constitucionalmente sustentável que uma lei (arrogando o caráter de norma legal em branco) confie integralmente determinada regulação jurídica a um regulamento.

IV – Regulamentos Independentes
São ainda apontados, como contribuintes para a atual configuração do princípio da legalidade, os regulamentos independentes. Ora vejamos.
O artigo 112º/6 da CRP admite a existência de regulamentos independentes. Por oposição aos regulamentos executivos ou complementares (caracterizam-se por, nas palavras do Professor Freitas do Amaral “[desenvolver] ou [aprofundar] a disciplina jurídica constante de uma lei”), ou seja, aos regulamentos executivos fica cometida a missão de precisar as circunstâncias do caso concreto em face da lei pré-existente) os regulamentos independentes regulam “visam introduzir uma disciplina jurídica inovadora no âmbito das atribuições das entidades que os emitam” – art. 136º/3 do CPA. Por outras palavras, com base nas atribuições já definidas por ato legislativo os regulamentos surgem para instituir inovatoriamente, com uma certa margem de “liberdade”, a sua disciplina jurídica.
Chegando a este ponto coloca-se o problema de saber se é estritamente necessária uma norma legal habilitante ou se o artigo 199º/c) e d) constitui fundamento suficiente para legitimar a atuação administrativa. Não se coloca o mesmo problema no caso dos regulamentos executivos visto que deriva da sua própria natureza a existência prévia de lei a ser desenvolvida.
A maioria da doutrina diz-nos que resulta dos números 6 e 7 do artigo 112º da CRP a necessidade de uma norma de habilitação que terá de ser invocada no regulamento. Nesta visão, dever-se-á entender a expressão do art. 112º/7 “leis (…) que definem a competência subjetiva e objetiva para a sua emissão” como respeitante ao caso dos regulamentos independentes. Assim, surge uma obrigação de invocar uma lei que defina a matéria a ser espelhada no regulamento assim como a entidade que tem competência para a sua emissão.
Os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, bem como o Professor Freitas do Amaral, realçam a importância da clivagem entre o fundamento do poder regulamentar, que surge da Constituição, e do fundamento do regulamento tido como realidade separada, isto é, em conformidade com a vertente da precedência de lei, a lei prévia conferirá uma habilitação legal indispensável, padecendo de inconstitucionalidade caso não respeitem estas exigências.
Os defensores desta posição dizem ainda que o artigo 199º/g) não pode levar a uma interpretação restritiva do princípio da legalidade.
Assim, para esta parte da doutrina não será conforme à Lei Fundamental a existência de regulamentos totalmente independentes.
Em sentido contrário vai a opinião do Professor Sérvulo Correia que encontra no artigo 199º/g) uma legitimação constitucional para atos regulamentares na realização dos fins sociais. O Senhor Professor ressalva a necessária observação da vertente da preferência de lei.
Efetivamente a doutrina maioritária parece encontrar um forte assento constitucional para a sua argumentação. No entanto, a visão minoritária, a ser entendida como preferida, releva uma verdadeira subversão do princípio da legalidade, mais concretamente na vertente da precedência de lei. Admitir que os regulamentos independentes não necessitem de fazer referência a uma lei que habilite a sua existência é considerar que o princípio da legalidade no atual quadro do direito administrativo sofre uma enorme maleabilidade ou até uma completa transfiguração.

V – Expressão das vicissitudes do princípio da legalidade no direito administrativo da regulação
Parece consensual que o limite da deslegalização encontra-se na reserva material de ato legislativo, no entanto importa indagar se nas matérias que se encontram fora da reserva se deve admitir normas legais em branco – é neste ponto que assumem especial relevo as entidades reguladoras e o direito administrativo regulamentar.
O Professor Pedro Gonçalves entende o direito administrativo da regulação como um direito especializado que comporta “as normas regulatórias dirigidas a entidades da Administração Pública”.
Cumpre, nesta sede, analisar uma possível retração do princípio da legalidade, visto que as entidades reguladoras constituem exemplo recorrente na doutrina no que toca à referência a uma tendência de diminuição da força da regulação legal. Neste domínio, verifica-se uma propensão geral para que a lei constitua uma mera habilitação formal para posterior emissão de regulamentos por parte destas entidades – regulamentos independentes.  Por um lado, temos a lei que confere competência às entidades reguladoras e por outro os regulamentos concretamente aprovados ao abrigo dessa mesma norma.
A doutrina aponta como características diferenciadoras desta área a neutralidade e a independência. O que se pretende é que o direito administrativo da regulação se constitua como uma área politicamente neutra e apartidária sendo orientada por critérios estritamente técnicos que derivam da própria natureza da atividade. A associação entre a expressão francesa autoridade administrativa independente e entidades reguladoras, não será sempre líquida, uma vez detetada a existência de entidades reguladoras que não promanam independência. No entanto, encontram-se sujeitas ao princípio da imparcialidade, pelo que não devem privilegiar um determinado interesse sem fundamento discriminatório.
Fala-se a este propósito numa desgovernamentalização destas entidades que são dotadas de um défice de legitimação democrática a ser suprido pelo seu desempenho exímio no exercício da função reguladora que cabe aos seus representantes pela estrita e constante prossecução do interesse público.
No que toca ao já referido enviesamento do princípio da legalidade e para suprir esta ideia a doutrina recorre a à ideia de administração de resultados, segundo a qual o mais importante será a satisfação das finalidades convocadas e não tanto o estrito cumprimento das normas legais.
A lei é colocada num patamar de pura norma de produção normativa, conferindo aos regulamentos uma maior “liberdade” na estipulação do conteúdo regulamentar.

VI – Conclusões
Todas as razões acima expostas levam diversos autores a concluírem pela já referida erosão do princípio da legalidade.
A base para qualquer desenvolvimento deverá ser o fundamento legal, nomeadamente o art. 266º/2 da CRP e o art. 3º/1 do CPA. Haverá sempre uma vinculação necessária da administração a estes preceitos salientando os desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais consolidados no que respeita ao princípio da legalidade.
No entanto, a prática administrativa vem demonstrar que este princípio não é de estruturação completamente rígida ainda que no seu essencial não poderá ser violado. Tradicionalmente entendida, a lei surgia como uma realidade fechada e rígida. O que se verifica atualmente é uma postura muito mais ativa da atividade administrativa superando as limitações reconhecidas ao poder legislativo, principalmente por razões de eficiência e até mesmo de impossibilidade de regulação total.
Quando analisado de um prisma histórico e sequencial é natural que sejam constatadas mudanças ao nível das diferentes vicissitudes deste princípio, no entanto parece que estas nunca deixam de ter correspondência na letra da lei. Nesta medida, a constante evolução da deslegalização não revela mais do que uma necessidade das atuais sociedades não desvirtuando o princípio na sua unidade, mas tão somente nas áreas permitidas. Assim, ainda que todos os fenómenos apresentados ao longo da exposição mereçam a devida atenção não se pode considerar, como na doutrina italiana, que o princípio da legalidade não goza de muito boa saúde.

VII – Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo – O Novo Regime Do Código de Procedimento Administrativo, 3ª edição – reimpressão, Almedina, 2016
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4º edição, Almedina, Reimpressão 2018
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 4º edição, Almedina, 2018
CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4ª edição, Coimbra Editora, 2010
CORREIA, Sérvulo, Noções de Direito Administrativo, Volume I, Editora Danubio, 1982
GONÇALVES, Pedro, Direito Administrativo da Regulação in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Volume II, Coimbra Editora, 2006
MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade, Almedina, 2012
MOREIRA, Vital e MAÇÃS, Fernanda, Autoridades Reguladoras Independentes – Estudo e Projecto de Lei-Quadro, Coimbra Editora, 2003
OTERO, Paulo, Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 3ª Reimpressão, Almedina, 2017
SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado, Direito Administrativo Geral – Introdução e princípios fundamentais, Tomo I, 3ª edição, Dom Quixote, 2008
SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado, Direito Administrativo Geral – Atividade Administrativa, Tomo III, 1ª edição, Dom Quixote, 2007









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