O princípio da legalidade e a vertente da desaplicação administrativa:
Breve contexto histórico do princípio da legalidade:
De inicio, é possível compreender o princípio da legalidade nas suas origens liberais, nesse contexto, terá de atentar-se que a base funcional e ideológica dele serão as palavras cháves: “proibição” e “permissão” funcionando como antônimos. Ora, no período liberal, a lógica do princípio adequava-se com a ideia atual da autonomia privada, ou seja, “tudo o que não fosse proibido é permitido”. Isso acontecia porque a lei funcionava apenas como um limite negativo, justificando que a motivação liberal era limitar o poder executivo e, atrelado a isso, a lei funcionaria como um poder de controlo, como um “quid pluris”. Nessa época, ainda, subsistia a ideia do princípio da presunção da atuação administrativa, sendo exercido como um subprincípio da legalidade, a sua ratio era que as ações administrativas não contrariariam a lei, presumindo-se a legalidade da atuação. Tal facto, por vezes, gerava a inversão do ônus da prova, porque caberia aos particulares demonstrarem que a administração pública agiu de forma divergente da lei.
Atualmente, não há uma grande confusão do princípio da liberdade com o princípio da legalidade. Isso sucede porque hoje existe uma conceção permissiva da norma, ou seja, a administração só poderá realizar as suas atividades que a lei possibilita e concede a permissão. É necessário ater-se também que, nos dias atuais, não estamos apenas diante de um actos normativos (as leis, aos decretos-lei e aos decretos legislativos regionais) permissivos, é preciso que o agir da administração esteja em convergência com o bloco legal.
Conceito do princípio da legalidade:
Consoante o professor Marcelo Rebelo de Sousa, podemos concluir que esse princípio verte na subordinação da administração pública à lei, decorrendo do artigo 266/3 do CPA. Para o professor Diogo Freitas do Amaral, “a lei é limite, pressuposto e fundamento da atuação administrativa”. Essas duas noções são complementares, é, portanto, necessário entender que o princípio da legalidade possui 2 vertentes: a da preferência de lei e a da reserva de lei, mas é preciso ter atenção, uma vez que a segunda vertente desdobra-se em mais duas modalidades, isso é a precedência de lei e a densificação normativa
Pode-se entender por preferência de lei, com base no artigo 266/2 e 266/3 do CPA, que serão proibidas quaisquer atividade administrativa as quais contrariem a lei, contudo, como já dito anteriormente, não estamos só no âmbito de lei em sentido strictu, ou seja, há uma preferência de lei em um ordenamento jurídico global, sendo assim: a constituição, o direito comunitário, o direito internacional, a lei ordinária, os próprios atos da administração, princípios e os costumes internos constitucionais.
As consequências desse princípio, seriam, fundamentalmente duas
Contrariando o bloco de legalidade:
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Gera uma ilegalidade ou até mesmo inconstitucionalidade
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O próprio sistema assegura mecanismos:
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Isso significa que a ordem jurídica cria métodos, sejam jurisdicionais ou administrativos de erradicar os actos ilegais. O próprio funcionamento do sistema se sentiria obrigado a eliminar tais normas.
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No âmbito da reserva de lei:
Ao analisar a subcategoria da precedência de lei, compreende-se que a atividade administrativa necessita de uma habilitação legal, ou seja uma “permissão” legislativa, isso porque há um objetivo de subordinar e prever a atuação da administração, com o intuito de não ser uma medida arbitrária.
Divergência doutrinária sobre a precedência de lei:
Existem, basicamente, três posicionamentos sobre o assunto de se é necessário uma reserva de lei para todos os atos da administração, ou se, pelo contrário, a habilitação legal ficaria adstrita só para os atos administrativos em que interferissem negativamente na esfera pessoal dos particulares.
Grupo minoritário: Sérvulo Correia, Paulo Otero, Afonso Queiró
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Segundo essa corrente, baseando-se no artigo 199g da CRP, o governo teria base legal para produzir decretos-leis, regulamentos e, por isso, não faria sentido, na lógica do ordenamento, ser por um lado o orientador e, em outra perspetiva, ser o orientado
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Grupo mais forte na doutrina alemã
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Para esse grupo, seria preciso atualizar as reservas de lei, quando se passou do estado liberal para o estado social, uma vez que as necessidades são outras e mais dinamitas, contudo essa reserva de lei estaria vinculada a matérias essenciais. Ora, esse critério é muito subjetivo para uma matéria tão importante
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Doutrina maioritária portuguesa
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Consoante essa doutrina, seria fundamental abranger a reserva de lei para atuação da admnistração em uma lógica total. Com base no estado democrático e social, para assegurar que nenhuma administração ficasse à margem total da lei.
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Observação: O professor Marcelo Rebelo de Sousa critica veementemente o argumento do professor Paulo Otero, uma vez que a lógica do artigo 199g da CRP não reveste a densidade normativa suficiente que a administração precisa para prosseguir em sua atuação, logo por consequência faltaria cumprir o ultimo requisito que a reserva de lei prescinde, ou seja, a densificação normativa.
Ao analisar a necessidade de densificação normativa, podemos entender que isso significa uma carência de, para alem da habilitação legal, que essa dite e caracterize a forma que a administração deva atuar sobre a determinada permissão. Imaginemos, por exemplo, que haja uma habilitação legal para oferecer bolsas de estudo aos pedreiros, ora para além dessa habilitação legal é preciso ser expressada pelo legislador a ratio legis no mínimo. É verdade que será necessário uma margem de liberdade para a administração, contudo é conveniente que seja explícito um corpo estrutural que a administração deva seguir.
O grau de variabilidade de densidade normativa variará conforme a atividade em causa. O professor Rebelo de Sousa elenca, a variabilidade de acordo com a influencia da atividade na esfera social, a imprevisibilidade da atividade administrativa (quanto mais imprevisível, maior será a densidade normativa) por exemplo.
Analisada a situação do princípio da legalidade, poderemos proceder para uma situação excepcional: a desaplicação administrativa da lei.
Bom, sabe-se que a regra geral é que nenhuma atuação administrativa deverá contrariar a lei, como ja visto e colocado pelo princípio da legalidade. Ocorre que, quando estivermos em uma situação de haver uma antinomia dentro do próprio bloco da legalidade poderá, então, a administração pública realizar um juízo de valor e decidir qual acto normativo irá convergir com a sua atuação? Para a maioria da doutrina e para o Tribunal Constitucional consideram que não é competência administrativa resolver conflitos normativos com o fundamento da hierarquia. Isso porque teríamos o argumento de que o sentido da lei não é inequívoco, revelando que há varias possibilidades de interpretação e se cada órgão da administração, ou a própria administração pública como um todo, realizasse tal juízo de valor não haveria segurança jurídica, além de que é papel do próprio ordenamento jurídico se manter coerente e harmônico. Por fim, a função jurisdicional não deve estar diante da administração pública, mas sim diante dos tribunais, designadamente os tribunais de conflitos. Contudo, existem casos excepcionais no sistema jurídico, em que é necessário aplicar não um juízo de valor, mas um olhar global para o sistema. Dessa forma estamos nos casos da excepcionalidade da desaplicação de regulamentos pela administração com o fundamento de ilegalidade ou inconstitucionalidade.
Sintetizando as posições doutrinárias teríamos:
Jorge Miranda: Regra geral a Administração Pública não poderá desaplicar leis que considere ilegal, com exceção dos casos em que se trate de uma prática de um crime
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Gomes Canotilho e Vidal Moreira: So poderá desaplicar se houver uma inconstitucionalidade manifesta, ou a violação direta do direito de liberdade e garantia. O ponto frágil dessa posição é não especificar o que seria inconstitucionalidade manifesta
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Vieira de Andrade: A desaplicação administrativa so poderá acontecer quando estiver diante de um caso de inconstitucionalidade material.
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Paulo Otero: Desenvolve 4 grupos de casos que a administração deverá desaplicar a lei ordinária, sendo esses quando a lei desrespeitar a constituição, actos comunitários, acordos internacionais e decretos legislativos regionais que contrariem regulamentos do governo
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Nota-se, ainda, como reforça o Professor Paulo Otero, que apesar de, numa primeira análise, os regulamentos contrariem uma lei interna, ou seja, contra legem, ainda assim seria necessário existir tal ação. Isso porque, ao olharmos para o sistema jurídico de forma global, a atividade da desaplicação de normas pela administração não é uma situação alheia à juridicidade, mas sim uma atividade administrativa perfeitamente enquadrada na organização jurídica.
Fontes:
Otero, Paulo. Legalidade e Administração Pública:o sentido da vinculação administrativa à juricidade. Edição 1º.
Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo volume II, Edição 4º
Sousa, Marcelo Rebelo de; Matos, André Salgados de. Direito Administrativo Geral - Tomo I - Introdução e Princípios Fundamentais
Giovanna Lacerda,
Número de aluno: 57582
Assistente: Jorge Pação.
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