A querela em torno dos regulamentos independentes


A querela em torno dos regulamentos independentes


Sumário: I. Introdução; II. O que são regulamentos independentes? III. Princípio da legalidade como limite à emissão de regulamentos independentes; IV. Divergência relativamente à emissão de regulamentos independentes; V. Conclusão; VI. Bibliografia.

Sara Isabel Frutuoso Marques de Lemos
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I.                    Introdução

A Administração pública visa a satisfação e a prossecução do interesse público, pelo que os órgãos administrativos devem ter ao seu alcance determinados instrumentos que lhes permitam levar a cabo a sua missão. Como tal, existem várias formas de exercício do poder administrativo. A primeira forma de exercício do poder administrativo consiste na emanação de regulamentos administrativos pelos órgãos com competência para tal. A emissão destes regulamentos ocorre quando os órgãos administrativos verificam a necessidade de “completar ou desenvolver os comandos genéricos contidos na lei” [1]. Nestes casos, estes órgãos permitem a aplicação destes comandos a casos concretos, nomeadamente através da criação de normas jurídicas gerais e abstratas com fundamento na lei, ou seja, através da emanação de regulamentos administrativos. Não obstante, o poder administrativo não se esgota na emanação de regulamentos, uma vez que, muitas vezes, a Administração tem de resolver situações concretas através da tomada de decisões, tema que não iremos desenvolver aqui.

II.          O que são regulamentos independentes?

Os regulamentos independentes são aqueles em que não há um dever de indicação do regime que aquele regulamento está a completar, uma vez que não é esse o objetivo. Importa referir, por outro lado, que quando se fala em regulamentos independentes não se está a falar necessariamente de entidades autónomas nem independentes, não obstante existirem determinados tipos que são, de facto, aprovados por essas entidades.  Ainda assim, de acordo com a maioria da doutrina, estes regulamentos precisam de lei habilitante. A doutrina maioritária entende que, quando o nº7 do artigo 112º determina que os regulamentos devem indicar expressamente as leis que “definem a competência subjetiva e objetiva para a sua emissão”, se deve entender que também os regulamentos independentes estão sujeitos a esta exigência. A competência subjetiva diz, portanto, respeito à competência que aquele órgão tem para aprovar o regulamento e a competência objetiva, por sua vez, diz respeito à competência para aprovar regulamentos naquela matéria.

De acordo com Manuel Afonso Vaz, os regulamentos independentes são “regulamentos que a Administração edita sem referência causal a uma lei” [2]. O Professor Freitas do Amaral, por sua vez, entende que os regulamentos independentes ou autónomos (classificação que não resulta da lei, uma vez que existem regulamentos independentes que não são autónomos) são aqueles que os órgãos administrativos com competência para tal elaboram para assegurar a realização das suas atribuições específicas, sem cuidar de desenvolver ou completar nenhuma lei em especial [3]. Não obstante serem regulamentos que não desenvolvem ou complementam qualquer lei, desde a revisão Constitucional de 1982 que é exigido a qualquer regulamento independente que ele indique expressamente qual é a respetiva lei de habilitação, sob pena de ser inválido. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa, por outro lado, entende que os regulamentos independentes são aqueles que “contêm disciplinas materialmente inovatórias” [4]. Estes regulamentos contrapõem-se aos regulamentos de execução, que, sumariamente, são aqueles que desenvolvem ou completam determinada lei.

Dentro do conceito de regulamento independente conseguimos encontrar várias ramificações: os regulamentos independentes aprovados pelos órgãos do Estado e pelos órgãos da administração; os regulamentos independentes autónomos; os regulamentos independentes autonómicos; e, por fim, os regulamentos independentes independentes. Relativamente a algumas destas modalidades fala-se, inclusivamente, na possibilidade de existir uma reserva de administração ou de regulamento, hipótese que é rejeitada pela maioria da doutrina. Finalmente, os regulamentos independentes podem ainda ser espontâneos ou devidos, ainda que, na sua maioria, sejam espontâneos, pelo que é conferida à Administração, nesses casos, discricionariedade de ação.


III.        Princípio da legalidade como limite à emissão de regulamentos independentes

Ao abrigo do artigo 266º/2 da CRP, a Administração pública está subordinada ao princípio, entre outros, da legalidade. Enquanto forma de atividade administrativa, os regulamentos estão sujeitos ao princípio da legalidade, em todas as suas dimensões ou vertentes. Este princípio tem duas vertentes: a preferência de lei e a reserva de lei. A preferência de lei determina que os regulamentos não podem contrariar um ato legislativo, já que a lei tem absoluta prioridade sobre aqueles. Como tal, os regulamentos que contrariem o bloco de legalidade são ilegais e, por conseguinte, inválidos. No que diz respeito à vertente da reserva de lei, decorre daí que, neste caso, os regulamentos têm de ser habilitados por lei. Deste modo, do princípio da reserva de lei resultam duas coisas: a reserva material de lei, que determina que o poder regulamentar não se pode imiscuir nas áreas que constitucionalmente estejam reservadas à lei, ou seja, a Administração não pode aprovar regulamentos que digam respeito a estas matérias, salvo regulamentos de execução; e a precedência de lei, segundo a qual o exercício de qualquer atividade administrativa regulamentar tem de ser precedido de uma lei habilitante. Daqui decorre, portanto, a discussão acerca dos regulamentos independentes e da sua possível emissão quando são fundados apenas na Constituição.  A doutrina maioritária, aquela que entende que não podem existir regulamentos independentes fundados somente na Constituição, invoca o artigo 112º/7 da CRP e entende que é necessária uma reserva total de lei, o que significa que nenhum ato da Administração pode deixar de se fundamentar na lei, exigindo-se a indicação do fundamento legal para todos os regulamentos.

IV.        Divergência relativamente à emissão de regulamentos independentes

A querela em torno dos regulamentos independentes surge devido ao disposto no artigo 112º números 6 e 7 da CRP. O Professor Manuel Afonso Vaz entende que os regulamentos são o resultado do exercício do poder administrativo, mas estão sempre sujeitos e são sempre complementares à lei. Não obstante, o autor supramencionado afirma que a sua posição não colide com a efetiva existência de regulamentos independentes. O autor defende, pois, que se tratam de regulamentos em que “a lei se limita a indicar a autoridade que poderá ou deverá emanar o regulamento e a matéria que trata” [5]. De acordo com o Professor Freitas do Amaral, os regulamentos independentes correspondem a regulamentos em que a lei não define o conteúdo normativo a emitir pelo regulamento, pelo que a Administração tem liberdade quanto a esse aspeto. Deste modo, os regulamentos independentes são a expressão de uma “confiança” que é atribuída pela lei à Administração na medida em que esta terá um maior conhecimento das realidades com as quais interage, o que significa que poderá ser ela a determinar o conteúdo normativo de determinados regulamentos.

A discussão que se coloca relativamente a estes regulamentos é, portanto, relativamente a saber se estes regulamentos se podem fundar apenas na CRP, isto é, ao invés de se fundarem numa lei em particular, se fundem somente na ordem jurídica em geral – os chamados regulamentos independentes do Governo. Os Professores Freitas do Amaral, Manuel Afonso Vaz, Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que não é possível que os regulamentos independentes se fundem diretamente na CRP, ou seja, que não tenham fundamento legal prévio. Neste sentido, os autores que adotam esta posição na doutrina entendem que também os regulamentos independentes estão sujeitos ao princípio da legalidade, pelo que não poderão violá-lo na vertente da precedência de lei e, por conseguinte,  será sempre exigida uma lei prévia para a atuação do poder regulamentar. Tal como afirma o Professor Diogo Freitas do Amaral, “reconhecer ao Governo uma competência regulamentar absolutamente independente equivaleria a tornar desnecessária a admissibilidade da emanação de decretos-lei” [6].

Os Professores Afonso Queiró, Sérvulo Correia e Vieira de Andrade entendem, por sua vez, que é admissível constitucionalmente regulamentos independentes que não derivem nem se fundamentem em lei habilitante anterior. Conforme escreve o Professor Afonso Queiró, “a competência regulamentar do Governo não se circunscreve aos regulamentos de execução”. A sociedade liberal do século XIX preocupou-se, até à 1ª Guerra Mundial, em limitar os poderes do Executivo, de tal modo que a representação da sociedade passou a caber ao Parlamento. Todavia, o Executivo preservou um poder que lhe permite “assegurar normativamente a realização do bem geral” [7]. De acordo com o autor supramencionado, é neste âmbito que se situam os regulamentos independentes. Após a 1ª Guerra Mundial, foi consagrado um modelo segundo o qual é sempre necessária uma lei habilitante para que a Administração atue, pelo que o princípio da legalidade passa também a constituir um fundamento para a atuação daquela. Neste sentido, os regulamentos independentes, uma vez que se encontram fora do domínio legislativo, têm como objetivo assegurar “a execução das leis em geral” [8] e não a execução de uma lei anterior. Tal como o Professor Afonso Queiró, também Marcello Caetano afirma que o Governo, no caso dos regulamentos independentes, exerce “uma competência genérica ao providenciar sobre a dinamização da ordem jurídica e não a competência específica para executar certa e determinada lei” [9]. Como tal, estes Professores entendem que os regulamentos independentes visam a execução de todo o bloco de legalidade e não apenas de certa e determinada lei.

De acordo com o Professor Paulo Otero, regra geral, todos os regulamentos se fundam num ato legislativo, conforme determina o artigo 136º/1 CRP. Não obstante, existem regulamentos da competência do Governo que, uma vez que se encontram fora do âmbito da reserva de lei, podem fundamentar-se direta e imediatamente na Constituição, ao abrigo do artigo 199º alínea g) da CRP. Deste modo, o Governo, desde que se trate de matérias fora da reserva de lei e que nunca tenham sido objeto de intervenção legislativa, pode escolher emanar um regulamento diretamente fundado na Constituição, sob a forma de decreto regulamentar (artigo 112º/7 CRP). Como tal, segundo o Professor referido supra, são admitidos regulamentos independentes diretamente fundados na Constituição.

O cerne desta querela em torno do regulamento independente está no artigo 112º da Constituição. Através da análise deste artigo retiramos ideias contraditórias, o que permite à doutrina desenvolver esta temática. De acordo com o artigo supramencionado, os regulamentos independentes sob a forma de decreto regulamentar são, efetivamente, admitidos. Contudo, todos os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjetiva e objetiva para a sua emissão. Ora, esta disposição não nos diz expressamente qual a lei ou leis que o regulamento independente deve indicar. Tal como questiona o Professor Cabral de Moncada, será uma lei ordinária ou bastará uma lei constitucional?

 Cabe-nos, portanto, entender quais são as normas a que se reporta a expressão “leis” utilizada nesta disposição. Por forma a compreendermos melhor esta questão, podemos analisar o artigo 199º da CRP. Em conformidade com a alínea c) deste artigo, o Governo tem capacidade para, enquanto órgão também administrativo, “fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis”. Todavia, a alínea g) desta mesma disposição determina que o Governo tem capacidade para “praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas”. Neste segundo caso, ou seja, no caso da alínea g) do artigo 199º da CRP, parece-nos que este remete para a figura do regulamento independente, isto é, para um regulamento que exprime o poder próprio do Governo e que dispensa a intermediação legislativa, salvo nos casos de reserva de competência da AR (artigos 164º e 165º da CRP). Nesta alínea o regulamento deve expressar a prossecução de certas finalidades, não sendo necessária uma referência do regulamento à lei. O Professor Luís Cabral de Moncada entende que, embora o Governo possa ter uma “posição institucional poderosíssima atribuída diretamente pela Constituição” [10], permitir que os regulamentos não façam referência à lei ordinária iria representar a colocação do Governo “numa posição irreconhecível face ao contexto constitucional” [11]. Neste sentido, o Professor Cabral de Moncada defende não há necessidade de o Governo recorrer a regulamentos independentes, uma vez que “dispõe de competência geral”, a reserva de decreto-lei. Para além disso, o Professor já referido entende que, nos termos do nº7 do artigo 112º CRP, é possível retirar que o regulamento independente se fundamenta numa definição de competências subjetivas e objetivas, pelo que está sempre dependente da lei, ainda que num grau diminuto. Deste modo, os regulamentos independentes à luz da CRP não são concebidos na sua forma clássica, mas sim numa conceção segundo a qual é necessária uma lei habilitante, sob pena de ser formalmente inconstitucional. Assim sendo, o Professor Cabral de Moncada também não admite regulamentos independentes somente fundados na CRP.

V.           Conclusão

Em suma, o verdadeiro limite à emanação de regulamentos independentes está no princípio da legalidade, consagrado no artigo 266º/2 da CRP bem como no artigo 3º/1 do CPA. Este princípio, em todas as suas vertentes, deverá ser respeitado pela Administração no exercício das suas funções. Como tal, a Administração, uma vez que visa a prossecução do interesse público, deverá fazê-lo sempre em obediência à lei. Sendo este princípio “um dos mais importantes princípios gerais de direito” [12], tal como afirma o Professor Diogo Freitas do Amaral, nunca poderá ser posto em causa.  Neste sentido, podemos verificar que a forma como estão consagrados os regulamentos independentes na CRP não é a sua forma clássica, sendo sempre necessária a existência de uma lei habilitadora, sob pena daquele regulamento ser formalmente inconstitucional. Para além disso, cabe-nos ainda compreender que esta limitação assegurada pelo princípio da legalidade concretiza o princípio da separação de poderes, tal como afirma o Professor Marcelo Rebelo de Sousa na sua obra Direito Administrativo Geral. Assim sendo, rejeitamos a possibilidade de os regulamentos independentes se fundarem somente na Constituição.

VI.        Bibliografia

- AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 2016.

- CABRAL DE MONCADA, Luís S., Lei e Regulamento, Coimbra editora, 2002.

- MIRANDA, Jorge/ MEDEIROS, Rui, Constituição da República Anotada – Volume II, Coimbra editora, 2006.

- OTERO, Paulo, Direito do procedimento Administrativo, volume II, Almedina, 2016.

- QUEIRÓ, Afonso, Lições de direito administrativo, volume I, Coimbra, 1997.

- RIBEIRO DO NASCIMENTO, Marília, Os regulamentos independentes em face da separação de poderes: uma análise à luz da Constituição Portuguesa e Brasileira, Lisboa, 2010.

- SOUSA, Marcelo Rebelo de/ MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, tomo III, Lisboa, Dom Quixote.

______________________________

[1] – AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 2016, p.141;

[2] – VAZ, Manuel Afonso, Lei e Reserva de Lei. A causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, Porto, 1996, pp. 483 e 484;

[3] – AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 2016, p.152;

[4] – SOUSA, Marcelo Rebelo de/ MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, tomo III, Lisboa, Dom Quixote, p.246;

[5] – RIBEIRO DO NASCIMENTO, Marília, Os regulamentos independentes em face da separação de poderes: uma análise à luz da Constituição Portuguesa e Brasileira, Lisboa, 2010, p.29;

[6] – AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 2016, p.171;

[7] – QUEIRÓ, Afonso, Lições de direito administrativo, volume I, Coimbra, 1997, p.422;

[8] – QUEIRÓ, Afonso, Lições de direito administrativo, volume I, Coimbra, 1997, p.424;

[9] QUEIRÓ, Afonso, Lições de direito administrativo, volume I, Coimbra, 1997, p.424;

[10] – CABRAL DE MONCADA, Luís S., Lei e Regulamento, Coimbra editora, 2002, p.988;

[11] – CABRAL DE MONCADA, Luís S., Lei e Regulamento, Coimbra editora, 2002, p.989;

[12] – AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 2016, p.39.

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